TÍTULO III – A REVELAÇÃO

Capítulo I

 

Não havia mais lugar onde se colocar as pessoas que chegavam. De todos os recantos do país e mesmo do exterior, chegavam jornalistas, pessoas curiosas. A cidade mudou de aspecto no comportamento das pessoas do dia para a noite. O fenômeno não podia ser melhor para Cândida. Todos concordaram que a coitada poderia adoecer, diante de tanta azáfama como aquela em que se metera. Falava numa esquina com um estranho, logo adiante com outra pessoa, num ritmo que chamava a atenção. Queria mostrar a todos o seu verdadeiro papel naquela comunidade. Não se acanhou um só instante diante de qualquer daqueles profissionais acostumados, na grande cidade, a lidar com a notícia. Acharam interessante a forma como exercia aquele papel de leva-e-traz de notícia. Uma forma rápida, sincera, segura, confiável, gostosa. Punham-se todos, nos intervalos dos seus trabalhos, a comentar sobre a atuação eficiente dela.

– Que criatura ativa! Como atua bem na transmissão oral das notícias!

A presença de tanta gente estranha no lugar, principalmente jornalistas, foi em razão de se haver espalhado na cidade de Botu e logo se irradiado para Divinópolis, dali para a Capital e desta, enfim, para o mundo inteiro, que, naquela cidadezinha distante, aparecera um objeto voador não identificado, de forma nunca dantes vista. Por isso, o que se presenciava era o vaivém constante de gente portando câmeras filmadoras gigantes e de difícil locomoção, câmeras fotográficas, máquinas de escrever: uma verdadeira parafernália de instrumentos de comunicação. Todavia, além desse fenômeno inusitado, viram-se diante da crença daquela população ignara, conduzida por um padre aproveitador, como era o padre Messias, que alimentava a convicção de seus fiéis quanto ao que representava Nicolas: a segunda vinda do Salvador, Senhor Jesus Cristo. Por conta disso, processava-se, todos os dias, uma verdadeira correria na estrada estreita de terra batida que levava à fazenda Caju. Não era um carrinho aqui, outro acolá. Era uma fila indiana que se formava todos os dias, mal o sol começava a aparecer. Iam todos em direção à fazenda de Zutza, mais precisamente ao estábulo cheio de vacas, bois e bezerros. Todos ficavam a observar o monte de capim sobre o qual fora encontrado Nicolas. Isso acontecia com os moradores do lugar, coitados, porque ignorantes e mal conduzidos pelo seu pastor; e com os jornalistas, porque curiosos e ávidos por contarem com novos desdobramentos daquele fato inusitado que muitas notícias lhes poderia render.

Assistia-se, pois, durante o dia, a um ritual de câmeras fotográficas e de máquinas filmadoras, que insistentemente focalizavam o monte de capim na fazenda Caju, na expectativa de uma novidade. Enquanto isso, todas as noites, as pessoas recém-chegadas à cidade se reuniam na praça central, contando, no mais das vezes, com a presença da velha Cândida, pois todos gostavam do jeito como aquela senhora se reportava às notícias que prazerozamente e de seu jeito peculiar as transmitia a todos.

 

Capítulo II

Na hora de tratar seriamente sobre o assunto, a cidade recuava. Nenhum habitante dali se mostrava capaz ou mesmo interessado em conversar com os jornalistas. Por isso é que eles não buscavam outra pessoa para tanto, senão Elvego Doso de Riela. Não se tratava de uma pessoa conhecida do meio jornalístico. Souberam que se tratava de pessoa culta, inteligente, mas que sempre se manteve distante da notoriedade. Por isso é que, mesmo filho da Capital, onde estudara e se formara, não era figura conhecida do meio social em que vivia. É que ele preferia ficar à sombra. Não gostava de aparecer.

– Senhor Elvego, e aí, o que é que o senhor pensa de tudo isso?

Elvego, agora sim, estava começando a ficar famoso. No albergue de Shiresto, microfones, câmeras, todos dispostos em sua direção, colhendo sua voz e imagem, que iriam dali para Divinópolis e, de lá, para a distante Capital, de onde se irradiariam para o mundo inteiro. Sua voz e a sua imagem passariam a ficar conhecidas, no cenário nacional e, em pouco tempo mais, no cenário internacional. Não era isso sua pretensão. Sua modéstia não o permitia. Contudo, foi apanhado naquela circunstância, numa cidadezinha do fim do mundo, onde se operou aquele fenômeno excepcionalíssimo, que despertou o interesse da imprensa nacional e de outros países. E sendo ele a única pessoa “iluminada” encontrada no lugar, logo foi naturalmente requisitado. É claro que isso despertou ainda mais a ira que o padre Messias já nutria por ele. A imprensa, como não podia deixar de ser, não demorou muito a compreender o que se passava entre Elvego e o padre Messias. E, por isso, cada entrevista era ocasião para se jogar mais lenha na fogueira. O inescrupuloso padre, a cada entrevista, revelava a todos, aos jornalistas e ao mundo, a sua posição absurda, apesar de representante da Igreja de Roma, tão poderosa. Cuidava, de assim o fazer, ressaltando, entretanto, a simplicidade característica da gente daquela cidade, onde se dera o fenômeno que estava agora a desafiar os assentamentos da fé religiosa. Um homem simples, como Nicolas, tivera, acompanhado de um seu compadre, u’a misteriosa visão. A seu respeito dissera, apenas, que o mundo seria visitado. E isso efetivamente veio a ocorrer, pois ao estranho objeto voador aparecido nos céus de Botu se lhe atribuiu a profética afirmativa de Nicolas sobre a visita que estava por acontecer. É que, concomitantemente a tal fenômeno, se verificou a sua misteriosa desaparição. Isso causou o maior rebuliço na cidade e a muito maior rebuliço ainda deu margem, quando, por fim, veio a ser encontrado na fazenda Caju, sobre um monte de capim. Ali, pois, ainda se encontrava, fazia já muito tempo. Ninguém se atrevia a tirá-lo dali. O padre não deixava. Os fiéis também não permitiam. Adoravam-no. E o pobre ficava exposto ao sol, à chuva e ao sereno da madrugada. Mas tinha que ficar ali, porque, para sair, ele próprio por suas pernas não o podia fazer. Elvego, então, se mostrou contrafeito àquela permanência ali. Não estava certo. Era uma desumanidade. Mas a força contrária era muito forte e Elvego, sozinho, via-se impossibilitado para conter aquela massa estúpida.

Os jornalistas compreendiam a situação difícil que Elvego tinha pela frente.

 

Capítulo III

 

– Ele abriu o olho, ele abriu o olho! – observou espantado um homem de meia idade, terço à mão – E está olhando diretamente para o padre Messias, vejam!…

Era verdade. Após permanecer estático ou quase estático, por semanas sobre o monte de capim, Nicolas dava, vez por outra, algum sinal. Cada movimento seu era motivo de muita indagação, de muito questionamento. Primeiro foi o dedão do pé direito, depois as pernas, uma inspiração forte seguida de igual expiração, mas agora ele abrira os olhos e os direcionara a alguém. Padre Messias é que tivera o privilégio. Sim, o Cristo em pessoa, ali sobre o capim seco, naquela hora da tarde, cerca de quinze horas, um sol esbraseante, remetia, no gesto de olhar qualquer coisa, alguma mensagem que o padre Messias se fazia facilmente o seu receptor, enquanto que todos, ao redor, os habitantes de Botu e tudo o que era de jornalistas, ficavam à espera do que pudesse acontecer.

