Como sempre, o padre Messias se valia do púlpito para anunciar as coisas que lhe pareciam mais importantes. E, naquele domingo, na missa da manhã, igreja repleta de fiéis, caminhou resoluto com o fito de aceitar a proposta de Elvego. Este, num canto da igreja, assistia ao sermão.
– Meus irmãos, peço a compreensão de vocês.
Falava medindo as palavras. Na verdade, tinha medo, muito medo mesmo. Como iria ser a reação de seus paroquianos? Eles estavam de cabeça feita!
– Meus paroquianos, preciso lhes dizer que a iniciativa não deve ser vista como sendo de ninguém, senão de mim mesmo; deste pastor modesto de todos vocês.
– Que será que ele quer dizer? – perguntava-se, interessada, a velha Cândida.
– Meus irmãos, peço que esqueçam os meus sermões contra Nicolas e Atrias. Vamos dar um crédito de confiança. Vamos esperar que eles reapareçam e que voltem a se aproximar de nós.
O padre estava falando de um púlpito novo. É que a igreja nem parecia ser aquela de antes, de linhas arquitetônicas tão acanhadas. Agora, se constituía num templo como aqueles encontrados somente nas cidades grandes. O povo de Botu, vamos ser logo diretos, enricara, melhorara de vida. E tudo, então, ficou mais fácil para o padre. Dinheiro não lhe era problema. Enchia as burras com enorme facilidade. As ofertas, durante as missas, eram realmente dadivosas, significantes. E o padre aproveitava aqueles ventos favoráveis, promovendo uma verdadeira remodelação na igreja que, inclusive, passou a contar com uma torre nova e mais alta.
– Botuenses, abram os olhos, apaguem de suas lembranças as desgraças. Esqueçam tudo quanto de ruim caiu sobre vocês. Pensamento negativo só atrai coisa que não presta. Tragam em suas lembranças apenas as poucas coisas boas do passado, e enterrem as desgraças acontecidas.
Aonde queria chegar o padre? Todos os presentes ali no templo faziam-se essa interrogação. Estavam ansiosos para saber, finalmente, o que o padre realmente estava querendo.
– Meus filhos, minhas filhas, prestem atenção. Compreendam a mudança de pensamento do seu pastor. Trouxeram-me argumentos que, na verdade, não tive como contestá-los. Perguntaram a mim e agora eu pergunto a vocês. Teria o Nicolas cometido, durante toda a fase estranha de sua vida, algum mal a quem quer que seja? Haverá, dentre qualquer de vocês, quem possa dizer que ele cometeu um mal? Foi esta a pergunta que me fizeram, e eu não tive saída, meus irmãos. Não tive saída mesmo. Estou agora inteiramente convicto de que jamais ele fez mal a quem quer que seja…
Lembrou-se o padre, por um momento, do ato benigno por ele mesmo testemunhado. Testemunhado por ele e por Sinárdio, o dono da loja de tecidos Irajá. Sim, relembrava o padre o episódio sanguinolento a que assistira. Ficara bem nítido em sua mente que a turba, apavorada em face dos movimentos de Nicolas por sobre paus, pedras, facas, mesmo estando ferido mortalmente no peito, debandou em bloco. E só ele pôde testemunhar o momento em que Nicolas, só com o gesto de apontar com o dedo, recompôs o corpo inerte de Atrias. Mas não quis, naquela hora do sermão, admitir esse ato benéfico.
– Sim, jamais ele praticou ato que não fosse impregnado de bondade, esta é a verdade. Então, meus irmãos, é bem possível que estejamos enganados nessa perseguição. É bom que a gente mude de pensamento.
Um clarão invadiu, de repente, o corredor da nave principal. Era um feixe de luz que vinha de fora para dentro da igreja, numa inclinação que o fazia incidir diretamente sobre o altar. Nicolas e Atrias caminhavam juntos, dentro desse feixe de luz, destinando-se em direção ao padre Messias, que estava no altar. Ao chegarem, o clarão desapareceu e os compadres ficaram no templo, num comportamento normal, natural, como se nada lhes tivesse acontecido.
O padre Messias ficou apavorado. Seria, então, ali dentro de sua igreja que outra desgraça aconteceria. Os fiéis, certamente, viriam sobre Nicolas, para estraçalhá-lo. Um tremor tomou conta de todo o corpo do padre. Ficou pedindo a Deus que suas explicações tivessem encontrado eco junto àquela assistência. Voltou ao seu estado normal logo que percebeu a passividade dos fiéis, todos em seus lugares, apenas curiosos, todos levantados, olhares dirigidos para o altar onde estavam os dois compadres reaparecidos.
Elvego sorriu bastante contente, olhando de soslaio para o padre Messias, como a lhe dizer que finalmente ele havia demonstrado estar com a razão.
Daquele dia em diante, todos os botuenses passariam a ter os dois compadres, todos os dias, sem mais nenhum mistério a envolvê-los, levando o mesmo padrão de comportamento que era de todos conhecido: de casa para o lago Borrado; de casa para a igreja, nos dias de domingo, naturalmente, alegremente, como era do costume deles.
Elvego se achou no direito de ser o primeiro a manter conversa reservada com Atrias e Nicolas. Mais com este do que com aquele. Afinal, tudo ficara resolvido, e fora Elvego quem sempre esteve à frente de tudo. Aliás, no começo se podia dizer que ele agia como um intrometido, aproveitando-se até da situação de não haver autoridade presente na cidade. Depois, como se sabe, ele ficou mais à vontade, muito mais à vontade, pois o prefeito, a nulidade de prefeito que era o Floripes, lhe dera carta branca para cuidar do caso. E não só do caso propriamente. Elvego estava presente em todas as dimensões de uma gestão que seria de Floripes, a qual ele as transferiu, as delegou, de fato, à pessoa de Elvego. Neste passou a confiar cegamente, tanto que até lhe entregou com muita confiança a fase difícil atravessada pelo seu filho Osival Sahino, o Sival.
Na casa 345 da rua do Tambor, presentes Nicolas e Atrias e a mulher de cada um, Elvego começou a puxar conversa:
– Como é, Atrias, quer que eu ligue o gravador?
– Prá que, meu senhor? Que está pretendendo?
