TÍTULO IV – A PERSEGUIÇÃO

Capítulo I

 

Queriam todos, mudando abrupta e inteiramente de comportamento, o fim de tudo aquilo a que assistiam. Tiveram suas cabeças feitas ou, se não feitas, encaminhadas pelo padre Messias, que lhes mostrara a importância de Nicolas, como sendo o homem santo, o novo Cristo, enfim. Agora, porém, a pregação do padre Messias estava sendo outra. Tivera ele, depois de sofrer a pressão de sua Igreja, depois de concordar com alguns notáveis do lugar, a convicção formada de que Nicolas, ao invés de santo, era, isto sim, pernicioso, perigoso, uma arma poderosa que poderia desconstituir a ordem instituída e que padre Messias era um dos agentes importantes na manutenção dessa ordem, pela sua condição de pastor de almas – um sacerdote que fazia e muito bem a cabeça dos fiéis freqüentadores de sua igreja.

Nicolas, no entanto, em que pese a campanha que a igreja e o povo começavam a fazer contra ele, mostrava, a cada dia que se passava, o seu inusitado poder. Sem falar, sem dizer uma palavra sequer, tudo fazia e acontecia. Até a sua mulher deixara de ficar ao seu lado. Acabou não concordando com aquele novo jeito de ser do seu marido. Era um comportamento que não cabia, deveras, em sua cabecinha de mulher sem muitas letras. Também, desde aquele momento misterioso à beira do rio Opá que a coitada não sabia o que era homem. Daí…

– É para acabar de vez com essa situação inquietante. Se preciso, que o expulsemos daqui. Não pode é esse peste continuar aqui em Botu, acabando com tudo aquilo que construímos, com suor e lágrimas.

Padre Messias, falando do púlpito, inflamava consideravelmente o seu discurso e o povo, melhor dizendo, os fiéis, amedrontados com o poder inédito, perigoso do Nicolas, já lhe haviam deixado de dar atenção, e passaram a apoiar, integralmente, as palavras do vigário. Aliás, não era só o padre Messias quem adotava esse comportamento. O pastor Dinosco, em sua igreja, também fazia inflamado o seu verbo contra o pescador Nicolas. Ele também achou que Nicolas se constituía num perigo dos maiores à cidade de Botu. Seus irmãos sentiram-se profundamente ofendidos com a destruição da grande gravura existente na parede de fundo da pequena igreja.

A campanha contra Nicolas estava, realmente, nas ruas. A maioria daquele povo já estava demonstrando medo diante daquela revelação de poder a que estava assistindo, vendo um homem que nem uma palavra exprimia, mas derrubava paredes só com o olhar dirigido para ela, entortando e desentortando as coisas só com o olhar. Uma forma de agir que, a princípio, deixou a todos profundamente convencidos, ligados, crentes na santidade de Nicolas. Mas com a manifestação cada vez maior daqueles poderes, encheram-se de temor e passaram a encarar tudo aquilo como se não lhes fosse bom, mormente agora com o novo discurso que estava fazendo o padre Messias. Passaram, pois, a enxergar o perigo consistente no fato de um homem concentrar o poder. E que poder!!!

O padre foi, então, revertendo a situação, pelo menos no que dizia respeito à crença que o povo nutria em relação a Nicolas, para a qual o vigário, como sabemos, muito contribuíra.

 

Capítulo II

 

Na sacristia, seria realizada a reunião. Todas as pessoas de destaque da cidade tomaram conhecimento da decisão importante que ali deveria ser tomada. É claro que a imprensa não teve acesso. A reunião seria secreta. Seria um escândalo o que a imprensa faria, caso soubesse do propósito que movia aquelas cabeças coroadas do lugar. Afinal, tratava-se da estratégia necessária para combater o poder, que já era um verdadeiro império, revelado, a cada dia que se passava, pelo pescador Nicolas. Estava ele se tornando perigoso para aquela cidade. Muito pior do que uma bomba atômica. Nada ficava fora de seu domínio. Também um homem que tudo dominava só com o olhar destinado ao objeto de sua determinação! Uma coisa impressionante mesmo. Daí a necessidade de as cabeças coroadas deverem usar uma tática realmente eficiente para suplantar a força tantas vezes superior, revelada por Nicolas. Efetivamente, não se podia conceber tal reunião sem a presença do estranho, mas competentíssimo Elvego Doso de Riela. O padre Messias que, inicialmente, não lhe queria ver nem a cara, agora fazia questão de o ter como aliado; aliado, evidentemente, é um modo de dizer, para não exprimir o sentido de puro proveito que o padre tencionava tirar daquela cabeça realmente privilegiada, cheia de tantos conhecimentos.

– Trabalho perdido, se formos por esse lado, meu caro Elvego. Será pura perda de tempo. Eu, por mim, acho que só mesmo a morte. Ninguém pode com aquele homem. E até mesmo a sua morte vai nos dar muito trabalho. Trabalhão.

– Cruz-credo, padre Messias. Logo do senhor partir uma proposta sanguinolenta como essa! – observou o prefeito Floripes.

– Calma, senhor Floripes – interveio Elvego – O padre está muito afobado. Afinal, ele é quem mais está sofrendo com tudo isso que está acontecendo nesta cidade.

E, encarando o padre Messias:

– É preciso fortaleza de espírito para enfrentar Nicolas. Não se trata de um obstáculo de fácil remoção. Estou convencido disso. Não tenho convicção formada sobre a verdadeira origem dos poderes daquele homem. Só sei dizer que seus poderes são, realmente, imensos. E acho que o argumento da força, padre Messias, é o que menos funciona num caso como esse. Discordo inteiramente do senhor.

– Mas, senhor Elvego, nós queremos é a sua aliança, o seu apoio para solucionar o difícil problema que estamos atravessando. Não queremos discurso bonito. Queremos ação. Botar para quebrar. Definir a questão de uma vez.

– Sendo assim, não contem comigo. Desse momento em diante, estou fora. Não comungo com violência. Sobretudo quando eu estou convicto de que a violência de vocês jamais poderá suplantar a força de Nicolas. Prestem atenção no que eu estou dizendo.

Elvego se retirou, e isso foi o bastante para aquela reunião encerrar-se naquele mesmo instante.

 

Capítulo III

 

– E aí, Elvego, como é que foi a reunião?

A pergunta estava sendo feita por Epistrau, na sala do refeitório do albergue Descanso Alegre, no momento em que se encontrava lotada.

– De que reunião você fala, Epistrau?

– Ora, da reunião que vocês, os cabeças coroadas deste lugar, tiveram agora mesmo na sacristia da matriz. Pensa que eu não sou bem informado?

– Realmente, eu não posso negar. Fui a uma reunião lá na matriz, mas, por favor, não posso lhe adiantar nada. A reunião foi em segredo, em nome da segurança pública da cidade de Botu. E, compreenda, eu não posso revelar o que se passou ali. Não seria ético da minha parte.

Elvego assim se expressou e, depois, começou a se servir do jantar. À proporção que ia se alimentando, se punha a refletir sobre o quanto seria escandalosa a descoberta, pela imprensa, da intenção do padre Messias. O sacerdote inconseqüente foi afoito por demais. Exigiu, na reunião, um preço muito alto por Nicolas. Um preço, aliás, que na avaliação de Elvego, não estava ao alcance do padre. E não só dele. Elvego estava convencido de que ninguém dali tinha poderes para enfrentar Nicolas. O seu poder era, realmente, capaz de suplantar qualquer ataque das forças existentes na cidade de Botu, por mais potente que fosse. Nicolas era insuperável. Tinha o domínio de tudo o que o cercava. Podia fazer e acontecer. E, nessa condição, ser agente do bem ou do mal. Agora, o que Elvego constatava, e também todos daquela pequena e agora importante cidade, era que Nicolas não tinha feito jamais u’a ação que se considerasse má. Só o padre e o pastor é que ficaram desapontados com a destruição que Nicolas praticou em suas igrejas. Mas, convenhamos, nisso, talvez, residisse alguma explicação de caráter religioso. E Elvego, avesso a tudo quanto era de religião, mas deveras esclarecido, teve a percepção facilitada, para notar que, realmente, Nicolas traduzia algo deveras importante, a ponto de se poder constituir num marco que distinguiria o antes e o depois de sua existência, naquela cidade do fim do mundo. A princípio ele fora visto pela autoridade religiosa como uma coisa do céu, uma coisa milagrosa, passando, depois, diante da demonstração do seu poder e do seu domínio, a ser tido como que o representante do mal. Tudo porque, claramente, aquela autoridade via ameaçado o poder que até então detinha sobre assuntos de sua casa. De repente, porém, surgiu aquele homem de todos tão conhecido, pescador que fora durante tanto tempo, dando demonstração de poder, um poder realmente de deixar de água na boca uma figura como o padre Messias. Ele, lá com os seus botões, deve mesmo ter admitido como lhe seria bom um poder como o de Nicolas. Como aquilo não era possível para ele e como o seu poder, já consolidado naquela comunidade, estava ameaçado, outra não seria a sua reação. A princípio, interessado em dominar a situação, explorando a fé daquele povo ignaro, não fez questão nem de ir de encontro à própria Igreja a que pertencia – Igreja de Roma. Todavia, quando viu que as coisas estavam se tornando perigosas para a manutenção de sua autoridade, recuou. E estava, agora, com aquele plano diabólico. E, ainda mais, querendo contar com a participação, com o apoio de Elvego. Definitivamente, não. Elvego não iria permitir que suas mãos ficassem tintas do sangue daquele justo. É que, se tal virtude não tivesse, estaria fazendo e acontecendo, pintando e bordando, promovendo as maiores desgraças com o poder que demonstrou. Mas não era isso exatamente o que acontecia. Nicolas só dava demonstração de que, com seu poder, estava voltado exclusivamente para o bem.