Uma palavra sequer não foi anunciada por Nicolas. Limitava-se ao movimento lento de partes do corpo. Agora é que se adiantara um pouco, abrindo os olhos e direcionando o olhar para o padre. Nada mais além disso. Não fazia o menor gesto, a menor menção de que quisesse sair dali daquela situação incômoda, sem muito conforto, ali mesmo fazendo as suas necessidades, que eram poucas, na verdade, pois não se alimentava de quase nada.

De repente, uma voz rouca, mas bastante forte, ecoou no espaço:

– Bem que eu disse, e se o disse é porque ele também o afirmou que o mundo seria visitado. Viram, seus infiéis? Não quiseram acreditar em nós. Pois agora estão aí com ele, em carne e osso. Aqui estou para anunciá-lo, pois tanto quanto aconteceu na primeira vez, ele agora não irá prescindir de um precursor, nessa sua segunda vinda.

Os jornalistas interrogaram-se. Aquele homem mais parecia um louco com aquela estória de o mundo ser visitado. Souberam que ele se vira cercado pelo mistério acontecido meses antes e que, agora, estava ali, falando, somente ele falando. Aliás, somente ele é que se dispôs a dizer qualquer coisa sobre o acontecimento inusitado que, agora, estava pondo Botu em plena evidência, no mundo inteiro, com a notícia de que em seu solo, mais precisamente sobre um monte de capim seco na fazenda Caju, um homem jazia santamente, trazendo a boa nova em sua segunda edição.

– Mas, Atrias, por que Nicolas não fala?

Era o padre Messias, impaciente, quem perguntava, preocupado em face do mutismo de Nicolas.

– É preciso procurar entender bem e melhor as mensagens, padre – sentenciou, com voz rouca, Atrias.

 

Capítulo IV

 

De uma coisa Elvego – que não era homem de esconder a verdade – não podia discordar: o que motivava o chamariz de tantas pessoas estranhas ali em Botu era, sem dúvida nenhuma, a aparição do estranho objeto, naquele domingo em que o padre Messias vomitava o seu sermão contra tudo o que era de autoridade do lugar. Sim, aquele estranho objeto não era coisa da imaginação de nenhum ignaro de Botu. Uma população inteira o tinha visto em sua dança, bailando nos céus da cidade. Um veículo redondo, todo muito bem iluminado, luzes piscantes. Deslizava no espaço de cima para baixo, de baixo para cima, de todos os lados. Punha-se aprumado uma hora, noutra ficava de cabeça para baixo. Essa era a impressão que dava, pois, ao certo, não se podia assegurar que aquele objeto estranho tivesse as partes de cima e de baixo.

Elvego assistira ao espetáculo promovido pelo estranho objeto. Encontrava-se, no momento, na varanda do albergue de Shiresto, numa espreguiçadeira. Aliás, ele gostava muito de nela se deitar, repousar o corpo um tanto magro, em face da alimentação controlada a que era acostumado. Realmente, o nosso herói ficou estupefato. Nunca tinha visto coisa semelhante. Já havia lido muito sobre OVNI’S. Assistira a muitos filmes, obviamente tudo pura ficção, pois sobre o assunto nada de concreto, até aquele momento, tinha visto, não sendo do seu conhecimento a existência de qualquer museu onde estivesse exposto algum extraterreno. E agora? Diante do que estava presenciando – aquela maravilha, aquela coisa de encher os olhos, objeto muito bonito, rápido, bem desenhado, silenciosíssimo e dono de uma autonomia de movimentos impressionante – que fazer? Teve que esfregar os olhos, para ver se não estava sonhando. Viu, enfim, que não se tratava de sonho coisa nenhuma. Era realmente um objeto estranho, não identificado. Só faltava dele descer um ET para vir falar com ele.

– Senhor Elvego, precisamos falar com o senhor.

Era o jornalista da equipe da Rede Nacional de Televisão, a mais importante do país, que transmitia em cadeia nacional o jornal da noite, em horário nobre.

Televisão, em Botu, era coisa rara. Poucas pessoas dispunham desse aparelho de comunicação. Para se captar o sinal utilizavam-se antenas gigantes de vários elementos. Para cada canal que se pretendia captar, uma antena a mais. Dos raros aparelhos de televisão, ali em Botu, havia um na casa de Floripes e outro na casa do padre. Só. E para tamanho privilégio desses dois senhores, grande soma de filardi havia sido gasta na colocação de uma estação repetidora entre Botu e Divinópolis, quando, pelo certo, para u’a melhor captação dos sinais – porém, evidentemente, mais caro e mais imoral ainda – se faziam necessárias, pelo menos, umas três estações, face a grande distância entre as duas cidades.

– O senhor agora vai ser notícia para todo o país, senhor Elvego. Concorda em ser entrevistado?

– Perfeitamente, com todo o prazer.

Os jornalistas estavam, realmente, intrigados com tudo aquilo que acontecera. Não só o aparecimento do estranho objeto os intrigava. É que, àquela altura dos acontecimentos, já se haviam informado cuidadosamente a respeito dos dois homens enigmáticos. Caju.

Elvego, realmente, tinha muita coisa a falar, pois fora o primeiro a manter contacto com os dois homens, desafiando, inclusive, as autoridades do lugar. Dasafiando autoridades? Não, como sabemos, não houve desafio algum, nesse sentido. É que, quando ele agiu, não havia, na cidade, autoridade nenhuma. Disso os jornalistas precisavam estar prevenidos.

 

Capítulo V

 

Botu, da noite para o dia, se tornou manchete de jornais e de telejornais. Ali, naquele fim de mundo, começou a ser noticiado pela grande imprensa que acontecera um fato de fundamental importância para o mundo religioso. A população, com a ajuda das palavras do sacerdote do lugar, prontamente passou a não mais encarar o Cristo crucificado, mas a pessoa de um homem simples, muito humilde, pescador do lago Borrado, conhecido de toda aquela gente, como sendo aquele que trouxera a boa nova, a boa notícia, na conformidade da promessa de que voltaria, feita por Cristo. E ei-lo ali, por sobre um monte de capim seco. Um homem magro, esquálido, barba rala, porém já bastante grande, olhos fundos, de estatura alta, cor bem morena. Os jornalistas que vieram ter naquele fim de mundo por conta da aparição de um OVNI (objeto voador não identificado) deparavam-se, agora, com aquele outro fenômeno. A autoridade eclesiástica, com o peso de sua capacidade de persuasão, profundo conhecedor da fé daquele povo, não precisou de muito esforço para conseguir aquilo que tinha em mente: fazer de Botu o novo centro mundial de uma nova religião, um novo fundamento religioso, uma nova forma de ligação entre o céu e a terra. Sim, o Cristo crucificado, nascido da era de peixes, cedera lugar ao novo Cristo, ao Cristo prometido por Ele próprio, o Nazareno, o qual disse que voltaria – assim explicava o padre Messias, aos fiéis, ao seu rebanho. E só poderia ser um Cristo bem diferente daquele que habitou as terras da Judéia. Era um Cristo simples, que não falava, que nada dizia, que sobretudo devia ser entendido apenas pelos seus gestos e atitudes. E precisava mais do que ele estava representando ali sobre o capim? Palavras não eram necessárias. Bastava que a população se imbuísse da certeza de que aquela figura estampava o novo Cristo. Um Cristo diferente, que descera da cruz. Um Cristo vitorioso na verdadeira expressão da palavra. Um Cristo que a tudo dominava sem necessidade de qualquer palavra, de qualquer parábola. O ensinamento maior e principal, nuclear, era ele, a figura dele, a estampa dele, do homem simples, comum, o pescador de fama do lago Borrado, que tantos peixes já havia fisgado e que, agora, transmudara-se na figura do novo Cristo. Mostrava-se como o Cristo da nova era de Aquárius, onde o domínio deixava de ser do peixe, para ser o da água; da água do próprio recipiente onde o peixe se mantinha vivo…