Elvego ligou o aparelho. Logo apareceu uma voz rouca, aquela voz conhecida de Atrias. Ele não podia de maneira nenhuma negar. A voz era sua. Nicolas balançou a cabeça, afirmativamente. Sim, aquela era, sem dúvida, a voz de seu compadre.
Elvego pediu a todos que ficassem em silêncio. E todos passaram a escutar, até que aquele diálogo, ou melhor, aquele monólogo chegou ao fim.
– Que danado é isso, compadre Atrias? – perguntou, espantado, o pescador Nicolas.
– Que é isso pergunto eu ao homem aí…
– A voz não é sua, homem? – questionou Elvego.
– É, sim, a voz é minha, sim senhor.
– Então?…
– Mas eu não me lembro de ter falado isso tudo aí. Nunca em minha vida eu falei isso. Eu sou capaz até de lhe jurar.
– Que é que o senhor está me dizendo?
– Isso mesmo que o senhor está ouvindo. Nunca falei isso aí que eu acabei de ouvir.
Elvego, admirado com o que ouvira de Atrias, voltou-se para Nicolas.
– Então, Nicolas, fale. Você agora fala normalmente, não é?
– Que é isso, meu senhor, nunca fui mudo em minha vida.
– Está desconhecendo o poder espantoso que você tanto demonstrou a muita gente aqui em Botu?
– Que poder é esse de que o senhor está falando? Não estou sabendo de nada disso.
Bastava só aquele pequeno diálogo para Elvego. Ele já havia compreendido tudo. Nicolas, realmente, não se lembrava de nada daquela situação inusitada que lhe acontecera. Estava simplesmente do mesmo jeito que sempre fora. O pescador afeito à profissão que ele sempre assumiu com verdadeira arte.
Elvego, então, procurou, feito verdadeiro Tomé, tocar nas partes do corpo de cada um dos compadres. E percebeu que ali não existia sinal, cicatriz nenhuma daqueles ferimentos de que foram alvos, tão violentamente.
– Que é que se passa, meu senhor? Então o senhor chega aqui na minha casa, pede licença, me faz perguntas esquisitas, traz, também, o Atrias, liga esse aparelho aí… Está certo que eu ouvi a voz de meu compadre Atrias. Mas ele veio foi com uma estória esquisita. E o pior, me botando no meio – e dirigindo-se para Atrias – Que é isso, meu compadre? Está me estranhando?…
Elvego viu que não havia mais o que conversar, e saiu.
– Candidinha, pula belchinha!
O menino Lhiono, filho do albergueiro Shiresto, comandava o grupo de guris.
Mudara tudo na cidade, naquela cidade que ganhara nova roupagem. Nem parecia a de quase dois anos atrás. Mas, com Cândida, as coisas continuavam na mesma. A verdureira de sempre. O dissabor por que passou, separada de João Ventura, era coisa do passado. Ele voltara para casa. Perdoara a falta cometida por sua mulher.
– Candidinha, pula belchinha!
Miserável! Ah, iria ela se queixar ao albergueiro. Era bem certo que ele não concordava com aquele procedimento do filho.
Cândida vinha de mais um dia de labuta, na feira. Dirigia-se com destino ao ponto do ônibus, que a levaria, juntamente com todos os demais passageiros, evidentemente, ladeira do Barril acima, para suas casas.
– Eu perco o danado desse ônibus, mas eu vou reclamar ao pai desse atrevido.
Coitado do garoto. Agora Cândida pretendia exigir uma providência enérgica da parte do pai dele. Daquele dia em diante, terminaria a farra que sempre fez com ela, uma velha senhora a quem ele não fazia por onde respeitar. Ele e seus colegas não poupavam uma oportunidade. Parecia um massacre. Ela não merecia aquilo. Sempre viveu falando e continuava ainda com aquela mania de falar, de conversar, de puxar assunto, mas, com isso, não ofendia ninguém.
– Senhor Shiresto, eu não agüento mais. Seu garoto está me levando na brincadeira. Sei que o senhor não concorda com esse procedimento do seu filho.
Cândida, porém, contou tudo aquilo que já sabia o albergueiro. É que não somente o seu filho, mas grande parte da gurizada da cidade gostava de mexer com a velha senhora. Sabiam que ela não gostava da brincadeira. E isso aumentava ainda mais o gosto da provocação. Riam, davam gargalhadas. Era para eles uma verdadeira festa.
– Pelo amor de Deus, senhor Shiresto, venho lhe pedir providências. E peço, porque acho que o cabeça dessa brincadeira de mau gosto é o seu filho.
Shiresto, albergue cheio, naquele dia, fim de feira, estabelecimento em reconstrução.
– Lhiono, venha cá.
O garoto se aproximou.
– Peça desculpas a dona Cândida, peça.
Os jornalistas, ainda hospedados no albergue, assistiam à cena, esperando ver em que daria tudo aquilo. Não tomavam partido. Gostavam de Cândida, mas também reconheciam que o ato praticado pelo garoto era algo compreensível, coisa de criança mesmo.
Elogiaram, enfim, a atitude de Shiresto que não passou daquela simples reprimenda feita ao filho. Quanto a Cândida, viram-na sair satisfeita e alegre. Na verdade, ela não queria que Shiresto impingisse castigo físico ao menino. No fundo, no fundo, ela era mulher bastante compreensiva.
Os habitantes da cidade, teriam, dentro em breve, um serviço de grande utilidade que em muito ajudaria a todos, em suas atividades diárias. É que, da Capital, trouxeram a idéia de construir, entre os dois planos da cidade, uma torre com um elevador, ligada à parte superior por uma passarela. Igual, aliás, àquela existente em outra cidade importante, e tão destacada em cartões postais. Botu, então, passaria a ter também um destaque como aquele. E, de sua construção em diante, os botuenses contariam com aquele serviço essencial, que lhes garantiria a locomoção entre os dois planos, sem depender dos horários dos ônibus e outros transportes. E locomoção a preço tão barato, que praticamente se aproximaria da gratuidade. Era mais uma realização que aconteceria naquela cidade que antes se podia dizer do fim do mundo, a qual, agora, estava sendo alvo de crescimento e de interesse de muitas pessoas de fora.