Naquela noite, aliás, Elvego fazia reflexões, enquanto jantava. E, para falar a verdade, não jantou bem. Fez por onde logo terminar e, assim o fazendo, despediu-se de todos, sem deixar de lançar um olhar para Epistrau que o encarou como a lhe cobrar uma posição sobre a pergunta que lhe fizera.

 

Capítulo IV

 

Mais do que nunca, Elvego, agora, se achava convencido de que Nicolas não era nenhum agente do mal. Mesmo com aquele poder fabuloso, espetacular que ele até então havia demonstrado, fora, contudo, incapaz de um ato, de um gesto impregnado de qualquer maldade. Só mesmo, como já o dissemos, o padre e o pastor viram maldade em Nicolas, a partir de sua ação na igreja de cada um deles. Aqueles fatos, realmente, motivaram a reação de ambos, pois ficaram apavorados, e transmitiram o estado de desespero deles para a população que terminou, de forma enfática, a manifestar temor, apreensão e revolta contra Nicolas. Em face disso, se estabeleceu a convicção de todos no sentido de que se devia aniquilar aquele pescador. Exterminá-lo. Proposta sanguinolenta, vingativa, saída, exatamente, da cabeça do padre Messias. E terminou vingando. Elvego, então, que tudo muito bem compreendia, incomodava-se por não estar fazendo algo que impedisse tal desastre. Seria um crime dos maiores. Estava ele nessas reflexões, na varanda do albergue, corpo estendido na espreguiçadeira onde se acostumara a ficar, após as refeições, quando passava ali diante, na rua, o pescador Atrias.

– Homem, venha até aqui.

Desconfiado como sempre, ele se aproximou.

– Atrias, estou precisando, e muito, de você.

– De que se trata?

– É sobre o Nicolas, o seu compadre Nicolas.

– O senhor está também no meio dessa armação toda contra o meu compadre?

– Que armação?

– Ele me contou.

– Mas quem disse a ele sobre alguma armação?

– E tem nada que ele não saiba?

– Ah, é?

– Sim, senhor.

– Pois, mesmo assim, eu desejo muito falar com Nicolas. Ter uma aproximação com ele. Diga-me como devo fazer para que isso aconteça. E desejo também que esse meu encontro não seja visto por ninguém.

– Procure o campo. Dê um passeio. Com toda a certeza, deverá encontrar o meu compadre por lá.

E assim fez Elvego. Dia seguinte, logo cedo, saiu caminhando, afastando-se da cidade baixa, subindo a íngreme ladeira do Barril, passando pela casa 345 da rua do Tambor, residência de Nicolas. E prosseguiu sua caminhada. Para além da área urbana, na parte alta da cidade, existiam campos, muitos deles verdadeiros parques agrícolas, com plantações as mais diversas, destacando-se as euforbiáceas que eram a produção principal da fazenda do Zutza, como já o dissemos.

Elvego estava completamente absorto, admirando as belezas e riquezas do lugar, quando, de repente, a sua frente, de forma direta, aparece, como numa tela de televisão recém-ligada, a figura esquálida de Nicolas.

– Eu sei que o senhor está a minha procura.

– Você falou!!! Você falou!!! Você fala!!! Você fala!!!

– Só para lhe dizer a verdade. Dizer e, depois, me calar para sempre. E dizer só e somente ao senhor, porque, na realidade, única pessoa com alguma capacidade para entender, para recepcionar pequena parte da minha verdade.

– Por que não me falou antes, no dia em que cheguei em Botu? Você ficou mudo, como, aliás, até hoje.

– Ninguém me entenderia. Nem você, em que pese tão inteligente e culto. Meu estágio evolutivo está além, muito além da compreensão de muitos. Eu, por sinal, tanta demonstração já dei e hoje estou aqui permitindo a você esse diálogo, e vem você me cobrar palavras, palavras… Prá quê? Não preciso delas. Jamais precisarei.

– Então, vamos lá. Diga, Nicolas. Eu sou todo ouvidos. Espero, ansioso, o que você tem a me dizer.

Nicolas foi direto ao assunto que desejava tratar com Elvego.

– Não é preciso que você me diga que o padre tenciona matar-me. Disso eu sei. Eu estava presente naquela reunião.

– Estava?!… Claro, claro, como é que eu posso duvidar disso? Você é realmente sensacional, poderoso. Inimitável…

– Espere. Poupe adjetivos. Não precisa disso. Não exagere. Mantenha-se no equilíbrio que lhe é normal; equilíbrio que me tem revelado e que, por causa unicamente dele, é que eu estou permitindo esse seu contacto direto comigo, inclusive, diálogo para valer, com palavras que você as ouve e as entende. Porque para mim elas são dispensáveis. Bastam-me as ações. Só.

– É verdade. Você tem demonstrado isso. E vou procurar me corrigir. Desculpe-me o momento de fraqueza. Farei tudo para estar ao nível do seu poder.

– Meu caro Elvego, aqui e agora, deixo de falar, de pronunciar palavras. E quero que apenas veja o meu poder. O poder de ação. E que sinta que isso, e somente isso é necessário. Calo-me, agora, para sempre.

Realmente, Nicolas não mais falou. Ficou calado, ao lado de Elvego, olhando-o detidamente, insistentemente. E Elvego sentia que, à proporção que era olhado fixamente, uma transformação tomava conta do seu corpo, o qual, de repente, foi adquirindo um poder inusitado para ele; um poder que o fazia capaz de realizar só com o comando da mente.

– Que poder fantástico!!

Disse isso olhando em redor e, quando estacionou seu olhar no lugar em que deixara o corpo de Nicolas, este ali não mais se encontrava. Sumira. Desaparecera. Como também desaparecera aquele poder que, por breves instantes, Elvego sentiu instalado em seu corpo.

 

Capítulo V

 

Elvego fora contemplado com uma demonstração de poder realmente espetacular. Nicolas o revelou no próprio corpo de Elvego, durante curto lapso de tempo, como já o dissemos, e também em diversas plantações existentes no local em que se encontraram. Realmente, como que um milagre, as plantações se iam tornando exuberantes, viçosas, bonitas, uma coisa admirável. Sim, pôde aquilatar Elvego que aquele fenômeno a que estava assistindo era realmente a presença de um poder fora do comum, o poder do domínio total, maravilhoso, com a possibilidade de permitir ao seu detentor a plena satisfação das necessidades e perfeita insubmissão às leis irrevogáveis de tudo quanto existe no mundo.

Era, então, Elvego adentrando outro mundo; o mundo de uma existência dominada pelo poder da mente; o mundo que não permitia o fluir de elementos nocivos; o mundo que era só delícia e de expressivas sensações gostosas…

Estava Elvego, agora, encaminhando-se para o albergue, após o encontro com Nicolas. A cabeça lhe rodava a mil ciclos por segundo. Uma tontura enorme fazia-o apressar os passos, para logo chegar e deitar-se em sua cama. Nela, olhos fechados, não cessaria de refletir, de pensar em tudo quanto ele teve de experiência naquele contato havido entre ele e Nicolas. Contato para valer mesmo. Real.