– Não se enganem, meu irmãos, sigam as minhas palavras, cuidem desse santo homem que está ali sobre o capim seco. Aquilo tudo, não duvidem, é santo. É santo o próprio homem que ali está. É santo o capim que, com a maciez de seus finos talos, recebe aquele corpo bendito. É bendito o chão onde está o capim. É bendita a terra da fazenda Caju. Zutza, o velho Zutza, homem de muita sorte, de muita felicidade! Ter a terra, possuir a terra sobre a qual desceu do céu a figura do Cristo redivivo, do Cristo valioso, definitivo, vencedor.

O padre Messias aproveitava que a igreja de Santa Júlia estava cheia de fiéis. Não só de fiéis. Havia também, em menor número, pessoas estranhas, interessadas em ver de perto a dialética daquele padre, daquele aproveitador. Sentia-se como aqueles, em sua ignorância, bebiam as palavras do padre, acreditando em tudo o que ele dizia e pregava. Consentiram, inclusive, que fosse retirada do centro da igreja a grande cruz com o Cristo crucificado. O padre disse que aquele Cristo já deixara de ser, e que deveria, no seu lugar, ser posto o outro Cristo recém-chegado.

Elvego informava-se de tudo isso invadido de intensa preocupação.

 

Capítulo VI

 

– Que é que se passa aqui, Messias. Você enlouqueceu? Está esquecendo o seu verdadeiro mister? Acabe logo com isso.

O bispo de Divinópolis assim iniciara uma conversa, na sacristia, com o padre Messias. A situação estava mesmo insustentável. Abalava a estrutura da Igreja. Roma já estava sabedora do caso. Era preciso que as autoridades interviessem.

Cuidava-se de uma grande novidade. Aliás, tudo ali em Botu era, agora, novidade. A população até que se divertia. Deixaram aqueles habitantes de ter uma cidade de comportamento regular, tudo acontecendo como se programado, na hora certa, para, agora, presenciarem aquela movimentação toda. Até bispo a cidade estava agora recebendo. E se tivesse ele vindo só, mas não. A comitiva que o acompanhou dava para encher um vagão de trem, sem exagero. Era assessor para tudo quanto era de assunto, de tema ligado à vida comunitária, às conveniências de uma boa e salutar sociedade, firmada nos fundamentos do cristianismo e, muito mais do que isso, do catolicismo de Roma.

– Passa-se o que na sua cabeça, meu irmão? Esqueceu os ensinamentos do Seminário? Oh, essa sua alma precisa de nossa orientação.

– Perdoe-me, Vossa Reverendíssima. Perdoe-me, mas vou manter o meu modo de ajudar essa gente a interpretar o fenômeno. É preciso. Essa miserável gente, essa cidadezinha do fim do mundo, desprezada, um dia haveria de ter o seu dia de grande, e esse dia chegou. Perdoe-me, mas não vou deixar passar essa oportunidade.

E, falando alto em direção aos integrantes de sua comitiva, disse o bispo:

– É claro que a saída é afastá-lo daqui.

Buscou a aprovação de cada um de seus assessores que, unânimes, balançavam a cabeça em sinal de concordância.

– Pouco me importa, meu irmão. É preciso outra Igreja para esse povo, com fundamento na novidade que ora temos em nossa cidade, na nossa querida Botu, essa cidade que Vossa Reverendíssima nunca pensou existir, nem mesmo no mapa, não é? Pois então, que me retirem até mesmo as ordens sacerdotais. Pouco me importa. Aqui ficarei. O povo me quer. Faço compreender bem e melhor o fenômeno acontecido com os dois homens enigmáticos. Homens enigmáticos, vírgula, porque agora eles todos já sabem que não existe enigma coisa nenhuma. Tudo está revelado. Ás claras, não se há de ter dúvida – interveio, enfaticamente, o padre Messias.

Grande massa de fiéis, a essa altura, tomava conta da igreja de Santa Júlia. O bispo e todo o seu séquito sentiram que nada podiam fazer. Falar qualquer coisa ali que contrariasse o que pregava o padre agitador podia ser perigoso para eles. Poderiam ser vítimas até mesmo de um linchamento.

– Voltaremos outro dia aqui, padre Messias. Fique com Deus, meu irmão.

– Não voltando, faz enorme favor.

A briga estava realmente feia, e não iria ficar naquilo que se viu, pois, na certa, aquele diálogo seria apenas o começo de uma queda de braço violenta entre a Diocese e a Paróquia de Santa Júlia.

 

Capítulo VII

 

Sol a pino, um calor de rachar e lá estava o bispo Agamirhom, com sua habitual vestimenta, acompanhado de sua comitiva, fazendo número juntamente com uma multidão que cercava o monte de capim seco.

À vista do bispo, Nicolas foi encolhendo as pernas, lentamente, suavemente. Pôs-se sentado, encarando-o. O bispo arrepiou-se. Aquele que era o centro das atenções de todos era realmente um homem bastante diferente na sua plástica. A sua pele era bem queimada pelo sol e ostentava um brilho fora do comum. O seu semblante transparecia um inenarrável estado de tranqüilidade, de sossego, de paz, tudo isso em que pese a situação de desconforto que estava ele vivendo ali, pois que conforto pode dar um monte de capim seco?

Aquele quadro impressionou o bispo. Teve que se esforçar para se não deixar levar pela nova figura religiosa que o padre Messias estava montando. Sim, montando. A palavra correta a ser aplicada ao caso era essa mesma. Uma armação. Sabia o bispo o verdadeiro caráter do padre Messias. Desde os tempos do Seminário. Vivia à cata de algo que lhe pudesse servir de promoção, para aparecer. Tanto lutou para se promover na Diocese da Capital, onde o bispo Agamirhom o ordenara padre, mas vendo que ali não conseguia, surpreendeu a todos, quando aceitou de bom grado a ingrata missão de pastor de almas de Botu, a cidadezinha longínqua, do fim do mundo.