– Vai ficar realmente muito bom, Anastácia. Agora você pode ir em casa quantas vezes quiser. E eu também, ora! – assim se exprimia Cândida, em ligeiro diálogo com Anastácia.
A conversa mantida entre as duas senhoras dizia respeito a algo que, realmente, estava prestes a se concretizar, precisamente a construção da grande torre. Os trabalhos já haviam começado. Era um vaivém de homens e de máquinas, subindo e descendo os andaimes. Isso realmente prendia a atenção de quantos por ali passavam. Dava vertigem só olhar o grande espigão. A torre já estava quase chegando ao final de sua construção. Seria superior àquela da cidade famosa. Seria mais imponente. Botu teria também o seu cartão postal.
– Essa nossa cidade, Cândida, tem crescido assustadoramente. Você concorda comigo?
– Claro, Anastácia. E eu acho que com isso tudo estamos conquistando uma grande vitória. Todos estamos saindo vitoriosos. Não é mesmo brincadeira, minha filha (este era um tratamento íntimo que as duas se permitiam ultimamente). Veja você, Anastácia, como todos nós padecemos com tudo aquilo que de estranho aconteceu entre nós.
– Minha filha, nem fale, é bom a gente enterrar isso. Esquecer.
– Mas eu estou só falando, minha filha. Viu como a desgraça aconteceu a tanta gente? Inclusive a mim. Graças a Deus, tudo foi superado. E o melhor de tudo é que recuperei o meu marido. Graças a Deus.
– Vitória, vitória, só mesmo uma palavra como essa para explicar tudo de bom e de melhor que está acontecendo em nossa cidade, minha filha. Parece mesmo uma coisa caída do céu, depois daqueles acontecimentos, daquelas tragédias todas. Eu disse que você não falasse sobre elas, mas eu agora é que estou falando. Minha filha, doeu muito a morte de tantos conterrâneos. Desmantelou a vida de muitos o aparecimento daquele estranho objeto. Todos prevendo o fim do mundo fizeram a língua bater nos dentes.
– Inclusive eu, não é?
– Vamos esquecer essa estória, minha filha.
A conversa entre ambas acontecia, quando se destinavam para o ônibus que as conduziria à cidade alta, ao fim de mais um dia de feira ali em Botu.
Sival chegou ao albergue, demonstrando um ar de satisfação, um ar de plena alegria, feliz da vida, por estar agora vivendo naquela cidade de Botu, a cidade onde nascera, lugar que sempre guardou em seu coração, mas o entristecia pelo fato de ser parado no tempo e no espaço, sem nenhuma real perspectiva de desenvolvimento. Seu sorriso, agora, ia de um canto a outro da boca, convicto de que, doravante, seus colegas de colégio não mais zombariam dele. Na verdade, ele é que poderia zombar dos colegas, pois a cidade deles, a grande Divinópolis, dava demonstrações de que não saía do canto, não mais se desenvolvia, como antes. E ficara, então, assistindo ao progresso espantoso de Botu.
– Ele está aí em seus aposentos, senhor Shiresto?
Sim, Sival recebeu prontamente a informação de que Elvego estava lá no albergue, em seu quarto, repousando, pois fazia pouco tempo que terminara sua refeição noturna.
Sival bateu à porta do quarto e logo foi atendido.
– Claro, meu rapaz, vou jogar com você. Com muito prazer. Trouxe o tabuleiro?
É óbvio que Sival o havia levado. Procurara Elvego justamente para uma partida de xadrez. Este observou o rapaz detidamente e pôde ver que nele se operara mudança; mudança que o tornava igual àquele Sival que ele conhecera nos primeiros dias de sua permanência na cidade. Que bom!
Começaram a partida. Os jornalistas torciam por Sival. Admiravam-se de ver aquele jovem dando demonstração de quanto era bom naquele jogo.
– Vamos, senhor Elvego, é a sua vez.
Até o vigésimo quarto lance daquela partida tão bem disputada entre Sival e Elvego, o jogo permanecia em perfeito equilíbrio. A platéia ficava torcendo por uma vitória do rapazola. Sua última jogada, por sinal, fora espetacular. Colocara Elvego numa enrascada. Jogara com o bispo da casa preta, pondo em cheque o rei adversário e, ao mesmo tempo, pondo em situação indefensável a dama das pedras brancas. Os jornalistas ficaram dando gargalhadas.
– E aí, sabichão, perdendo para um rapazinho como o Sival?! Você não é o campeão de xadrez?
Elvego fez cara feia. Não gostou da explosão de satisfação exposta no semblante de cada jornalista. Epistrau era o que mais se sobressaía. Não fazia reserva de sua satisfação. Queria ver Elvego derrotado.
– Calma, senhores, joga-se, aqui, o xadrez. É um jogo que exige concentração. Desse jeito que vocês estão agindo, parece que não têm a mínima noção dele.
A observação de Elvego, em tom professoral, deixou os jornalistas um tanto sem graça.
Os lances, então, foram tendo seqüência, Sival jogando na maior concentração, cabeça posta entre as duas mãos. Só mudava de posição, quanto tinha de movimentar uma peça.
– Jogue, Sival, que eu quero lhe dar xeque-mate. Em três jogadas.
Sival ficou lívido. Olhou mais ainda detidamente o tabuleiro. Fez as observações indicadas por Elvego, a partir de sua última jogada, e se deu por vencido, derrubando o rei.
– O senhor, realmente, é um exímio jogador. Parabéns!
E Sival saiu, decepcionado, deixando também todos os jornalistas ali presentes mais decepcionados que o próprio perdedor da partida. Cada um procurou puxar assunto com outro, desviando a direção do olhar interrogativo que Elvego lhes dirigia.
– Precisamos de um diálogo franco, padre. Estou falando sinceramente, do fundo do meu coração – assim se expressou Elvego, tentando iniciar uma conversa com o padre Messias.
– Que é que há? Está em apuros? Está em dificuldades?
– Que é isso, padre? Nada que não possa ser superado.
– Então, qual o interesse em dialogar comigo, agora?
– Messias… sim, eu vou tratar você assim. Vamos colocar de lado essa estória de padre. Fique isso lá para seus paroquianos. Eu sei que você é inteligente. Somos, melhor dizendo, muito inteligentes. Podemos não ser tão cultos um quanto o outro. Permita-me a imodéstia. Tenho mais experiência e conhecimentos do que você, seu aproveitador – disse essa parte final de sua afirmação, esboçando um ligeiro sorriso no canto da boca.