– E agora? Poderei ser o mesmo de antes? – perguntava-se, no percurso, tomado de preocupação.

Sim, Elvego, homem viajado, passara, em sua vida, por toda a sorte de experiências. Aquela, todavia, fora bastante forte, fora bastante significativa. Sentir-se forte, poderoso, da mesma forma como aquele poder expresso por Nicolas. Se bem que, agora, aquele poder o abandonara. Fora algo momentâneo, enquanto estava perto de Nicolas. E justamente no momento em que os dois, juntos, já haviam desprezado o diálogo. Pois durante este nada de poderoso aconteceu. Só mesmo após cessado o diálogo foi que ele se sentiu invadido por aquela estranha sensação de poder; estranha e, ao mesmo tempo, gostosa sensação de poder.

O mundo tantas e tantas vezes por ele percorrido, de norte a sul, de leste a oeste, países os mais diversos, culturas as mais interessantes e desenvolvidas, toda a sorte de conhecimentos por que ele sempre ansiou na sua insistência de pesquisador, tudo isso ele sempre teve, sempre assimilava com maestria, sempre dominava. Agora, todavia, naquele fim de mundo, uma cidade esquecida como Botu trazia para ele aquele desafio. Realmente, Elvego vivia uma experiência nunca antes vista em toda a sua indiscutível e incalculável experiência de homem estudioso, capaz, inteligente, sensato.

 

Capítulo VI

 

Definitivamente, no conceito dos jornalistas, Elvego estava passando dos limites. Furiosos com ele desde o dia em que entregou aquela entrevista gravada com Atrias, ficaram desconfiando de sua sinceridade, dos seus propósitos. Afinal, Elvego, agora, tinha saído da cidade. Todos, propositadamente, o procuraram, como se o estivessem realmente caçando, fiscalizando os passos. É que estranharam, e muito, o fato de Elvego trazer consigo aquela fita com a gravação da entrevista obtida junto ao pescador Atrias, e não a ter revelado, senão depois de o seu entrevistado havê-la negado peremptoriamente. A tal entrevista não era daquelas que podiam ficar escondidas. Era para ter vindo a público logo. Elvego deveria tê-la apresentado, logo no primeiro dia em que os jornalistas chegaram à cidade. A sua importância, realmente, ficou comprovada diante do estardalhaço que os jornais lhe fizeram a respeito. Também não era para menos. Aquela visão estranha que Atrias disse haver tido, juntamente com seu compadre Nicolas, à margem do rio Opá foi algo que só podia deixar qualquer um arrepiado. O peixe enorme, que não era propriamente peixe e sim um monstro. E, por fim, o resultado daquele encontro dos dois compadres com o peixe esquisito. Ambos caídos, estáticos, parecidos dois defuntos. Verdadeiramente, foi por demais imperdoável a omissão de Elvego. Só merecia mesmo dos jornalistas, dali em diante, pura desconfiança. E agora, naquele momento, quando todos, na cidade, procuravam por Elvego, eis que ele havia desaparecido.

– Calma, calma meus confrades. Calma que o nosso mais novo enigmático está chegando – solicitou Epistrau, que estava na varanda do albergue, em animada conversa, que girava em torno de Elvego.

– Bom dia, meus senhores.

– Procuramos você em todos os recantos da cidade, meu caro. Por onde andou?

– Ora, estão me seguindo agora?

– Bem, digamos que não o estamos achando mais confiável…

– Mas isso é uma grande injustiça!

– Justiça ou injustiça, na verdade, meu caro, você que, inclusive, se antecipou a todos nós aqui nesta cidade, que teve contacto com os homens enigmáticos, que chegou a gravar uma entrevista com um deles… e que entrevista! Agora, misteriosamente, sai da cidade. Não o encontramos em lugar nenhum. A cidade é pequena, todos nos estamos vendo a toda hora e a todo instante. Como sentimos a sua falta, ficamos a sua procura.

– Saí realmente da cidade. Fui ao campo, respirar um ar mais puro. Vez por outra, gosto de fazer isso.

– Não nos convence – atalhou um jornalista da FOLHA DA TARDE.

– Calma, calma – interveio, conciliador, Epistrau – Vamos deixar o senhor Elvego à vontade.

Isso era o que ele estava realmente querendo. Mal Epistrau acabou de falar, passou feito um raio entre os jornalistas indignados, e foi direto se meter no seu quarto, de onde só saiu no dia seguinte, sem ao menos almoçar e jantar.

 

Capítulo VII

 

Botu vivia sob uma intensa mania; mania de perseguição. Os notáveis da cidade arquitetavam todo o tipo de plano para o fim de pôr Nicolas em uma cilada, em uma enrascada. E todo esse esquema armado pelos notáveis, como sejam, o prefeito, o vigário, o pastor e muitos outros, era sistematicamente passado para as diversas camadas da população que, assim, iam nutrindo verdadeiro ódio contra Nicolas, ficando capazes de esquertejá-lo, caso o encontrassem em qualquer esquina.

Enquanto crescia vertiginosamente a caçada, Botu, para a alegria de seus habitantes, para a estupefação deles ao mesmo tempo, e também dos jornalistas, passava a viver dias realmente esplendorosos. Parecia uma cidade encantada, onde tudo do mais fino e mais refinado bom-gosto se apresentava com notória facilidade para aquele que se manifestasse desejoso de tê-lo. As coisas pareciam ter o caminho desbloqueado de qualquer natural empecilho. Lugar tão bom assim, nem mesmo o descrito na Utopia de Thomas Morus.

Para aquele povo ignaro, sua limitada compreensão o fazia crente de que um avanço verdadeiro estava acontecendo naquela cidade, havendo até algum botuense que já se animava, diante da possibilidade de ver a sua cidade ultrapassar a de Divinópolis. Pois, na verdade, processava-se uma mudança de qualidade de vida de causar espanto. Tudo concorria para que as pessoas alcançassem aquilo que tinham em mente fazer e, com isso, a cidade foi mudando, foi crescendo, assustadoramente. No campo, a mudança se operou com o triplo ou o quádruplo de plantações, que certamente redundaria numa safra estupenda. Na zona urbana, a febre pelas novas construções, casas novas e muito bem construídas, confortáveis, algumas delas verdadeiros palacetes. Botu mostrava que, realmente, não era lugar de gente pobre, mas a cidade onde podiam morar pessoas afortunadas, porquanto, de repente, avançou no seu traçado, no seu perfil, na sua estrutura, agora redimensionada como uma cidade planejada para um futuro promissor. Tanto assim que aconteceu uma verdadeira correria de pessoas fazendo especulação imobiliária, sobretudo muitos divinopolitanos adquirindo imóveis e comprando fazendas nas cercanias de Botu. Tudo isso, efetivamente, verificado em tempo recorde, causando o maior espanto a quem assistia àqueles fenômenos, jamais acontecidos em qualquer aglomeração humana.

– Ah, se eles soubessem a verdadeira origem disso tudo!.. – considerava Elvego, em seus pensamentos, enquanto descansava em sua espreguiçadeira.

Realmente, Elvego sabia o motivo real de toda aquela rápida transformação. Ninguém se ligava na possibilidade de que tudo aquilo derivava da influência benéfica e benigna de Nicolas. Esta era a verdade da qual só mesmo Elvego era conhecedor. O povo, mergulhado nos prazeres da nova realidade da vida social, econômica e financeira que ali se instalara, não iria se preocupar com outra coisa, senão em manter acesa a fúria contra Nicolas, pois, no que pese todo o avanço experimentado, os notáveis e o povo não punham de lado a sede de perseguição, havendo sucessivas reuniões, em que se debatia acerca da melhor e mais eficiente maneira de se encontrar Nicolas e de abatê-lo e de fazer com que desaparecesse definitivamente. E ao mesmo tempo em que assim agiam, viviam a cada dia, gostosamente, aquela grata mudança para melhor, em que não havia mais lugar para preocupações tão presentes e marcantes, como as que ocorreram ali fazia pouco tempo. Bom que esse estado de coisas atual continuasse para sempre, fazendo daquela outrora relegada Botu a gaudiópolis que tanto prazer e tanta satisfação estava, agora, propiciando a seus moradores.