– Não é possível que entre vocês, meus irmãos, não exista uma pessoa de bom senso – procurou o bispo iniciar uma conversa.

Foi o bastante para as pessoas se distanciarem dele. E logo foram apanhando tudo o que estava ao alcance de suas mãos, nas proximidades do monte de capim seco. Pás, enxadas, paus, pedras. O padre Messias atiçava essa iniciativa do povo.

– Calma, calma, isso não leva a nada. Não façam nada contra o bispo. Vocês estão loucos?! – interveio, conciliador, Elvego.

Padre Messias, nesse instante, olhou fixamente em Elvego e mudou, de repente, o seu olhar para o bispo e deste para a turba, num gesto aprovativo de que o intrometido maior ali era Elvego.

Não demorou muito tempo e logo uma chuva de paus e de pedras caiu por sobre a cabeça do bem intencionado Elvego. Isso, sem dúvida, foi a demonstração de algo realmente escandaloso, perigoso, pois a presença ali de autoridades e de todo um aparato da imprensa falada, escrita e televisada não produziu o menor sentido de respeito e de inibição da parte dos agressores.

– Depressa, levem o homem para o posto de saúde.

Os assessores do bispo e alguns jornalistas apressaram-se em retirar Elvego dali, não só para livrá-lo de novos ataques, como pela necessidade de levá-lo ao enfermeiro do posto de saúde Santa Emília, ali de Botu, para o fim de lhe fazer vários curativos, pois muitos foram os ferimentos recebidos.

 

Capítulo VIII

 

– Anuncio para amanhã. Amanhã, meus irmãos, nos primeiros clarões da aurora. Quero que todos se dirijam à fazenda Caju, lugar abençoado. Ali, todos teremos, enfim, a revelação do segundo advento. Que vão todos. Homens, mulheres, crianças, todos. Que não fique ninguém em casa. É preciso que grande número de pessoas testemunhe esse grande acontecimento da humanidade. O dia em que Cristo, que voltou à terra, soberano, vencedor, vai, enfim, transmitir a sua mensagem; a sua nova mensagem.

Atrias trazia à mão uma vara nem tanto fina, nem tanto grossa, toda cheia de nós, ainda em casca, com a resina ainda a escorrer pelos talhos que sofreu.

– Vejam, meus senhores e minha senhoras. Esta vara tem a escorrer a seiva que nutria a árvore de onde ela foi cortada. É o sangue do sacrifício. Agora, porém, meus amigos e minhas amigas, como vocês haverão de ver, não se testemunhará sacrifício ou coisa parecida. Não haverá sangue derramado. Eu estou aqui para anunciar o novo Messias.

Eram não mais que oito horas da noite. A praça principal da cidade, iluminada de luz elétrica fornecida por um gerador de inferior qualidade e de pouca potência, dentro de poucos minutos iria ficar às escuras. Não é nem preciso dizer que aquele lugar estava apinhado de gente. À noite, lá na fazenda do Zutza, ao redor do monte de capim seco, ficavam umas poucas pessoas, as mais fanáticas que acreditavam no que sua ignorância lhes ditava e, ainda mais, reforçada pela dialética interesseira e pessoal do padre Messias. Mas a maioria das pessoas invadia a praça única e central da cidade de Botu. Bem arborizada. Calçadinhas bem feitas, banquinhos à vontade. As pessoas mais velhas se misturavam às mais jovens. Cândida era presença indispensável ali. Pois bem, e o nosso pescador Atrias, aquele que sempre fora conhecido de todos como pescador, estava, agora, a pregar, a anunciar, como o fizera João Batista às margens do rio Jordão, na Judéia. E não é que ele parecia mesmo a figura daquele santo homem?!

– Aguardem, meus senhores. O meu anúncio está feito. Quero que todos, amanhã, estejam, como já disse, na fazenda Caju. A revelação acontecerá ali. Depois, todos testemunharão ali bem adiante, nesta cidade, no riacho Opá, este modesto conhecido de vocês aqui, aliviando o Messias, nas águas desse regato importante para nós e que, agora, vai entrar para o conhecimento geral da humanidade, por ser a vertente em que o novo Cristo aliviará o seu santo corpo após a quentura das labaredas com que haverá de ser batizado.

Os jornalistas riam de forma desbragada. Evidentemente não sem correrem o risco do recebimento de pedradas e de pauladas. Foi isso que logo se testemunhou. Saíram eles correndo da praça, e foram todos para os seus aposentos. Uns, no albergue de Shiresto; outros, na casa do prefeito. Nenhum deles, evidentemente, na casa do padre Messias.

A partir daquele momento, no entanto, é que todos sentiram o vigor que tomava aquela estória de nova vinda de Cristo, a considerar as palavras que acabaram de ouvir pronunciadas ali na praça, através de um homem simples, sem cultura e que da vida o que mais conhecia eram instrumentos de pesca, sua labuta normal no lago Borrado.

Estaria o padre Messias ensinando aquelas palavras ao pescador Atrias? – muitos se perguntavam.

 

Capítulo IX

 

Dava gosto ver a movimentação existente no albergue Descanso Alegre. Nunca tanto aquele recinto estivera tão lotado. Acostumado a receber os feirantes e fregueses que vinham nas segundas-feiras de todos os arredores da cidade, das muitas vilas e distritos, para a movimentadíssima feira da região, Shiresto, agora, estava recebendo gente importante. Na cozinha do albergue, apenas uma geladeira a gás, que agora estava sempre cheínha de refrigerantes e de cervejas, tudo isso para abastecer a sede daquela gente estranha que passava o dia no trabalho, naquela azáfama da cata de notícia, mas, à noite, não desprezava mesmo a cerveja geladinha, a boa conversa, que girava, evidentemente, em torno do aparecimento do objeto estranho, como também a respeito do que os habitantes dali chamavam de mistério e que já estavam atribuindo como sendo a segunda vinda de Jesus Cristo.

– Desça mais uma aí, seu Shiresto. Bem geladinha. Mande também um tira-gosto de pitu. Esse bicho está delicioso – exigia um dos câmeras da Rede Nacional da Televisão.

E por falar em Rede Nacional de Televisão, imensa malha de comunicação conhecida não só do país como também de todo o mundo, esta fazia a cobertura do fato de que já sabemos, mas lhe era interessante saber muito mais ainda a respeito, para vender a notícia, e espalhá-la pelo mundo inteiro, pois a forma como os fatos se apresentavam deixava-lhe a certeza de que só podiam dar piques de audiência, como já acontecera com a edição dos três últimos noticiários, a marca fundamental de sua tele-audiência.

Shiresto não sabia o que fazer. Na primeira segunda-feira, após a avalanche de gente que aportou em seu albergue, ficou de cabeça quente, por não conseguir logo uma saída para resolver o problema dos seus fregueses. Eles, sim, é que lhe eram o faturamento certo, estavam ali todas as semanas, pois vinham para a feira negociar, e não tinham como voltar no mesmo dia, porque residentes em distritos longínquos, alguns deles distando quase duzentos quilômetros de Botu. Mas também não deveria dizer aos recém-chegados que não podia hospedá-los. Seria até mesmo uma falta de hospitalidade. E a hospitalidade, como sabido, deve ser a característica fundamental de quem faz o setor que ele explorava ali em Botu há tanto tempo e sem qualquer concorrência. Pois o nosso Shiresto terminou conseguindo, junto a amigos seus, a colocação dos seus fregueses habituais nas casas deles, para então poder continuar albergando aquele grande número de jornalistas. Também era um filão com que ele não contava e que não podia desprezar de maneira nenhuma. Tinha mesmo era que aproveitar. Chance como aquela ali em Botu ele não teria nunca mais em sua vida de albergueiro.