– Também, você agora está me ofendendo. Estou recebendo você aqui na minha casa, e o que ganho é ofensa de sua parte.
– Esqueça isso, homem. Não me passou pela cabeça essa intenção.
– Que quer dizer, então? Diga. Fale logo.
– Messias, estamos nós dois atolados no problema, no enigma; o enigma que atingiu a todos. Todos tomaram conhecimento dele, sentiram-no na própria pele. Mas hoje a situação reverteu. Se houve mistério, mistério hoje não há mais. O povo nem se lembra do acontecido. Mas nós temos consciência de que algo de misterioso aconteceu nesta cidade.
-É, você tem toda a razão. Só nós dois somos sabedores de que o mistério existiu. O povo já esqueceu suas preocupações, nesse sentido. As pessoas não querem mais nem ouvir falar nisso. Só pensam em usufruir o progresso. Mas justamente aí é onde reside uma grande ponta desse mistério. Como é que se explica essa cidade, de repente, tomar volume, aumentar, progredir, melhorar?! Ah, que isso foi e continua sendo bom, não tenho dúvida! É maravilhoso. Mas é preciso perscrutar acerca do real motivo que está ensejando tudo isso.
– Sim, e nós sabemos que essa mudança da cidade passa pelo mistério.
– Que mistério principalmente você pensa que é?!
– Nicolas, homem. Nicolas. E poderia ser outro? E, a propósito, tenho uma confissão a lhe fazer.
– Que confissão? Pode ser aqui ou no confessionário?
– Não brinque comigo, seu espertalhão, seu descarado.
– Epa, vamos continuar a conversa. Não vá por esse caminho. Ponho-o daqui para fora.
– Põe nada.
– Diga mesmo a sua confissão. Quero, agora, você na minha mão!
– Ora, deixe disso. Não pense que será fácil. Não sou nenhum imbecil. Aliás, nem precisava dizer isso, Messias.
– Vamos, então, conte.
– Eu provei do poder de Nicolas!
Parnimas era com certeza, dentre todos os habitantes da cidade, a única demonstração evidente do poder exercido por Nicolas. Ninguém mesmo, exceto ele, havia recebido direta e permanentemente a influência de alguém que detinha aquele poder estranho. Passara longos anos de sua vida amargurando a cegueira de que fora vítima por causa da surra que levara do próprio Nicolas, dentro do lago Borrado. Fora, então, contemplado pelo próprio poder maravilhoso do pescador e, por isso, não cessava de proclamar aos quatro cantos que ele tinha sido realmente poderoso, e que a ele devia a restituição de sua visão. Passou, com isso, a ser motivo de xingações, a não ser levado a sério, a ouvir nas ruas por onde andava afirmações duvidosas sobre sua saúde mental. Não mais cabia na cabeça do povo que Nicolas, um homem simples, tão conhecido de todos os habitantes da cidade, tivesse tido o poder de curar um cego. Parnimas só podia estar variando, para dizer uma asneira daquela. Verdade é que o povo não cessava de admitir que aquilo fora uma graça alcançada por Parnimas. Consideravam que ele conseguira aquela graça, e que para tanto deve ter feito um grande número de orações.
Posta de lado essa discussão entre Parnimas e a população, o certo é que o ex-deficiente visual mudara de vida completamente, para melhor. Não era mais aquela pessoa cujo comportamento já se constituíra numa marca entre os botuenses. Todos estavam acostumados a ver nele a figura do homem de vestes simples, chapéu de massa à cabeça, sempre portando o violão, e se postando, invariavelmente, na porta da igreja de Santa Júlia, retirando da caridade pública o seu sustento. Agora, todavia, era outro homem. Homem de negócios. Aproveitara a febre que ativara as relações comerciais em Botu. Ingressara no comércio do pescado. E ia seguindo muito bem em sua nova atividade. Graças a Deus. Ou a Nicolas? A polêmica, mesmo assim, persistia.
– Besteira, Parnimas, acabe com isso, meu filho, você recebeu sim uma graça do céu!
– Foi não, padre Messias. Foi não. Recebi de Nicolas, através do seu poder, algo que mexeu profundamente com os meus olhos, e, quando menos esperei, vi que estava vendo. Vendo de verdade, como agora estou vendo o senhor.
– Está certo, Parnimas. Agora, facilite as coisas para mim, para todos, enfim. Não ande dizendo isso de esquina em esquina. Isso só torna as coisas difíceis, principalmente para mim. Tenho certeza de que você tem consciência de que essa sua afirmação só pode me trazer problemas.
– Está certo, padre. Vou evitar falar sobre esse fato. Agora, para o senhor, eu mantenho firme a minha certeza de que não foi outra coisa que me curou, senão a intervenção de Nicolas.
– Pare! Pare! Não quero mais ouvir isso de sua boca. Saia daqui. Saia!
Parnimas sentiu que o padre estava se exasperando, e decidiu logo desaparecer dali de sua vista.
Floripes, o prefeito, tinha, agora, o que sempre mereceu. Continuava com aquela idéia metida na cabeça. Achava que outra coisa não podia fazer, senão perseguir e alcançar o poder. Mas, coitado, como era fraco! Mais do que ninguém, Elvego tinha conhecimento de sua fraqueza. Queria o poder. Não lhe interessava se não tinha competência para gerir nem mesmo o orçamento de sua casa. Era só a vaidade de ser prefeito, de ter o poder nas mãos. Fora, já, por três vezes, prefeito de Botu. A bem a verdade, nunca fora prefeito, coisa nenhuma. O padre Messias, sim, este é que tomava conta da prefeitura. Floripes sempre lhe foi submisso. Atendia-o em tudo que ele determinasse. O padre Messias considerava pura perda de tempo pedir-lhe qualquer coisa. Fazia logo era a determinação, a ordem.