 

Capítulo VIII

 

Fenômeno espetacular, ocorrendo ali, sob as luzes dos refletores da imprensa. Era algo realmente que não comportava a menor dúvida. O progresso chegara ao lugar, ali se instalara, e parecia que tudo corria numa velocidade incrível, jamais vista em qualquer parte do mundo.

Botu já se tornara conhecida nacionalmente. Os fatos misteriosos acontecidos naquela cidade do fim do mundo, somados ao desenvolvimento acelerado do lugar, mediante um crescimento vertiginoso do dia para a noite, só podiam mesmo chamar a atenção do mundo inteiro. E isso, graças à presença, ali, da imprensa, que se encarregava de encher os órgãos de informação de todos os pormenores de tudo quanto acontecia no lugar, que antes vivia na mesmice, em padrão de vida simples, preguiçosa, em relações que se presumiam bastante salutares.

Botu, agora, era outra cidade, já completamente diferente de pouco tempo atrás. Ganhou emissora de rádio, de televisão. O povo estava mais ligado nas coisas que aconteciam ali, porque, na verdade, era um verdadeiro pipocar de novidades que se atropelavam; novidades para melhor, para o progresso. Muitos jornalistas atraídos para o lugar em face dos acontecimentos misteriosos ali ocorridos, tanto se demoraram na cidade que, incorporando-se ao progresso acelerado a que assistiam, resolveram adquirir casas, dentre aquelas recém-construídas na parte superior. E já estavam, muitos deles, estabelecidos com a família. Portanto, uma transformação radical. Botu, antes esquecida, agora lembrada, bem lembrada, contando com a presença de gente esclarecida, de gente que sabia onde tinha o nariz. Deixou, portanto, de ser aquele lugar de muito sossego, de muita tranqüilidade, para ser o lugar do movimento intenso, carros e mais carros cruzando as suas estreitas ruas, comércio ativo, numa mudança de encher a vista e que justificava a chegada de mais e mais pessoas com o propósito firme de ali residirem.

A imprensa não desprezava jamais a exploração acerca da evolução do lugar. Tudo era motivo para isso. Inclusive o fato de que os botuenses, em que pese as facilidades da nova ordem social e econômica da cidade, não desprezavam a perseguição imposta a Nicolas, pois dele não se esqueceram um minuto sequer, achando que o mesmo era figura perniciosa, e que quase terminou afundando os fundamentos verdadeiros daquela sociedade. Tanto ele não prestava que desaparecera. Mas o fato de estar desaparecido incutia o temor de que voltasse a aparecer, do dia para a noite, e, então, caso isso acontecesse, era fatalmente o adeus à tranqüilidade que se estava desfrutando tão intensamente.

Elvego acompanhava todos os acontecimentos.

– Coitados! Coitados! Se soubessem…

Com seus botões, meditava sobre tudo aquilo que acontecia e que ninguém imaginava, e nem podia mesmo imaginar, que tudo aquilo pudesse ser influência de Nicolas, do estranho e poderoso personagem que era Nicolas. Definitivamente, Elvego se sentia atolado até o pescoço no mistério de tudo quanto estava ali acontecendo De um lado, todos assistindo ao progresso chegar de forma dadivosa, como se fora um presente caído do céu, ou o fruto do trabalho daquela gente. Mas Elvego sabia a origem verdadeira de tudo e que tudo aquilo estava sendo obra de Nicolas. Obra meritória. Obra que o fazia certo de que Nicolas não era nenhum agente do mal. A ele só o bem interessava. E que bem maior poderia fazer, senão promover o progresso da sua cidade? O progresso, aliás, através de uma atividade que ele tão bem conhecia, como a atividade pesqueira. Pois ele não a fez desaparecer. Pelo contrário, fê-la maior, muito maior e mais destacada ainda no cenário local, regional e nacional.

Chegava a ser intrigante para os homens da imprensa aquele furor, aquela obstinação do povo em perseguir, em promover toda a sorte de armação, com vistas a encontrar e aniquilar de vez a pessoa de Nicolas.

– Por que diabos vocês, vivendo agora essa fase áurea, se dedicam a pura perda de tempo, combatendo um homem que talvez nem mais exista como o Nicolas? Esqueçam-no.

Assim questionavam os jornalistas, em contactos informais. Sim, apenas nesses contactos, porque não podiam explorar profissionalmente esse assunto, posicionarem-se contra o mesmo, porque os botuenses estavam realmente de cabeça feita. Queriam a perseguição contra Nicolas. Tinham-na efetivamente no pensamento. Era o desejo. Era a vontade. Era a determinação. Era o ponto de honra a ser alcançado. Ponderavam a nova situação em que se encontravam, vivendo numa nova realidade de pura tranqüilidade e de progresso. E que, porventura, o retorno de Nicolas lhes traria o risco da intranqüilidade, pois efetivamente, Nicolas demonstrara poder, determinação, e que isso, na forma como foi manifestado, era deveras muito perigoso. Realmente, assim consideravam, Nicolas foi de encontro à ordem constituída, pondo filho contra pai e destruindo elemento de muita importância e de muita significação. Destruiu o símbolo maior da religiosidade daquele povo.

Por isso, então, o que se via, e a imprensa não se cansava de publicar, eram as diversas armações, os diversos meios arquitetados com o objetivo de apanhar Nicolas. Era fundamental para eles conseguir-lhe a captura e, depois, aniquilá-lo.

Elvego, por sua vez, sabia que tal fato só poderia acontecer se o próprio Nicolas o consentisse. É que aquele povo, mesmo que viesse a contar com recursos novos, poderosos e sofisticados, jamais poderia alcançar a pretensão que tanto perseguia, até com sede de sangue. O poder ali era Nicolas, e mais ninguém.

 

Capítulo IX

 

O lago Borrado estava vivendo a época da plena produção de peixes. Se tudo ali em Botu fora assim tomado por um toque de magia, passando a um desenvolvimento de encher a vista, a atividade pesqueira não poderia ser excluída desse fenômeno.

– Ah, que falta nos estão fazendo o Atrias e o Nicolas!

Lamentava-se Bertínio Ipoeira, também pescador, a seus companheiros de muitos anos no trabalho de pesca no lago Borrado, no momento em que se encontravam pescando.

– Também, vocês hão de reconhecer que a falta de que estou falando é somente a falta de companhia a que estávamos acostumados.

– Que quer dizer com isso, Bertínio?

– Eu não vou negar que Atrias e Nicolas deram muita lição a gente. Mas, agora, eles sumiram, e sem eles vocês estão vendo que, sozinhos, estamos pescando muito e muito bem mesmo. Vocês concordam comigo?

– Claro!

– Também, quem mandou aqueles dois enfiarem na cabeça aquela maluquice! O padre mostrou domingo passado na igreja que eles eram muitos perigosos. Estavam trazendo a insegurança para todos nós. E eu acho que o padre Messias tem inteira razão. Cada vez mais estão se tornando perigosos. Primeiro foi aquela morte deles perto do Opá, após o que ressuscitaram. Depois, esses acontecimentos todos, mexendo com as coisas santas, querendo destruir a nossa igreja. Um poder de espantar. Isso é estranho e de difícil entendimento para nós.

Um vento repentino começou a fazer assobios por entre as frestas da cobertura do barco em que se encontravam os pescadores. As águas, de repente, começaram a se tornar como se fossem as de um mar revolto.

Na proa da embarcação, um vulto começou a surgir, e logo apareceu definitivamente. Era a figura esquálida de Nicolas.

– Agora, não! Agora, não! Não precisamos de sua ajuda. Estamos indo muito bem. E você apareceu aqui porque quis.

Bertínio Ipoeira falava, olhando para seus companheiros e para uns instrumentos de pesca colocados ao lado. Todos compreenderam. A oportunidade não poderia ser melhor. Aquele poder de Nicolas teria de ser testado ali, naquele momento. Era só empurrá-lo. Morreria afogado. Ninguém ficaria sabendo. As condições de trabalho estavam indo muito bem. Nicolas, agora, só poderia prejudicá-los. Tornara-se figura estranha ao serviço que por tanto tempo desempenhou, e com que competência!

Nicolas sabia o que se passava na intenção de seus companheiros. Levantou o braço. Apontou o dedo na direção de cada um. À proporção que cada um ia sendo apontado, sentia a atração de seu corpo em direção a Nicolas, como que facilitando o propósito de que estavam imbuídos. E foi assim que, ao mesmo tempo, todos chegaram perto da pessoa de Nicolas, tocando-o todos ao mesmo tempo, fazendo-o cair de costas e desaparecer nas águas profundas do grande lago Borrado.