 

Capítulo X

 

– Todos estamos realmente espantados com o fato de um homem esclarecido como o senhor estar dizendo da existência de disco voador, coisa que é realmente cercada de muito mistério, de muita dúvida no mundo inteiro. Nunca houve, até hoje, um depoimento tão firme, de pessoa tão esclarecida, como o senhor. Não teme que venha a ser exposto ao ridículo? Expor-se, assim, sem mais nem menos?! O que o senhor está lucrando com isso?

– Alto lá, meu confrade, acho que você está indo por caminho errado. Você está magoando o nosso entrevistado. Ele não merece isso. Vamos deixar que ele fale – observou um dos repórteres da Rede Nacional de Televisão.

Elvego, enquanto isso, se mantinha calado. Não estava ali para discutir com ninguém. Não era homem para esse tipo de comportamento. Jamais discutira em sua vida. Para ele o que importava era a força do argumento. Jamais o argumento da força. Logo, a nada se podia chegar através da discussão acalorada. O falar compassado, com calma, pensando bem antes de emitir qualquer sentença, era o modo e a maneira que mais o caracterizavam.

– Meus caros jornalistas, não estou desejando que vocês acreditem. Vocês estão aqui, me entrevistando, porque fui testemunha ocular de um fato. A minha presença aqui nesta cidade, naquele dia, é fato incontestável. Cheguei aqui muitos dias antes da aparição do estranho objeto. Não foi a minha presença contemporânea à visão que tiveram os compadres Nicolas e Atrias. Isso não, pois quando aqui cheguei eles já estavam sendo adorados pela população ignorante desta cidade. Agora, quando ao estranho objeto…, estranho objeto, não! O disco voador, este eu o vi mesmo. Era algo verdadeiro. Era matéria mesmo. Era redondo, era. Era cercado de luzes, era. Era silencioso, era. Era estranho, era. Movia-se em todas as direções, movia-se. Isso tudo eu vi com estes meus olhos. Até hoje eu procuro me analisar sobre se, na hora, eu não estava de algum modo em estado sonífero, para estar sonhando, ou se eu não estava de alguma forma sob hipnose. Nada disso. Eu estava com os pés no chão. Um ser racional em toda a extensão do seu potencial. Encarando aquilo sem me deixar invadir por sensações apaixonantes, sem interesse de aparecer como testemunha, nada disso. Eu vi. Eu estava aqui. Digo isto em qualquer lugar do planeta. Não tenho motivo para esconder a verdade. Esse fenômeno sobre o qual vocês vieram fazer a cobertura nesta cidade de Botu ocorreu deveras. Digam isso para todo o mundo. Que as pessoas sejam bem informadas a esse respeito. Botu, realmente, teve, nos seus céus, a presença de um disco voador, de um objeto não identificado, objeto não pertencente a este planeta Terra. Agora, meus caros jornalistas, o que vocês não hão de confundir é a constatação que fiz e aquela também feita pelos habitantes desta cidade. Todos viram o objeto tanto quanto eu, pois todos têm olhos e tiveram a sua atenção despertada. Até o padre Messias, pois ele teve de deixar o púlpito onde orava, para também navegar com os olhos pelo céu de Botu, para fazer o mesmo que estavam fazendo os seus fiéis que abandonaram a igreja, na hora da Missa. Ele também viu. Mas vai uma diferença muito grande entre a constatação dele e dos habitantes ignorantes da cidade e, modestamente, a da minha pessoa. Eu, particularmente, confesso que, se antes não acreditava em objetos estranhos vindos do espaço, agora acredito, piamente, na existência deles. Não comungo do que se alardeia, ou seja, do fato de que o pescador Nicolas tenha sido arrebatado por ele e reaparecido, depois, sobre um monte de capim seco na fazenda Caju do senhor Zutza. Nisso crêem os habitantes da cidade, com o reforço da dialética do padre Messias, isso sim.

– Mas, Elvego, você não cuidou de, ante um fenômeno dessa natureza e dessa dimensão, ao menos apanhar a sua máquina fotográfica para, num click, registrar o que os seus olhos viam? – interveio, sarcasticamente, um repórter da Folha de Notícias.

– Basta, meu caro jornalista. Eu não vou me exasperar com o que você está insinuando. Você, nem qualquer de seus confrades tem a obrigação de acreditar no que eu lhes narrei. Disse sinceramente tudo quando me era possível lhes dizer. Agora, eu peço licença aos senhores para me retirar. Preciso descansar. Dêem-me licença, por obséquio.

E retirou-se com destino aos seus aposentos.

 

Capítulo XI

 

Não era de se esperar outra coisa. A fazenda Caju, de propriedade do velho Zutza, embora grande, um enorme descampado em torno das estrebarias e dos estábulos, ficou pequena demais para a grande multidão que para lá embicou. Era gente não só da cidade de Botu, mas das redondezas, das vilas, dos distritos e dos povoados e, também, de cidade grande, como Divinópolis. E assim, uma multidão se fez presente naquele início de manhã do dia indicado pelo pescador Atrias, quando se anunciara como precursor do novo Messias.

O monte de capim seco estava molhado do orvalho da madrugada. Um vapor subia por entre os talos e as palhas devido aos primeiros raios do sol que sobre aquele capim incidiam. Nicolas mantinha-se na mesma posição de sempre. Quase estático. Lá uma vez ou outra mexia um pouco com uma perna, com um braço. Ficava naquela posição meditativa, olhar sempre fixo num determinado lugar. Magro, macérrimo. Também não comia quase nada. É que não comia como antes o fazia desde o dia em que teve a visão do peixe enorme, quando estava com o seu compadre Atrias à margem do rio Opá. Cabelos grandes, longos, barba também enorme.

Alguém se destacou na multidão. Era Atrias, ele que anunciara que, naquele dia e naquela hora, haveria de acontecer a revelação. Com passos lentos, foi se aproximando do monte de capim seco. À proporção que se aproximava dali, u’a modificação se ia produzindo no comportamento de Nicolas. Aos poucos, foi dando movimento sincronizado às diversas partes do corpo. Mexeu ativamente as pernas, depois, os braços. A cabeça começou a se movimentar de um lado para o outro, numa demonstração de que ele passara a prestar atenção àquela imensa massa humana que estava ali ao seu redor. Chegou a se levantar. Abriu a boca. O rosto da massa ignara dos botuenses transmudou-se. Sentiram todos como se tivessem sido vítimas de um grande abalo. Não suportaram, e todos, então, abaixaram-se, cabeças postas na terra, olhos fechados.