As coisas mudaram um pouco depois que Elvego chegara em Botu. O prefeito achou que poderia utilizá-lo, tirar proveito dele. Mas, como esteve enganado! Utilizar-se de Elvego?! Também, por outro lado, Elvego jamais seria homem para deixar continuar uma situação daquelas. Esteve ao lado de Floripes durante todo aquele período de dificuldades, não se deixando dominar por qualquer comando absurdo que saísse da cabecinha nada privilegiada do prefeito. Agora que as coisas entraram nos eixos, afastara-se de Floripes. E, com isso, o homem estava totalmente desesperado. Como poderia fazer para retornar à prefeitura? Sozinho, sem o auxílio de alguém, isso era inteiramente impossível. Disso ele tinha convicção formada. Sabia de sua deficiência, de seu pouco conhecimento administrativo. Mas a sede do poder fazia-o cego. Não importava se agora não mais dispunha de apoio forte, firme e vigoroso como o que lhe vinha dispensando a pessoa de Elvego. Disputaria, mesmo assim, a eleição. Achara que sempre haveria um meio para ludibriar o eleitorado. Sabia que a realidade atual era outra bem diferente. Aquilo tudo que foi o passado havia sido apagado. Os botuenses não procuravam recordações amargas. Não havia mesmo espaço para elas, tamanha era a onda de desenvolvimento da cidade, como se o sopro de novos ventos estivesse fazendo nascer uma nova civilização. Floripes, na sua pequenez, via tudo isso, todo esse desenvolvimento, e queria, porque sequioso pelo poder, continuar com as rédeas da prefeitura, custasse o que custasse.
– Nada disso, senhor Floripes. Nada disso. Não conte comigo. O senhor me interpretou muito mal. Muito mal mesmo. O senhor esteve, ultimamente, afastado de tudo. Nada fazia. Eu é que sempre aparecia. Estava à frente de tudo. Mas eu o fazia sem o menor interesse pessoal. Sua figura apagada, inclusive, o retirou da crista dos acontecimentos, de todos os acontecimentos terríveis que aqui eclodiram. Vejo, hoje, passada a borrasca, o senhor aos meus pés. Tenha graça! O senhor, com tal atitude, está mesmo menosprezando a minha pessoa. Não pense que estou satisfeito com o senhor. Eu que tanto lhe fiz, ser alvo, agora, de uma proposta indecente como a sua! Ponha-se no seu lugar.
– Calma, senhor Elvego. Eu não quis ofender o senhor.
– Mas ofendeu. E muito. Estou profundamente magoado.
– Está bem, esqueça o que lhe propus. Mas, eu lhe digo, com ou sem o seu apoio, eu serei, novamente, prefeito de Botu.
Agora, assim ficou pensando Elvego, o cego de Botu estava sendo Floripes. Pois via, e não enxergava.
A cidade, lá fora, sem o seu burburinho normal. Nem o vaivém das pessoas, nem o dos carros.
Era já alta madrugada. Na matriz de Santa Júlia, a meia luz no recanto onde situado o confessionário, padre Messias ali se deixara ficar, sem dar conta do passar do tempo. Mãos no queixo, pensativo, punha-se a refletir no que lhe segredara o intelectual e culto Elvego Doso de Riela. Aquele homem…, tanta experiência, tantas viagens, tantas culturas diferentes com as quais travou relações profundas e intensas… viera lhe fazer uma confissão. Seria um momento de fraqueza dele? Sabia que Elvego não professava religião nenhuma. Também sabia que, no que pese seu distanciamento de religiões, não era um ateu. Cria em Deus, aliás com uma fé inquebrantável, e no modo especial dele de ser. Por que, então, procurara por ele? Sim, sua declaração de que provara do poder de Nicolas, só podia ser isso! Realmente, se tal fenômeno lhe tivesse acontecido, teria ficado muito eufórico. Não era para menos. Ter, não nas mãos, não em qualquer dos sentidos, mas no corpo por inteiro a determinação superior de sobrepor-se ao que existe em seu derredor. Pois era o que acontecia com Nicolas. Pelo menos o padre tivera a oportunidade de presenciar, de testemunhar. Esteve, a princípio, levado pela sua esperteza, pela vontade de se notabilizar, voltado para Nicolas, defendendo-o como uma coisa misteriosa, caída do céu, abençoada por Deus. Quando viu que lhe era nocivo, pernicioso, recuara. E recuara no momento certo de evitar contra si um processo amargo de suspensão de suas ordens sacerdotais. Impingiu verdadeiro bombardeio contra Nicolas, fazendo a cabeça de seus fiéis, até que, enfim, ele apareceu e foi aquela cena triste, sanguinolenta. Causava-lhe repugnância só em pensar nela. Estava, então possuído da certeza de que Nicolas não fora fenômeno, coisa nenhuma, tanto que ele agora tinha voltado para os seus, para a sua casa, para o lago Borrado, de onde continuava a tirar o sustento para a sua vida. Mas eis que vem Elvego lhe dizer e lhe confessar que provara do poder de Nicolas. Ele, que detinha o poder espiritual ali, não teve esse privilégio. Nicolas, ao invés de conceder essa oportunidade a ele, não; deu-a foi a Elvego. Sentia, por que não, uma ponta de inveja que o invadia inteiramente. Como seria aquele poder? De que forma ele agia? Como eram as reações do corpo e da mente? Elvego provou disso e ele, não. Era uma injustiça. Agora, que tudo havia passado, era-lhe impossível ter uma experiência daquela. Elvego, só ele é que foi privilegiado. Lembrava-se, naquele momento, do dia e da hora em que Nicolas esteve na sua igreja, na igreja de Santa Júlia. Repassava como uma fita cinematográfica as cenas dos quadros da via sacra caindo no assoalho e espatifando-se. O episódio acontecido com o ostensório, também lhe veio à mente. Pois Nicolas fez aquilo tudo, porque tinha poder. Um poder que o apavorou, mas ele não teve cabeça, capacidade suficiente para considerar que em Nicolas nada de mal havia. Ah, se ele tivesse podido alcançar isso! Talvez aqueles desdobramentos todos não tivessem acontecido. Nicolas, destruindo aqueles objetos sacros, queria dizer alguma coisa, algo de importante, talvez quisesse mostrar que aquilo era de pouca valia diante do poder que ele podia ostentar e demonstrar a todos ali. Não lhe movia qualquer sentido de produzir uma maldade. Ah, cabeça oca que ele era, por não ter captado exatamente o sentido das coisas! Tivesse agido diferente, quem sabe, estaria utilizando daqueles poderes, teria recebido treinamento necessário de Nicolas, durante o tempo em que detinha aquele forte poder. E hoje estaria soberano, reinando absoluto, fazendo e acontecendo, mostrando aos homens como é que se tem poder, como é que se faz com o poder. Todos o respeitariam. Inclusive o inteligente e culto Elvego. Sim, padre Messias saberia muito bem como usar aquele poder.