Acharam, depois, em consenso, que não deveriam contar o acontecimento a ninguém. E terminaram, logo em seguida, a atividade daquele dia, embora fosse ainda muito cedo. Ao aportarem o barco, todavia, tão preocupados estavam com o que aconteceu, que nem sequer notaram o quanto ele se encontrava carregado de peixes.

– Que bela pescaria, senhores!

Caíram todos por terra, espantados.

 

Capítulo X

 

– Fizeram muito bem. Fizeram muito bem, meus filhos.

Os pescadores, assombrados, não conseguiram manter o segredo como tinham prometido. A verdade é que, sem que se falasse um com qualquer outro, todos, ao mesmo tempo, se sentiram arrastados à igreja de Santa Júlia, onde finalmente se encontraram, concomitantemente. Queriam falar com o padre. Mas o que os moveu a tanto não fora precisamente o fato de haverem empurrado Nicolas da embarcação. Foi, exatamente, o fato da pescaria inusitada, pescaria que aconteceu sem esforço nenhum da parte deles, pois o barco, na hora em que Nicolas apareceu, não contava, ainda, com um peixe sequer pescado naquele dia.

– Foi muito bom vocês terem vindo.

Padre Messias sabia o motivo por que os pescadores o haviam procurado. É que, há alguns dias, estivera lá na colônia, às margens do lago Borrado, em reunião com eles. Naquela oportunidade, o padre explicou que precisava lhes dizer mais do que aquilo que vinha dizendo na igreja. Por isso é que se sentiu na obrigação de se deslocar até a colônia. Disse-lhes que deviam ser fortes, que deviam esquecer o sentimento de consideração para com os compadres Nicolas e Atrias. Era fundamental que fizessem de conta que eles não mais existiam, que se acabaram. Não lhes estavam fazendo falta nenhuma. Ressaltou-lhes o trabalho que vinham fazendo com uma produção de pescado maravilhosa. Ademais, além da produção, o pescado vinha encontrando bons, excelentes compradores. Tudo, pois, correndo às mil maravilhas. Daí se fazia necessário que eles esquecessem Nicolas e Atrias. Não lhes serviriam mais para nada. E então, caso viesse a aparecer, atrapalhando a pescaria, que não perdessem a oportunidade, e não lhes dessem a menor chance. Deveriam investir contra ele. Lembrassem sempre de que Nicolas era perigosíssimo. Não deviam jamais esquecer o que ele fez na igreja, na casa do Pai do Céu. Miserável! Destruir os quadros da via sacra. Cometer o absurdo de desrespeitar o corpo de Deus, a hóstia consagrada. Herege!!

– Padre, a gente pensou que o homem era fácil. Mas ele fez foi dominar a gente A gente quando pensava em investir contra ele, ele é que nos arrastou até onde ele estava como a querer que a gente o empurrasse. E foi o que aconteceu. Ele desapareceu nas profundas águas do lago, padre. Não ficou nenhum vestígio dele. Nem bolha de ar apareceu. Ele realmente não deu o menor sinal de que estivesse ali debaixo d’água se afogando. E depois, padre, aquele vento que de repente começou a soprar e, enfim, as ondas do lago, o lago que tão bem a gente conhece, sempre de águas calmas, muito tranqüilas…

– Tudo bem, seus incompetentes. Só isso? – e já gritando para os pescadores – Só isso??!

– Ora, padre, não precisa o senhor gritar a gente assim desse jeito. O senhor vai é nos explicar como é que o nosso barco, sem ao menos a pescaria ter início, ficou abarrotado de peixes, após nossa investida contra Nicolas.

– Como é?!

– Isso que eu acabei de lhe dizer, padre. Abarrotado de peixes.

– E vocês agora estão querendo me dizer que isso foi obra daquele maldito? Esqueçam isso. De uma vez por todas. Ele é maligno. Não poderia ter cometido um bem dessa natureza. Impossível! Impossível! Vocês não estão seguindo o que ensinei. Estão sendo desviados. Tenham cuidado. É para dominar aquele maldito. Dominar e exterminar. Não quero a minha igreja sendo alvo de mais destruição. Basta.

A conversa acabou ficando por ali, porque bateram à porta e, quando a secretária do padre Messias atendeu, viu que eram jornalistas, entre os quais estava também Epistrau.

Os pescadores foram, um a um, saindo, sem encarar Epistrau que estava já na sala onde se desenvolvera a reunião.

– Reuniões secretas com pescadores, padre?

– Assuntos paroquiais, que não são de sua conta, Epistrau – arrematou, rispidamente, o padre.

 

Capítulo XI

 

Era meio-dia e meia, mais ou menos, de um dia de sol muito bonito. A cidade estava em seu ritmo normal de trabalho, na conformidade da nova ordem social e econômica ali recém-estabelecida, ordens essas que foram verdadeiras novidades, com as quais já se haviam acostumado os botuenses, até mesmo aqueles mais refratários a mudanças radicais. O vaivém das pessoas na rua onde situada a loja do senhor Sinárdio foi, aos poucos, sendo alterado. As pessoas passavam, e logo paravam. Paravam os que iam e os que vinham a pé, e também os que se conduziam em carros. E logo o referido trecho ficou com o trânsito engarrafado. Só se ouvia o apito do responsável pelo disciplinamento do tráfego de veículos, naquela área, na tentativa de fazer voltar a situação ao estado de normalidade.

O motivo de tanta concentração de pessoas e de automóveis não estava bem ali, em frente da loja de tecidos Irajá, de propriedade do tão conhecido senhor Sinárdio, mas do outro lado da rua, à margem direita do riacho que cortava aquela parte de terreno firme, onde situada a cidade baixa. Ali, bem à margem do rio Opá, as figuras tão conhecidas de todos: Atrias e Nicolas. Os dois compadres estáticos, a olharem o movimento, a sentirem que o povo se tornava multidão, na qual crescia assustadoramente o número de pessoas assumindo gestos de pura indignação e de revolta. Pessoas, também, que, à distância, iam tendo notícia da presença, ali, daqueles dois compadres enigmáticos e, então, vieram se aproximando do local, trazendo uns, em suas mãos, pedaços de pau, outros, pedras, outros ainda portando facas e outros, objetos cortantes.

Nicolas, pelo que facilmente se percebia, estava se permitindo a aparição. E o estava fazendo justamente, exatamente naquela beira de rio onde há um ano e vários meses, fora alvo do estranho acontecimento, que o envolveu e ao seu compadre também; mais a ele, como se sabe.

Elvego, que estava no albergue de Shiresto, fora despertado pela correria. Os jornalistas, por sua vez, não se encontravam no albergue. Estavam todos fazendo cobertura, na cidade alta, na casa 345 da rua do Tambor. É que correra a notícia de que os dois compadres poderiam reaparecer ali, na manhã daquele dia.

– Que significa esse corre-corre de gente, minha senhora?

– São os dois compadres que apareceram. O senhor não sabe ainda? Estou indo para lá agora mesmo. Eles estão na frente da loja do senhor Sinárdio.

– Na frente da loja de tecidos Irajá?

Elvego se sentiu impotente. Era ali o único que sabia de tudo. Se não sabia de tudo, pelo menos era conhecedor de muito mais coisa do que podiam imaginar o padre, o prefeito, os jornalistas, qualquer pessoa, enfim. Pois ele, Elvego, fora a única pessoa a ter tido um contacto, a ter tido um diálogo com Nicolas.

Sim, iria também para a frente da loja de Sinárdio. Não poderia ficar ali parado. Não iria com certeza se juntar à turba que possivelmente ali já estaria se formando, pois esse quadro ele pôde perfeitamente prever.

– O senhor aqui? – indagou o padre Messias que estava recostado à parede, conversando com o senhor Sinárdio.

– A mesma pergunta eu lhe faço, padre. E agora, está satisfeito? Tanto alimentou o desejo de vingança, de ódio, de indignação de seus fiéis, que eles estão aí, prontos para o ataque, e você aí, de braços cruzados, vendo o circo pegar fogo.

Elvego, coitado, não sabia que o padre, no seu afã de perseguir os compadres, já havia conseguido uma investida, como a que lhe foi contada pelos pescadores do lago Borrado, e a cujo respeito só ele padre Messias e os pescadores tinham conhecimento.