– Agora o danado desse homem vai falar – foi a avaliação que imediatamente surgiu à mente de Elvego; ele, como sabemos, nada conseguira de Nicolas, por mais que tivesse feito para lhe arrancar uma confissão, uma declaração.

Elvego e, evidentemente, todo o pessoal da imprensa ali reunido, eram os únicos que encaravam a cena que se passava.

– Divino Mestre! Continuo não sendo digno de vos desatar as correias das sandálias. Como consentistes antes, peço-vos que, neste novo advento, seja eu o encarregado do vosso batismo; batismo que, todavia, não farei com a água. O vosso batismo, filho de Deus vivo, será feito no fogo devorador que consumirá, de forma indolor, o homem impuro, para que um outro renasça puro, imaculado, definitivamente, porque, sem dúvida, a água não tem mais poder do que o fogo.

Nicolas, já de pé, se pôs a movimentar a boca, deixando parecer que falava. Mas, na verdade, nada se escutava, em termos de palavras que porventura estivesse pronunciando.

– Viram todos, podem duvidar de alguma coisa? Suas orientações não nos deixam enganados mesmos. Pois ele começou a lançar a sua doutrina, a doutrina da nova fé, a fé poderosa, que permite ao homem o domínio de tudo e de todos…

Os jornalistas ficaram entre risos e estupefação. Como é que um homem daquele como Atrias, simples, humilde, aparecia, agora, com aquele discurso, com aquela linguagem a que jamais esteve acostumado? Na verdade, era uma linguagem que fugia ao seu cotidiano, pois só sabia mesmo da arte da pesca, juntamente com seu compadre Nicolas e seus companheiros do lago Borrado. Não entenderam bem foi quando ele disse a todos ali presentes que Nicolas havia feito orientações. Como? Na verdade, todos somente assistiram à gesticulação que ele fazia como que estivesse falando. Mas não se escutava som nenhum saído de sua boca.

Novamente, viram quando Nicolas voltou a movimentar a boca, dando a entender que estava falando.

– Viram, senhores, uma etapa, mais uma etapa da nova revelação. Eu escutei. Vocês não escutaram? Não??!! – insistia Atrias.

 

Capítulo XII

 

– Afastem-se, afastem-se – ordenou, aos gritos, o pescador Atrias.

Estava ele, nesse instante, com uma caixa de fósforos. Abriu-a e lhe retirou um palito, atritando-o. O pequeno lume produzido foi dirigido ao monte de capim seco sobre o qual se encontrava Nicolas.

– Esse homem está louco, vai queimar o compadre dele. Além do seu sofrimento, tantos dias em cima desse capim, sem comer, sem beber, submetido ao sol, ao calor intenso, ao sereno da madrugada, e agora… – observou um dos circunstantes.

– Calma! Vocês não sabem o que eu faço. Isso são coisas que não pertencem ao mundo de vocês. Eu é que recebi a iluminação. Eu é que devo ser o responsável por tudo o que aqui acontecer. Aliás, nada de ruim vai acontecer a ninguém. A ninguém mesmo, meus senhores. Eu garanto. Nem mesmo os animais do senhor Zutza sairão prejudicados. O comer deles não será consumido pelo fogo. Eu garanto. Deixem-me continuar a tarefa que os céus me reservaram.

E fazendo encostar o lume do fósforo àquele capim seco, o fogo logo foi se alastrando. Primeiro, como se uma coisa devidamente ordenada, ele foi fazendo um círculo. E cada vez que um círculo se formava, mais um outro tinha início, sugerindo uma espiral, até que, enfim, chegou a encostar no preciso lugar onde se achava, já de pé, verdadeiramente ereto, o pescador Nicolas, braços abertos, cabeça erguida para o alto, um semblante que transparecia muita paz e muita confiança. O fogo primeiro lhe atingiu os pés. Inicialmente apareceu em cor amarelada. Depois, no exato momento em que atingiu o corpo de Nicolas, passou a exibir uma coloração diferente. E mais se transmudava, à proporção que avançava e atingia paulatinamente o seu corpo. Apresentou, primeiramente, nos pés daquele homem, uma cor azulada bastante clara. Ao atingir o tronco, já aparecia com uma cor lilás. Finalmente, quando atingiu a cabeça, já apresentava uma cor avermelhada. O fogo crescia e, entre uma labareda e outra, era possível enxergar as diversas partes do corpo de Nicolas. E foi surpreendente notar, nas vezes em que se pôde divisar o seu rosto, que o mesmo transmitia a todos a maior tranqüilidade, como se aquele fogo, aquela fogueira toda que estava ardendo não estivesse em nada abalando a sua estrutura física, apesar de as vestes se apresentarem chamuscadas.

– A minha parte está feita. Deixem-me retirar, não sem antes ajoelhar-me aos pés do meu Salvador.

E assim fazendo, Atrias ajoelhou-se diante de Nicolas. Este, nesse momento, já havia saído da fogueira. Postara-se ao lado dela. Esta ainda ardia, se bem que em menor intensidade. O seu fogo foi, então, perdendo tamanho e, à proporção em que diminuía, permitia ver o capim que todos viram queimando e que, apesar disso, continuava totalmente íntegro, como se nenhum fogo o tivesse atingido.

– Viram, eu não disse a vocês que nem o Zutza teria prejuízo? Pois ele agora faça seus animais se achegar ao monte de capim, para se alimentar.

Atrias, então, tomou a direção com destino à cidade, informando que estaria aguardando a todos no local em que ele e Nicolas haviam tido a estranha visão. Cerca de quinze minutos depois, Nicolas, passos firmes, decididos, se pôs a caminhar. Tomou, também, o destino da cidade.

Não é preciso dizer que toda aquela gente, uma verdadeira multidão, prosseguiu em procissão. Ninguém imediatamente atrás de Atrias; todos, sem exceção, inclusive os jornalistas, atrás de Nicolas, o centro realmente de todas as atenções.

Dentro de uns vinte e poucos minutos estavam os dois, Atrias e Nicolas, na cidade, na frente da loja de tecidos do senhor Sinárdio, ali mesmo onde eles tieram a estranha visão do peixe enorme, à margem do rio Opá.

 

Capítulo XIII

 

À margem do riacho Opá, uma enorme multidão fez um círculo. Todos queriam ver o encontro de Nicolas com Atrias. E o que se viu foi, realmente, como este havia predito. Com uma concha de coco, achada ali nas proximidades, ele, pedindo que Nicolas se introduzisse nas águas do regato, e uma vez atendido, se pôs a retirar água e colocá-la por sobre a cabeça do seu compadre e, ao passo que mais água ia colocando, um vapor se manifestava, aumentando de intensidade, até que, enfim, envolveu os dois personagens, a ponto de os circunstantes ficarem impedidos de vê-los. Todas as pessoas ali presentes, de um momento para o outro, deixaram de ver aqueles dois personagens e o que lhes chegava à vista era só e somente um bloco maciço de vapor que cada vez mais se adensava e do qual se despregavam pedaços de sua superfície, numa imagem que sugeria labaredas de um fogaréu. Depois, aos poucos, todos foram notando que aquele bloco de vapor intenso foi diminuindo, diminuindo, perdendo tamanho, até que, enfim, desapareceu por completo. Mas, no lugar onde estavam os dois homens enigmáticos, estes ali não mais se encontravam. Tinham desaparecido.