Agora, pois, Botu contava com duas pessoas que tinham a certeza e a consciência dos fatos estranhos que ali aconteceram. Elvego, de um lado, por haver sentido na pele, por ter tido a oportunidade de tratar de perto os dois homens enigmáticos. O frouxo e incompetente Floripes lhe dera carta branca para isso. Veio, então, o padre a ficar sabendo também. Definitivamente informado de que tudo aquilo que aconteceu em Botu não era fruto de trabalho, de progresso que chegara da noite para o dia naquela cidade do fim do mundo. Mas Elvego e Messias só poderiam manter para si mesmos esse lado da verdade, pois era perigoso e, além disso, era contraproducente trazer aquela população informada da realidade. De que lhe valeria tal informação? Não iria influenciar em nada. Ficasse esse lado da verdade na posse apenas de Elvego e dele, padre Messias.
Era claro o dia, quando o padre Messias, levantando a cabeça, viu os primeiros raios do sol adentrando o templo, e incidindo, diretamente, através do vitral da janela, no confessionário onde ele se encontrava. O padre retornou da retrospectiva que fizera durante toda a madrugada, levantou-se, e caminhou direto para o seu quarto.
Floripes ficava tomado de profunda indignação e de evidente inveja, ao ver o seu nome descambar na preferência dos botuenses. Agora seria a vez do Pedro Honorato. Homem de bons propósitos, educado, fino, inteligente. Perdera a disputa da prefeitura por três vezes. Sempre ganhava o Floripes. Este, por sua vez, jamais podia dizer que o mérito da vitória era seu. Padre Messias, embora distante de palanques – o povo condenava homem de batina metido em assuntos políticos – usava a influência do púlpito e, com isso, sempre se escondeu na figura apagada de Floripes, conseguindo fazê-lo prefeito por três vezes. Via-se, então, após a verdadeira onda de progresso que atingiu a cidade de Botu, o seu prefeito efetivamente transtornado. Considerava uma injustiça o que acontecia com ele. Dominou a cidade por tantos anos. Quando, então, se operava aquele crescimento espantoso, quando Botu saíra da inexpressiva condição de cidade situada no fim do mundo e se tornara um centro bastante desenvolvido, progressista, ele era jogado para fora, na lata do lixo, qual papel velho, imprestável. Sentia, destarte, fugir de suas mãos uma situação mais favorável, pois que Botu passara de cidade pobre a cidade rica. Edifícios novos começaram a mudar a paisagem urbana da parte velha. O desenvolvimento não chegou ao ponto de mudar a feição, a nota característica, fundamental daquela urbe, cujos planos se distinguiam nitidamente não só geograficamente, mas pela destinação que se lhes deu: o superior, para as residências; o inferior, para todos os tipos de atividades normais a qualquer cidade. Com a explosão que se verificava, na parte baixa, já havia quem avançasse para além do terreno firme onde se situava a cidade, processando-se, então, o aterro da área pantanosa que lhe era contígua. Uma verdadeira agressão ao meio ambiente. Mas quem é que poderia segurar o progresso?
A cidade já contava com sua majestosa torre, pintada em cores muito vivas, amarela e azul, dentro da qual corria um elevador bastante ágil, seguro e confortável, para o transporte de pessoas e de mercadorias. Com ele, vencera-se, definitivamente, a grande dificuldade de comunicação que havia entre a cidade alta e a cidade baixa. E o lugar passou a contar com aquele cartão-postal que era, verdadeiramente, de uma beleza de encher a vista.
O prefeito tinha lá suas razões para andar cheio de indignação e de revolta, mas a verdade é que a situação mudara para melhor, e ele, lamentavelmente, não reunia condições para se colocar à altura da nova realidade.
A paróquia de Botu estava de padre novo. A Diocese já havia sido condescendente demais com o padre Messias. Tolerara exageradamente seus gestos e atitudes como pastor de almas daquele que muitas pessoas até chamavam de lugarejo, distante, no fim do mundo. Fora atrevido, afoito, mostrara assim escancaradamente seu verdadeiro caráter de aproveitador, imiscuindo-se em assuntos da cidade que lhe não diziam respeito e, o que era pior, a demonstração de sua verdadeira marca pessoal, a de se valer da autoridade religiosa para galgar notoriedade e, com isso, atingir a fama. Era verdadeiramente um ambicioso, um inescrupuloso.
O bispo Agamirhom sentia a gravidade da situação. As coisas agora estavam acentuadamente visíveis, pois Botu não mais era a cidade esquecida, o fim do mundo onde nada despertava interesse. Manter padre Messias no posto era uma precipitação das maiores. O crescimento da cidade já o movia a alçar vôos espetaculares e mirabolantes, para o fim de que sua pessoa ali se mantivesse com a mesma desenvoltura e a mesma importância que até então ostentou. Antes que tal acontecesse, veio a providencial decisão de afastá-lo da cidade. A paróquia de Santa Júlia reclamava, há muito tempo, a presença de um padre verdadeiro, sem interesse pessoal, voltado única e exclusivamente ao pastoreio do rebanho.
Na estação, cheia de gente como naturalmente acontecia nos dias de embarque (agora, diferente de antes, havia trem quatro vezes por semana), padre Messias, malas prontas, aguardava a hora da partida. Os que lhe foram mais próximos, mesmo diante do fato desagradável de sua saída indesejada da paróquia, fizeram-se presentes. Floresbela chorava rios de lágrimas. Fora com o padre Messias que mais demoradamente exercera o papel de diretora do coro da igreja. Alteíades, carrinho estacionado à frente da estação, acompanhado de Helcina, sua amada esposa. Cândida, Anastácia. Até mesmo Parnimas estava lá, resolvido definitivamente a perdoar o vigário que lhe dera aquele bofete, depois daquela provocação que lhe fizera. Bem feito, ele agora achava que mereceu. Também ele sentia a perda do padre Messias.