– Cale-se, não é de sua conta. Houve tempo em que precisei de você. E até que você me ajudou. Agora, porém, quero que você se afaste de mim. Quero que você se afaste da cidade, que é o melhor que você faz.

Sinárdio, interessado em ouvir a conversa, mais se aproximou. Muito pouco poderia entender do diálogo nada amistoso entre Elvego e o padre Messias. Na sua condição de homem simples, de pouca cultura, afeito apenas ao comércio que vinha explorando há bastante tempo na loja Irajá, de sua propriedade, pensava que entre Elvego e o padre havia o mais perfeito entrosamento. Mas…

– O senhor também está aqui para incentivar, não é senhor Elvego? – indagou Sinárdio, querendo se meter na conversa.

Elvego não respondeu. Ficou calado. Preferiu deixar de lado, deixar de dar atenção ao padre e a quem mais aparecesse ali. Importante por demais era lançar o olhar para o outro lado da rua, onde se concentrava a multidão. A situação realmente não era das melhores. A turba estava assanhada, perigosa, prestes a atacar ferozmente.

De repente, ao mesmo tempo, todos investiram contra os dois personagens que se encontravam estáticos, cabeças erguidas, olhares fixos em determinada direção; a direção do norte da cidade. Uma chuva de paus, de pedras, de cacetes, de facas que eram atirados ao ar, todos com destinação única, ou seja, o local precisamente em que se encontravam os dois compadres.

Foi, realmente, de estarrecer. Os objetos lançados atingiam os alvos. Ao tocarem em Atrias, produziam-lhe terríveis ferimentos que ficaram logo à mostra, tanto que seu semblante logo se transmudou, fazendo que todos aquilatassem a dor imensa por que estava passando. Um martírio, realmente. Tanto que sua resistência foi de poucos minutos. Expirou, sem ao menos pronunciar uma palavra. Na verdade, não lhe era possível articular qualquer uma, porque o ataque de que foi vítima foi tão intenso, que lhe atingiu fortemente a boca, que ficou completamente deformada, língua pendurada, sem falar em outro golpe profundo e certeiro que quase lhe decepou a cabeça.

Que quadro triste, que coisa horrorosa!!

Nicolas, enquanto isso, impassível, assistia ao sacrifício que tanto a ele quanto a Atrias era impingido. A diferença, entretanto, era a de que, embora os objetos atingissem o seu corpo, penetrando-lhe muitos deles, nem uma gota de sangue lhe escorreu. Permaneceu como sempre esteve desde o início do sacrifício. Estático, olhar firme em direção ao norte da cidade. Sua atitude cada vez mais fazia recrudescer o ímpeto da turba, que agora mais sanguinolenta se apresentava, querendo a toda a sorte aniquilar a pessoa de Nicolas.

– Que se passa? – indagou, preocupadíssimo, o padre Messias, ainda se encontrando na calçada da loja de tecidos Irajá. Lançava a pergunta e, ao mesmo tempo em que a deixava no ar, olhava diretamente para Elvego.

– Por que me olha assim?

– Você, meu caro, pela sua cara de tranqüilidade, deve estar sabendo de alguma coisa. Deve estar sabendo do segredo do truque que esse maldito pescador está aqui nos aplicando agora.

– De que truque você está falando, vigário?

– Ora, não me chame de vigário…

Estavam em meio a essa discussão, quando tiveram a atenção despertada para a turba que recuava um pouco, no momento em que Nicolas saíra da posição estática em que se deixara ficar até ainda há pouco. É que, assim agindo, Nicolas, fazendo descer o olhar fixo que mantinha no sentido do lado norte, imediatamente o desceu na direção do seu compadre Atrias que jazia ali aos seus pés. Nem sequer se abalou. Fez tão somente um pequeno gesto, o de apontar o dedo indicador em direção ao cadáver que, aos poucos, foi se recompondo e se levantando. A fúria de todos cessou, pois o fato que agora passaram a assistir trouxe para todos o sentimento de pavor. Um morto ressuscitar?!

A debandada foi grande.

 

Capítulo XII

 

Elvego viu, e para ele aquilo fora um choque dos maiores. Ficou deveras contristado. No meio da turba sanguinária, lá estava Osival Sahino, o Sival. Foi surpresa para ele, realmente. Não esperava que tivesse recuperado Sival daquele estado de contestação contra tudo e contra todos, mas, por outro lado, lhe tivesse escapado a possibilidade, agora tornada concreta e real, de que o padre Messias lhe exercesse influência, aquela influência que ele fazia chegar aos botuenses, a maioria deles seus fiéis, assíduos freqüentadores dos bancos da matriz de Santa Júlia.

Pois era verdade, sim. Elvego não estava enganado. Era Sival, realmente. E ele demonstrava uma vontade como que diferente das demais pessoas integrantes da turba. Enquanto, na sua maioria, cada um se munia de um só instrumento para ataque, Sival parecia um verdadeiro arsenal. Trazia consigo várias pedras, vários cacetes e até instrumentos perfurantes.

O jovem Sival, sem dúvida, se recuperara do estado de contestação e se encontrava num mar de felicidade. Via a sua cidade agora desenvolvida, igualzinha à cidade de Divinópolis. Para ele, então, não era mais preciso submeter-se às xingações de seus colegas de colégio, que somente elogiavam a cidade deles, enquanto Sival ficava cabisbaixo, encabulado, porque Botu era aquela coisa parada, sem ir para a frente ou para trás. Estava feliz, pois, com a mudança que o progresso estava trazendo para a sua querida e amada cidade, que agora lhe proporcionava motivo cada vez maior de orgulho.

Doeu forte em Elvego assistir ao momento em que Sival, impetuosamente, se destacava dentre todos os integrantes da turba, avançando e atirando, com incrível destreza, os instrumentos que trazia consigo. Viu muito bem que o coitado Atrias saiu atingido fortemente na face, a ponto de ter comprometida a articulação dos músculos da boca, exatamente como decorrência de uma investida fortíssima feita por Sival. Este, certamente, deveria querer como alvo principal o Nicolas, que também foi atingido, porém menos intensamente. Melhor teria sido que todos os objetos o tivessem atingido. Atrias, coitado, não merecia aquilo. Nada fizera, a não ser o fato de ser compadre de Nicolas; a não ser o fato de ter sido companheiro dele na hora daquela misteriosa cena acontecida há um ano e meses atrás, naquele mesmo recanto de beira de rio.

Mas também, para seu alívio, Elvego viu que Sival foi o primeiro a demonstrar estarrecimento, a recuar, a ficar lívido. Quando, exatamente, Nicolas abandonou o estado estático em que se deixara ficar e desceu o olhar em direção a Atrias – que inerte estava a seus pés – Sival se encheu de pavor, porque, na realidade, assistia àquilo que jamais poderia imaginar: apesar dos hematomas e das várias perfurações sofridas por Nicolas, uma delas atingindo-lhe, exatamente, a região toráxica esquerda, mesmo assim não lhe escorria do corpo uma gotícula de sangue sequer. Que significava aquilo? E mais ainda se espantou o jovem filho do prefeito Floripes, quando viu o pescador passando por cima dos paus, das pedras e das facas e se destinar a Atrias, apontando-lhe o dedo indicador, momento exato em que viu o outro pescador – que morto se encontrava – recobrando o sentido, levantando-se, voltando à vida, à proporção em que tudo quanto era de ferimentos em seu corpo ia sarando paulatinamente até a completa sanidade.

Quando, enfim, Nicolas agia de forma a fazer desintegrar-se o seu compadre Atrias, ninguém mais daquela turba ali se encontrava. Tinham todos debandado. Apenas, à curta distância, queixo caído, se postavam, frente à loja de Sinárdio, o padre Messias e o próprio dono da loja. Elvego que tudo compreendia, já saíra do local.

– Que espantoso, meu Deus! – exclamou padre Messias.

 

Capítulo XIII

 

– Essa é uma terra sem lei?! – gritava aos berros Epistrau, diante do sargento Antunes.

– Calma, doutor…

– Que calma, coisa nenhuma. Então se comete uma barbaridade daquela, em plena luz do dia, uma multidão cometendo um verdadeiro sacrifício contra duas pessoas inofensivas, desarmadas, e o senhor ainda me vem pedir calma?