O desapontamento foi geral. Onde estariam aqueles dois homens? Que mágica teria sido aquela para fazer desaparecer, assim, num abrir e fechar de olhos, aqueles dois homens?

– Ninguém olhe assim para mim, que eu não tenho culpa nenhuma. Todos viram que eu estou aqui, só como curioso, que não fiz nada – defendeu-se Elvego, diante dos olhares de muitos botuenses que, inconformados com o desaparecimento que os desapontara, logo puseram seus olhos sobre Elvego, como a lhe querer atribuir alguma mágica, algum procedimento de mago, para enfim conseguir fazer desaparecer aqueles dois homens do céu. Afinal, Elvego já fizera do que fez, mexendo com eles, retirando-os da casa 345 da rua do Tambor.

Felizmente, nada de mais aconteceu contra Elvego e a verdade é que, instantes depois, todos se dispersaram. Foram para as suas casas.

 

Capítulo XIV

 

Era noite. Uma noite de muitas estrelas a brilharem no céu. Botu, àquela hora, estava já escura. Fazia poucos minutos que já haviam sido desligados os motores que produziam a eletricidade com a qual a cidade se iluminava até, no máximo, às vinte e uma horas. Muitos ainda se preparavam para subir à cidade alta, para se recolherem aos seus aposentos. De repente, surgiu, no centro da cidade velha, perto da praça central, uma voz rouca tão parecida com a de Atrias.

– Botuenses, botuenses!!!

Só se ouvia a voz nitidamente, porque a imagem mesma era compreensivelmente prejudicada pelo negrume que dominava a cidade, que estava às escuras. Aos poucos, as pessoas foram se reunindo em torno daquela pessoa, candeeiros ou velas à mão, o que contribuiu para ir dando um pouco de luminosidade àquele recanto de onde provinha a voz que todos já desconfiavam ser de Atrias. E era, na verdade. Foram se aproximando vagarosamente, até que o homem se viu cercado por uma multidão dentro de pouco tempo. Os jornalistas, claro, também se fizeram presentes. E por que não?

– Botuenses, botuenses, meus irmãos!!!

Só era o que dizia o pescador Atrias. Citava repetidamente a dita frase, mas, ao mesmo tempo, indicava uma direção e o fazia de modo insistente. Indicava a direção e nela seguia. E todos então se fizeram seus seguidores, caminhando atrás dele. Subiu a íngreme ladeira do Barril. Até que, enfim, estacionou de vez e, com voz firme e decidida, sentenciou:

– É aqui, botuenses, onde vocês hão de encontrá-lo. Ele está aí. Esta é a sua casa. Para ela retornou. Aqui ele a todos atenderá.

Na verdade, Atrias estacionara diante da casa 345 da rua do Tambor. Ali, como todos já sabiam, morava nada mais nada menos do que Nicolas e sua amada esposa, dona Ulyanna, tão conhecida por todos dali daquela cidade.

– Na minha casa mando eu. Concordo até certo ponto com o padre Messias. É santo o meu homem. Mas eu não vou permitir que o tirem de mim. Ele está dentro de casa, a casa é minha e aqui só entra quem eu quiser.

Disse Ulyanna tudo aquilo, mas o certo é que a sua casa estava tomada de gente. Gente da cidade e de fora também. Todos queriam ver de perto o pescador Nicolas. Este, após o novo sumiço ocorrido quando se envolvera no bloco de vapor, à margem do rio Opá, assumiu um ar diferente, como o de uma pessoa que readquirira ânimo corporal e espiritual, deixando de ser aquela coisa lerda de antes, parada num canto, sem ação. Agora, todavia, ele se mostrava bem dinâmico dentro de casa. Ia de um canto a outro. No quarto, na sala, no depósito onde ele mantinha guardadas as suas redes de pesca. Para onde ele ia, as pessoas que conseguiram entrar na casa, apertando-se umas às outras, o seguiam, também. E Nicolas, apesar do novo ânimo, tudo fazia sem, contudo, pronunciar uma só frase, uma só palavra. Gesticulava. Gesticulava apenas. E o fazia repetidamente. Insistentemente.

– Meu Deus, que novo código de comunicação será esse??!! – perguntava-se o padre Messias, em voz alta, o qual, sem sombra de dúvidas, não poderia estar em outro lugar, senão ali dentro da casa 345 da rua do Tambor – É preciso, meu Deus, que vós me deis inspiração para alcançar o verdadeiro sentido de cada gesto desse santo homem, o vosso filho recém-chegado entre nós. É preciso que eu interprete convenientemente os seus gestos, para transmitir o seu sentido ao povo dessa cidade, e até mesmo para essa gente que se diz importante, que se diz boa entendedora, como esses jornalistas que invadiram a minha Botu.

Padre Messias, como se vê, não perdia tempo mesmo. Não se sabe é como ele teve a notícia de que Nicolas estava em sua casa, para justificar a sua presença ali, àquela hora, já madrugada, aproveitando para fazer ver a todos os que lá estavam que Nicolas representava, realmente, alguém bastante poderoso.

 

Capítulo XV

 

Floripes e nada eram a mesma coisa. Uma nulidade. Não servia para nada. Antes de Elvego chegar em Botu, vivia o prefeito entregue aos caprichos do padre Messias. Agora que não tinha o apoio do padre, procurou abrigo junto a Elvego. Era Elvego sendo solicitado a toda hora e a todo instante e, por isso, ele já andava meio encabulado.

Aprendera Floripes, junto a Elvego, que aquilo tudo que se passava ali não era milagre dos céus. Algum fenômeno estranho estava acontecendo, isto sim era verdade. Mas não um milagre. Também Elvego facilmente fez a cabeça do nosso prefeito, mostrando-lhe que Nicolas não era novo Messias, coisa nenhuma. O que havia ali mesmo era apenas um Messias nessa estória, que era o padre, o inescrupuloso padre da paróquia de Santa Júlia. O prefeito Floripes, como já o dissemos, vivia preso aos caprichos do padre, pelo fato de ele lhe dever muitos favores políticos. Mas também, como se sabe, ele se desligara daquela influência. Tinha, agora, em seu favor, a experiência de Elvego, e com ela se acharia muitíssimo bem. Aliás, tudo vinha dando certo. Assim, inocentemente, ele pensava. Mas, coitado! Estava enganado ao pensar que Elvego pudesse servir de degrau para ele, como se fosse um inexperiente qualquer para se deixar explorar assim tão facilmente.

– O senhor procure se corrigir. É uma autoridade. Imponha-se. Saia de perto de mim. A toda hora e a todo instante é atrás de mim, perguntando-me como fazer as mínimas coisas! Não se envergonha disso?