– Você aqui?!
– E por que não?
Elvego fora também à estação. Despedia-se de Messias, como agora ele o tratava. Despedia-se, porém, na certeza de que, dentro em breve, ambos se avistariam na Capital, para onde Elvego se destinaria também, dentro de poucos dias.
– Fico feliz por ter vindo.
– Não se deixe desanimar.
– Eu sei que foi decisão deles, mas, na verdade, eu lhe confesso que estava caindo na realidade. Não sou idiota para não admitir que eu estiquei a corda em demasia.
– Gosto de ver assim. Já está melhorando. Pode me acreditar.
– Não me tenha, assim apressadamente, na conta de bonzinho. Eu sei exatamente tudo o que fiz. Mereço o que recebi. Mas saio daqui com toda a sorte de informações importantes. Aliás, informações a que eu junto a experiência que você viveu.
– Fale baixo. Podem ouvir.
– Agora, meu caro Elvego, só muito tarde cheguei a descobrir.
– Descobriu o quê?
– Descobri que o poder ilimitado sobre as coisas é pequeno demais para o espírito humano.
– Sim, é-me fácil sentir onde você quer exatamente chegar.
– Claro! Você é de uma percepção espantosa.
– Não é isso exatamente o que eu quero dizer.
– E o que é? Diga logo, que o trem vai partir.
– Você simplesmente usurpou-me a conclusão, que é semelhante à sua, e que eu a trago comigo desde alguns dias.
– Bom, Elvego, logo a gente se vê.
Apertou a mão de Elvego, e acenou para os demais ali presentes, que tinham ido ver a sua saída de Botu, depois de mais de quinze anos de permanência.
Tudo servia, tudo era valioso, e importav a consideravelmente para encher as páginas dos jornais.
Atraídos pelo fenômeno estranho do aparecimento de um OVNI, os jornalistas foram a fundo na sua exploração e se fartaram, com matéria de sobra, acerca de assuntos outros que se mostravam palpitantes e, quando verdadeiramente não tão palpitantes, assim encarados pela força das repetidas reportagens. Foi uma verdadeira festa. Chegar numa cidadezinha do fim do mundo com a finalidade de explorar determinado fenômeno e dar de cara com um quadro espetacular, daqueles que rendem a atenção de qualquer leitor de jornal, de qualquer telespectador. Na realidade, os jornalistas não perderam nenhuma das boas oportunidades como que dadivosamente tornadas concretas para eles, como privilegiados, distantes de tudo e de todos, como que isolados naquele fim de mundo. Foi-lhes fácil a notoriedade, pois os assuntos que surgiam eram, na verdade, espetaculares, de causar espanto, admiração, de fazer os leitores e telespectadores em sintonia com os órgãos da imprensa, acompanhando, sequiosos, no dia a dia, tudo o que provinha daquele lugar tão distante como era a cidade de Botu. Dali, sem dúvida, estavam surgindo fatos de prender a atenção de qualquer pessoa por menos bem informada que fosse. Não era para menos, realmente. A cobertura daqueles fatos, chegados assim, bem aos poucos, como a conta gotas, na Capital, entusiasmou a muitos dos profissionais da imprensa. Aportaram em Botu, da noite para o dia, em número que dava quase para encher um vagão de trem. A permanência, ali, prenunciava-se rápida, porque talvez não tão interessante assim o fato que investigariam – um lugar comum acerca do tema “objetos voadores não identificados”; mas, pelo contrário, sentiram-se atraídos por outros acontecimentos tão singulares e tão mais importantes quanto aquele que os atraíra até ali. Os fatos se atropelavam, eram de estarrecer, porque, na verdade, levavam a todos, jornalistas e leitores e telespectadores, a um estado de estupefação diante do que jamais fora previsível acontecer, pois se tratavam de experiências adquiridas num agrupamento humano e nunca vividas em parte nenhuma do mundo.
Mas o duvidoso caráter de um condutor espiritual, na cidade tão pequena e tão distante, valendo-se da credulidade do povo; a misteriosa morte dos compadres e a ressurreição de ambos; a incursão deles num comportamento que sugeria o retorno de Cristo, em sua segunda vinda, tudo isso propositadamente alimentado pelo padre aproveitador; a demonstração de um poder nunca visto, consentidamente sob o abrigo da autoridade espiritual e seu recuo, tão logo verificou o risco do comprometimento de sua autoridade, tudo isso e muitas outras manifestações espetaculares e estarrecedoras eram assuntos do passado, postos no esquecimento, porque despidas de qualquer sentido de proveito. Passaram, então, a ser encaradas como de somenos importância, pois agigantava-se, para a imprensa, o assunto palpitante da febre de uma agitada onda de progresso que atingiu aquela cidade, e que só isso é que interessava, agora, para ser explorado. A população aumentava. A cidade crescia em empreendimentos os mais diversos. Instalavam-se bancos, educandários, faculdades. O capital fora atraído e tudo quanto tinha sido de atividade ali antes desenvolvida com base no empirismo de seus moradores cedia lugar às técnicas avançadas utilizadas pelas empresas que ali se instalavam. Coitados dos pescadores, então! Assistiram, da noite para o dia, à velha colônia se curvar à organização introduzida pelas empresas que se instalaram na cidade com a finalidade de desenvolver a atividade pesqueira. Deveria pertencer ao passado o conhecimento tão bem acumulado ao longo dos anos pelos pescadores, a exemplo de Nicolas e de Atrias, só para citar o exemplo desses dois que verdadeiramente sempre se sobressaíram na perseguição dos melhores cardumes.
– Os fatos mudaram, Elvego. Você queria que eu ainda estivesse dando ênfase àquelas estórias. Disco voador…morte e ressurreição de dois homens… desaparecimento de um… reaparecimento… demonstração de poder… via sacra destruída…
– É, Epistrau, você vive de vender notícias. E estas, atualmente, passam, inevitavelmente, pelo progresso, pela verdadeira explosão da cidade. Como poder negar? Você tem razão. Venda esta notícia. Vai, agora, estar perdendo tempo, por exemplo, com dois pobres coitados na verdadeira acepção da palavra? Hoje, você não vai me negar, estão em estado de verdadeira lástima, se comparados com o nível de sua atividade normal e costumeira de antes. São homens esquecidos, abandonados. Têm a sua experiência que, entretanto, não se presta para o progresso que aqui se instalou.