– Mas, doutor, eu já estive no local, diligenciei. Agora, eu não tenho onde encontrar as vítimas. Procurei por tudo quanto foi de lugar. Já estive na casa 345 da rua do Tambor. Dona Ulyanna me disse não saber onde pode estar o marido dela. Nem também dona Joiahana, mulher do coitado Atrias.

Esta, sim, encontrava-se muito chorosa. Afinal, seu marido foi quem mais saiu ferido. Morreu e ressuscitou. Deus do céu! De novo, já não havia acontecido isso com ele antes?! Decididamente, entre lágrimas, chegou a revelar ao sargento Antunes que não estava entendendo muito bem aquilo tudo. Preferia que a situação voltasse a ser como era antes, há alguns meses. A vida lhe sorria muito tranqüila. O marido, de casa para a pescaria, da pescaria para a casa. Mas o que era bom terminara. Vivia ela, agora, aquele inferno. Fora-se o homem da casa. Desaparecera. Morrera. E o pior, sumira, não tinha nem como velar o corpo. Aquilo não era coisa que acontecesse com ela. Não merecia aquilo.

Voltando, então, ao diálogo entre Epistrau e o sargento Antunes:

– Que vai fazer, então, como autoridade policial principal desta cidade?

– Eu quero é que o senhor me diga o que eu vou fazer. Os meus anos de experiência não me estão ajudando em nada. Não tenho vergonha de lhe confessar isso.

– Já apareceu alguém, pedindo providências?

– Quem poderia pedir providências era a família das pessoas atingidas, mas…

– Quer me dizer que nem as mulheres estão interessadas?

– Exatamente. Bem, apenas no tange à mulher de Atrias. Não falei com dona Ulyanna. Com esta, aliás, me permita dizer, acho que não é necessário falar. Há muito tempo que ela não vem dando a mínima importância ao marido.

Realmente, na casa 345 da rua do Tambor, Ulyanna já se havia dado por vencida. Desistira. Com Nicolas, seu marido, viu que não havia jeito a dar. Começou com a morte, veio a ressurreição, a sua casa cheia de gente adorando Nicolas, a internação dele em Divinópolis. Depois o desaparecimento, o reaparecimento na fazenda de Zutza. Em seguida, o homem mais misterioso ainda, fazendo e acontecendo sem dizer uma palavra, só fazendo gestos. Agora, desaparecera, e todos na cidade o perseguiam. Ulyanna, realmente, não tinha mais por que esperar. Era melhor esquecer o marido. Por outro lado, a casa 345 da rua do Tambor já lhe fugira do domínio. Alteíades, sob o forte amparo do padre Messias, começou fazendo a exploração do povo, exploração essa que continuou até os dias em que o padre desconfiou que Nicolas lhe era uma ameaça. Antunes, então, tinha inteira razão. Era-lhe difícil, muito difícil apurar o fato, porque não lhe fora possível encontrar as vítimas. Nicolas e Atrias voltaram a desaparecer.

O jeito foi Epistrau sair dali da delegacia mais revoltado do que quando ali chegara, porque tinha que se render, realmente, ao argumento do sargento Antunes. Sim, porque a autoridade dele não tinha como chegar às vítimas e o próprio Epistrau já estava sabendo, em pormenores, tudo aquilo que aconteceu na frente da loja do Sinárdio. Era a sua segunda decepção, naquele dia. A primeira, justamente, a sua ausência involuntária e a de todos os seus confrades do cenário das cenas sangrentas; a segunda, sua frustrada esperança de que Antunes, o delegado, tivesse colhido elementos de prova material, para bem seguramente poder explorá-los em seus veículos de informação.

 

Capítulo XIV

 

Elvego refletiu bastante e concluiu ser necessário um basta àquela perseguição. Mas qualquer posição dele perante o padre, contrariando-lhe a pregação, era-lhe certamente muito perigosa. A turba, tal como fizera com Nicolas, terminaria fazendo com ele. Bastava o padre ao menos insinuar. Lembrou-se, então, do fenômeno estranho que sentiu percorrer o seu corpo, no dia em que se encontrou com Nicolas, no campo. Sim, tal como Nicolas, ele poderia usar daqueles poderes, e mostrar a todos que o padre Messias não estava com a razão. Era preciso mostrar àquele povo que a cidade estava progredindo, graças à luta de todos, graças ao trabalho e ao empenho de quantos se dedicavam a seu labor, graças a quantos que acreditaram no crescimento maravilhoso de Botu, e acabavam vindo de fora, fazendo crescer a cidade, construindo casas, trazendo suas famílias para morar ali. Isso sim. Aquele progresso, admitiria Elvego, não era fruto de outro fator, senão do trabalho incessante daquele povo, e de tudo o que lhe passou a ser favorável, com o bom inverno que acontecera e outros que se prenunciavam como melhores ainda. Acabassem, pois, com aquela mania de perseguição, pois Nicolas era incapaz de fazer o mal.

Pensou em tudo isso, ao mesmo tempo em que não conseguia se desprender da certeza de que Botu hoje era outra graças à intervenção benigna e benéfica de Nicolas. Estava convencido disso. Facilitava-lhe esse convencimento toda a gama de conhecimentos que adquirira durante suas incursões por diversos caminhos do saber, aplicados na prática em muitas das comunidades por que já passara, e onde deixara a marca registrada de sua capacidade.

– Padre, aquele homem que mora no albergue está aí, e quer falar com o senhor.

– É o Elvego, Jovina? Se for, mande-o embora. Na certa, está querendo trazer dor de cabeça para mim.

– Nada de dor de cabeça, vigário – antecipou-se Elvego, invadindo a sala do padre.

– Mas o senhor é um atrevidinho!

– Calma, padre. Calma. Vamos conversar como pessoas civilizadas. Estou aqui na intenção de contribuir. Quero a melhor solução para os problemas que afligem a cidade de Botu. Pode acreditar. Não tenho mesmo outra intenção.

– Que é que tem a me dizer, a me propor? Não pense que por se proclamar o sabichão vai me levar em qualquer conversa. Diga logo o que tem a me dizer. E em poucas palavras, que eu não tenho tempo a perder.

– Padre, admita, padre, que Nicolas nunca fez mal algum.

– Como? E a destruição da via sacra?

– Mas, padre, que mal isso causou a qualquer homem ou mulher, menino ou menina dessa comunidade? Qual a casa, por exemplo, em que, por causa desse fato, a comida do dia-a-dia tenha desaparecido, diminuído? Isso não aconteceu a ninguém. Então, releve, padre, releve tudo isso, e deixe esses dois coitados compadres em paz.

– Nada disso. Eles são um perigo para a nossa comunidade. Quero vê-los pelas costas. Desafiar a autoridade do representante de Deus aqui na terra?! Eu que estudei, que vivo na igreja, cuidando das coisas do Senhor, sendo desfeiteado por aqueles inconseqüentes, dentro da própria casa de Deus?! Isso não posso esquecer e relevar, de maneira nenhuma!

– Ora, padre, o senhor já esteve do lado dele. Enganou-se. Corrigiu-se. Inclusive, face sua nova postura, readquiriu o prestígio que perdera junto à Diocese. O povo, agora, está mais satisfeito. Assim fica mais fácil controlar um rebanho. Pior é quando todos estão em situação de desespero. Mas agora todos estão de barriga cheia, mangando do tempo. Trabalho não falta, fartura existe. Botu cresce, gente de fora procura a cidade. Só tem mesmo a empanar essa situação de evidente progresso a mania de perseguição que o senhor vem promovendo. Acabe com isso, padre. Acabe de vez. Eu lhe garanto que Nicolas não vai trazer mal nenhum a ninguém aqui desta cidade.

Padre Messias nunca viu Elvego com bons olhos. A presença dele ali, na casa paroquial, o incomodava deveras. Ficou pedindo a Deus que alguém aparecesse ali, para aquela conversa logo terminar. O padre estava sentindo que não suportaria a força dos argumentos de Elvego. E, na realidade, o padre estava, intimamente, à cata de uma saída, quando, de repente, assomou à porta a figura de Cândida.

– Padre Messias.

Elvego viu que sua conversa com o padre não tinha mais como continuar, e saiu, sendo acompanhado pelo olhar investigador de Cândida.

 

Capítulo XV

 

Padre Messias não quis, na verdade, render-se diretamente a Elvego. Seu orgulho não o permitiu. Mas sabia que razão lhe assistia. Vivia ele promovendo aquela perseguição sistemática, mas os últimos acontecimentos convenceram-no de que não adiantava mesmo continuar. Ficara de queixo caído com as cenas sangrentas a que assistira e a tudo de inusitado que se lhes seguiu.