– É verdade. E você concorda comigo que não posso ficar perdendo tempo com eles?
– É claro. Não se dê a esse desperdício. Não venderia uma folha de jornal.
Nicolas e Atrias, realmente, viviam agora a realidade de uma experiência descartada, imprestável. De nada serviam, ou, se serviam, era para agirem segundo o comando de alguém que tinha o poder e que era poderoso – a empresa com suas técnicas, com seus engenheiros.
Ainda bem que os compadres tinham, cada um, a sua casinha, onde podiam continuar a viver modesta e simplesmente, sem nenhum mistério mais a cercá-los.
Chegou o dia da partida de Elvego.
Fazia mais de dois anos que ele estava em Botu. Chegara com o fito de permanecer por poucos dias, não mais que dois meses de férias a que tinha direito. A cidade, todavia, o prendeu, ou melhor, os acontecimentos é que o devem ter prendido por ali. E, realmente, se podia dizer que ele tinha tudo para se sentir feliz, realizado. Chegar na cidade, um lugar pequeno, sem desenvolvimento, sem perspectiva de nada, e agora a estava deixando próspera, muito bem desenvolvida.
Shiresto, olhos cheios de lágrimas, afivelava as malas do albergado que batera o recorde de permanência no albergue Descanso Alegre. Achegou-se a Elvego e lhe deu um forte abraço; um abraço de despedida. Fora um freguês e tanto. Homem muito correto. Não lhe tinha dado muito trabalho.
– Que é isso, senhor Shiresto? Chorando?
Mais que de repente, Shiresto retirou do bolso o lenço, e enxugou o rosto, antes que Epistrau, com sua intervenção, chamasse a atenção de mais outros jornalistas.
No albergue, agora modificado (verdadeira transformação, pois, embora mantido o nome, face à tradição, passara à condição de hotel de boa categoria) o movimento era intenso.
– Fique em paz, e obrigado por tudo, senhor Shiresto.
Duas mulheres alvoroçadas chegaram ali, de repente. Eram Cândida e Anastácia. Ultimamente passaram a andar juntas mais do que antes.
– Esse homem ainda está por aqui? Já vai tarde, não é, Anastácia?
Cândida, com sua mania de falar, achava, tinha convicção de que Elvego era carta descartada, e que a cidade de Botu não estava precisando dele. Todos estavam indo muito bem obrigado.
– Candidinha, pula belchinha!
– Miserável!!! Miserável!!!
O garoto, o de sempre, de nome Lhiono, filho do albergueiro Shiresto, havia sido repreendido pelo pai por aquele motivo. E agora repetia a mesma traquinagem. Coisa de criança. A irritação da velha senhora é que muito contribuía para aquela sua recalcitrância, pois lhe significava a realização de um estado de contentamento e de prazer, no qual se sentia envolto ao deixar a velha exasperada. Shiresto, ainda de olhos vermelhos das lágrimas que desceram pela face, ponderou:
– Dona Cândida, tenha calma. Compreenda. É uma criança.
Mal tiveram concluído aquele curto diálogo, um apito forte lhes desviou a atenção. Era o trem na estação, ali perto, avisando que a partida estava iminente. Todos rumaram para lá. Inclusive Cândida, mais para ficar por dentro do fato que era aquela despedida do que para se despedir propriamente.
– Candidinha, pula belchinha!!
Dessa vez não era a voz isolada do filho do albergueiro, mas um grupo de guris que gritava, aos berros, para que todos ouvissem, e para o desespero ainda maior de Cândida, que sentia a situação cada vez mais piorar e lhe fugir ao controle.
– Adeus! Adeus! Adeus!
Todos os presentes, menos Cândida, respondiam com acenos de despedida, enquanto Elvego se dirigia para tomar lugar no trem. A querida e loquaz senhora gostava muito do padre Messias, e achava que Elvego influíra em sua saída da cidade.
Sentado já em sua poltrona da 1ª classe, Elvego ficou a imaginar e lhe vieram à lembrança as figuras simples de Nicolas e de Atrias. Culpou-se por não ter ido à casa de ambos, despedir-se. Teria dado tempo, sobretudo porque, agora, se dispunha de um veículo tão rápido e confortável como o elevador. Sem muita demora deslocar-se-ia entre um e outro plano da cidade. Era um pé lá e outro cá. Não correria o risco de perder o trem.
A partida aconteceu e, numa curva, já distante, muito para além da área pantanosa, Elvego pôde divisar a cidade de Botu. Pela última vez em sua vida. É que não gostava de rever os lugares que conhecia. E, então, viu-a grande, e bastante diferente; uma diferença para melhor, evidentemente. Botu estava diferente daquela cidade do tempo em que ele ali chegara, há mais de dois anos. A grande torre de concreto a dominar o panorama urbano, destacando-se das demais construções. Uma coisa realmente espetacular, de chamar a atenção.
Elvego sorriu invadido de intensa alegria. Estava retornando à Capital, lugar onde nascera. Botu ia ficando para trás e, à vista da cruz que encimava a nova e mais alta torre da igreja de Santa Júlia, já encoberta por uma pequena serra, surgiu-lhe, à mente, a imagem do padre Messias. Julgou que, naquele diálogo que com ele mantivera, tivesse sido fraco, entregando-lhe uma realidade que ele, somente ele tinha, enfim, tido o gosto de prová-la e que, ao seu ver, explicava tudo quanto de novo acontecia naquela cidade. Elvego, embora não soubesse explicar, estava convicto de que ali se operara, realmente, uma demonstração de poder nunca dantes visto. Confessar aquela sua grande experiência a um homem aproveitador como se tinha revelado o Messias… Mas, talvez, com a lição sofrida pelo padre, este devia ter sentido e notado que o poder por que sempre brigou, de forma oblíqua, teve seu apogeu naquela forma estranha, e que não foi nada vantajoso. E fora, realmente, um vazio, tal qual aquele que invadiu a mente de Elvego (avesso, como sabemos, a religiões), o que o padre sentiu e revelou.
Na verdade, o poder ilimitado sobre as coisas sempre será pequeno demais para o espírito humano.