Padre Messias procurou os jornalistas. Queria a opinião deles. Eram pessoas esclarecidas. Podiam ajudá-lo no dilema em que o colocou a pessoa de Elvego Doso de Riela. Aquele homem era esperto e muito sabido. E o padre, embora bastante astucioso, estava com receio de ser engabelado. É verdade que, em termos de inteligência, ele não ficava atrás. Igualava-se a Elvego. Perdia apenas e tão somente no caráter e no somatório cultural que este, realmente, detinha, como fruto de seus estudos e, mais do que isso, das várias experiências por que já passara, em várias cidades do país e, até mesmo, em comunidades estrangeiras.

A reunião foi marcada para a casa paroquial.

– E aí, padre, estamos às suas ordens. Pode falar, que estamos ansiosos para ouvi-lo.

E dirigindo-se aos jornalistas ali presentes, mas sempre encarando Epistrau, o principal, o maior representante da imprensa ali em Botu:

– Caros jornalistas, eu sei que Botu, hoje, é diferente daquela Botu de há pouco mais de um ano e vários meses. A cidade cresceu assustadoramente. Vertiginosamente. Tornou-se, além disso, conhecida do país inteiro. Ganhou as páginas dos jornais de vocês. Uma coisa, realmente, de admirar, de causar espanto, de causar inquietação, inveja a outras cidades. Inclusive, eu já estou sabendo que alguns divinopolitanos vivem manifestando despeito só porque assistem ao ritmo acelerado de crescimento da nossa cidade. O povo está melhor, não mais se fala em miséria. Até mesmo a grande tragédia que se abateu sobre nós, com a morte de cinqüenta e cinco botuenses, está parecendo coisa superada, já perdida no tempo, pois o povo se alegra cada vez mais que a produtividade do lago Borrado aumenta. O povo delira mesmo, quando assiste à chegada de mais pessoas interessadas em aqui se estabelecer. A parte baixa da cidade, com o seu limitado espaço, vem sendo transformada com a demolição de prédios pequenos que dão lugar a novos edifícios, de linhas mais modernas e arrojadas. Quem é que pode esconder isso? Está à vista de todos. E, num ritmo que está sendo testemunhado por vocês, todos os dias, mediante o registro de seus órgãos de comunicação. Pois bem, meus senhores. E agora, quando tudo está nos eixos, quando tudo transcorre às mil maravilhas para a igreja, para o povo, para a tranqüilidade de todos, aparece-me aqui o Elvego…

– Elvego aqui, procurando o senhor, padre?

– Sim, Elvego Doso de Riela.

– E o que veio ele fazer aqui? O que ele veio pedir ao senhor?

– Pedir que eu concordasse quanto a não periculosidade de Nicolas. Veio me mostrar que eu estava errado, em continuar botando na cabeça de meus fiéis que deviam persistir na perseguição contra Nicolas. Que vocês acham disso?

– Hum, é um caso a pensar, padre – respondeu todo precavido o jornalista Epistrau.

– Mas chega mesmo a ser interessante, senhores. Eu, que me venho mantendo firme, mostrando aos fiéis o quão pernicioso é o Nicolas, o demolidor, o herege, que quase aniquilou a casa do Senhor, e agora vem o Elvego me propor que eu consinta em sua proposta de que Nicolas não é perigoso.

– Padre, acho que já era tempo de o senhor rever a sua posição.

– Será que vocês também estão pensando como ele?

– Padre, isso é violência. Violência não leva a nada.

– Eu sei…mas é que está em jogo a sobrevivência da minha igreja. Não quero vê-la por terra. Afinal, vocês também hão de reconhecer que estive em maus lençóis junto à Diocese, e minha situação começou a melhorar, quando, justamente, passei a admitir que Nicolas não era santo coisa nenhuma, que ele era sem nenhuma dúvida figura das mais perigosas para a nossa cidade.

– Esse coitado, padre, não passou daquela demonstração destruidora. Destruiu em parte a sua igreja e a igreja do pastor Dinosco. Só isso.

– E você acha pouco o que aconteceu há poucos dias diante da loja do Sinárdio? Que poder foi aquele, que coisa esquisita foi aquela?

– É, realmente, temos que concordar com o senhor.

– Então?

– Mas eles não se revelam capazes de fazer o mal a ninguém; pelo contrário, eles, naquele episódio, é que receberam toda a carga de maldade, saíram feridos, muito feridos…morto, pois foi assim que me disseram sobre o que aconteceu com Atrias.

A imprensa não cessava de lamentar o fato de não ter podido assistir à cena sangrenta. Perdera ótima oportunidade de estampar nos jornais as cenas dantescas que lhe foram passadas por quantos dos presentes que testemunharam as terríveis demonstrações de sede de vingança, de sede de sangue.

– Concordo com você, Epistrau. Mas com aquela forma de comportamento deles, principalmente da parte do Nicolas, quem é que garante que, de repente, ele não possa novamente se voltar contra a nossa igreja, contra os nossos santos, o nosso altar?

– Eu é que não lhe posso garantir nada, padre Messias.

– Pois então…

– Vai continuar mantendo o seu propósito de perseguição?

– Claro, muito claro.

– Mas, pelo que temos sabido, o senhor não tem conseguido nada de concreto e de positivo, no sentido de destruir o Nicolas. É o que estamos sabendo.

– Ah, estão sabendo, é?

– Claro, padre. Ou o senhor pensa que tudo nos escapa? Eu sei da reunião secreta da qual participou, inclusive, o Elvego. Admira-me, então, que o senhor não tenha tanta confiança assim no Elvego, e o tenha admitido nessa reunião…

– Mas, é que eu estava, realmente, necessitado de idéias, de mecanismos de força, capazes de aniquilar a ameaça de destruição instalada na cidade, contra a minha igreja. E eu não podia descartá-lo, pois sei que é muito inteligente, e culto também.

– Nós também sabemos disso. Mas temos alguma desconfiança dele. É de certa forma estranho. Trazia com ele informações importantes, e as sonegou o quanto pôde. Foi preciso que nós o desafiássemos, até que ele resolveu botar para fora aquela entrevista misteriosa que teve com Atrias.

– Eu lembro. Vocês fizeram o maior espalhafato com aquela entrevista.

– E tinha mesmo que fazer, padre. O senhor certamente não há de concordar quanto à realidade daquele fato. Um homem simples como o Atrias, um simples pescador, vir com uma conversa daquelas, uma narrativa de arrepiar os cabelos. Só podia mesmo chamar a atenção do meu público leitor. A repercussão não poderia ser outra. Aliás, Elvego é que não gostou da repercussão que adveio da publicação daquela estranha entrevista. Onde já se viu um visão como aquela, padre? Um peixe, não um peixe, mas um monstro enorme. O senhor está lembrado, não está?

– Claro.

– Tem alguma explicação para o caso?

– Ora, Epistrau, não vamos nos voltar para o passado. Vamos esquecê-lo. Vamos esquecer tudo quanto de ruim aconteceu conosco, com a nossa comunidade. De agora em diante, quero que você publique notícias auspiciosas. Fale da cidade que hoje é outra completamente diferente. Fale do progresso. E, quanto a esse lado da estória que me foi proposta por Elvego, vamos ver, vamos conversar, estou pedindo a opinião de vocês. Vocês acham que eu devo admitir que Nicolas não é perigoso? Estou certo de que posso contar com vocês. Afinal, compreendam, eu que tanto incentivei meus fiéis, de repente, assim sem nenhum motivo aparente ter que mudar de atitude, pode ser perigoso. Pode ser que eles não compreendam. Portanto, eu estou falando preliminarmente com vocês, na esperança de que possam me dar apoio, caso as coisas não saiam como eu espero. Vocês, realmente, têm uma força estupenda. Se, porventura, meus fiéis se voltarem contra mim, por favor eu quero agora o compromisso solene de vocês, o compromisso de que me ajudarão com certeza, fazendo a cabeça do povo. Posso confiar em vocês?

– Também não é assim, padre. A gente não publica armações.

– Agora você está me ofendendo, Epistrau.

– O senhor é que nos ofendeu primeiro, padre.

E a conversa não foi mais avante, porque os jornalistas, sentindo-se ofendidos, saíram da casa paroquial deixando o padre falando sozinho.