Era verdadeiramente um coitado o Floripes. Fazia-se forte para não acreditar naquilo tudo que, segundo Elvego, era uma armação do padre Messias. Não tinha segurança no que pensava. Era um Maria-vai-com-as-outras, não sabendo direito onde colocar as próprias mãos quando estava falando com alguém. Só uma coisa ele perseguia ardorosamente. Essa coisa era o poder. Disso, a toda hora e a todo instante, ele dava demonstração de que era o seu verdadeiro prazer. Só lhe faltava competência para tanto. As três vezes em que se tornara prefeito de Botu fora em conseqüência do apoio ostensivo que lhe dera o padre Messias.

– Senhor Elvego, ajude-me, pelo amor de Deus!

– E agora essa, senhor Floripes! Não vê que está exagerando? Tanto já me incomodou e agora já está até colocando o nome de Deus no meio para que ele me leve a atendê-lo. Calma, homem!

– Como posso ter calma, senhor Elvego? Como posso ter calma? O meu Sival, se o senhor não está sabendo, anda, faz alguns dias, metido nessa estória inventada pelo padre Messias. Vive sumido dentro de um traje estranho, um roupão branco, repetindo uma ladainha que chega a doer os ouvidos. Segundo diz, está fazendo a vez de mensageiro da nova doutrina trazida pelo maluco Nicolas. Onde já se viu doutrina de quem não fala, de quem não diz uma palavra? Um verdadeiro maluco o Nicolas. Olhe ali, senhor Elvego. Ali vai ele passando. Sempre com aquele roupão e com aquele cajado um tanto curvo.

Realmente, Elvego logo percebeu que aquele personagem estranho, vestido de roupão branco, cabelos desalinhados era o Sival. Nem parecia aquele jovem alegre, estudioso, amante do jogo de xadrez e do seu passatempo predileto, que era o de se dedicar aos muitos pássaros que criava. E exatamente quanto aos passarinhos Floripes vinha agora aos pés de Elvego para dizer que, no dia anterior, num gesto repentino, Sival, após terminar o seu habitual lanche das três horas da tarde, saiu imediatamente para os alpendres em cujos tetos estavam penduradas nada menos que setenta gaiolas. Pois o rapaz, de forma rápida, seqüencialmente, foi abrindo, uma a uma, não restando ao menos uma que não tivesse ficado aberta por ele. Os pássaros, é claro, todos eles voaram e até aquela hora não se tinha notícia de nenhum deles. Nem o curió, pelo qual na feira de pássaros de Divinópolis já lhe haviam oferecido uma grande soma de filardis, ele o poupou, mesmo em se tratando de um pássaro de muita estimação.

– Seu Floripes, seu Floripes! – o vaqueiro do fazendeiro Zutza, de tanto correr, estava ofegante – Venho da fazenda agora mesmo e o senhor não imagina o que aconteceu.

– Diga logo, homem!

– Lá em cima daquele capim seco, daquele… o senhor sabe, pois lá, hoje de manhã, apareceram os passarinhos de seu filho Sival. Os bichinhos estavam mansinhos, tão mansinhos que deixavam que a gente pegasse. Peguei todos, senhor prefeito. Estão todos lá com o meu patrão o senhor Zutza, que diz que agora os pássaros são dele.

A reação de Floripes foi repentina:

– Ah, mas aquele desgraçado vai ter que devolver todos. Isso ele vai! Vou logo falar com o delegado Antunes.

E foi resoluto em direção à delegacia de polícia.

 

Capítulo XVI

 

Sival era conhecido na cidade de Botu não somente por ser o filho do prefeito Floripes. Como já dissemos, a sua fama na cidade era a de um perfeito criador de pássaros, amando e se dedicando, com prazer, àqueles bichinhos mantidos presos nas gaiolas, cada uma bem mais cuidada e elegante do que a outra. Era uma coisa de encher a vista. Não só pelas gaiolas, mas, sobretudo, pelos pássaros da melhor qualidade que nelas colocava. Eram, realmente, muito alegres, cantadores e encantadores. Cuidado especial era o que lhes não faltava. A alimentação adequada, o rapaz a comprava, todo fim de mês, na cidade de Divinópolis.

– É absurdo manter os bichinhos presos. Não tem sentido nenhum.

– Seu desmiolado, e o valor que todos eles tinham? Eram dinheiro vivo, seu idiota!!

– Já disse ao senhor e repito mil vezes. Nada mais do que eu tenho me interessa. Não quero os meus pássaros, não quero mais jogo de xadrez, não quero mais estudar no colégio de Divinópolis. Isso tudo para mim agora passou a ser secundário. Importante é seguir a doutrina do novo Messias, do novo Cristo. Aquele homem magro, de carne e osso, o Nicolas, não viu como ele deixa a todos felizes com o seu modo de ser? Que tranqüilidade! Que paz! Que quietude que ele transmite! Eu, agora, não quero nem mesmo a minha casa. Pode entregá-la a um outro rapaz qualquer. Não sou mais da sua casa. Vou, agora, seguir o Nicolas. Preciso difundir suas idéias. E estabelecer a nova crença, os fundamentos de uma nova religião, que una, de verdade, o homem a Deus. Estou de acordo com o padre Messias. Estou em sintonia com ele. Tudo, realmente, quanto aconteceu aqui em Botu foi uma coisa do céu.

– Oh, por favor, tirem esse danado desse desmiolado daqui de perto de mim, senão eu o mato!

– Mate, meu pai. Não importa. O que eu queria nesta vida já consegui. Lamento que o senhor não tenha olhos para ver e ouvidos para ouvir como eu os tenho. Mas, o que é que eu posso fazer? Nada. Não depende de mim. Depende só do senhor. Venha, homem, venha para o nosso lado. Para o lado do padre Messias. Ele está ligado nas coisas do céu, nas coisas de Deus, do Deus vivo, verdadeiro.

Elvego estava de lado e a tudo assistia, inquieto. Começavam a chegar vários repórteres, inclusive de televisão. Iriam, pois, flagrar aquela cena. Filho contra pai. O rapaz antes calmo, estudioso, com o passatempo predileto de criar pássaros, agora não queria mais estudar, não queria mais seus pássaros, e o xadrez, calculou Elvego, será que também não iria mais querer jogar mesmo? Que pena! Até que era um tabuleiro razoável.

– Senhor Floripes, tenha calma. Tudo voltará a ser como era antes. Eu lhe garanto. Essa situação não vai continuar assim por muito tempo. Eu lhe garanto mesmo. Não é possível que o mal triunfe sobre o bem. Aquele padre maluco está açulando essa coitada e ignara população. Está transformando as pessoas. Ele não vai poder continuar assim e ir longe nesse seu propósito absurdo, imbecil. Ainda bem que temos aqui em Botu a presença da imprensa. Isso em muito nos poderá ajudar. Tenha confiança no que eu estou lhe dizendo.

– Está certo, senhor Elvego. Afinal, só no senhor é que eu posso confiar. Pode acreditar que eu estou fazendo isso, me aproximando do senhor sem o menor interesse.

Elvego disfarçou através de um ligeiro sorriso.

– Compreendo, senhor prefeito.

 

Capítulo XVII

 

– Tira, tira, tira isso daí. Não quero mais ver isso aqui em casa de jeito nenhum. Aprendi, agora, com o padre Messias outra coisa bem diferente. Um Cristo realmente para valer. Ele chegou agora, em carne e osso, na pele do Nicolas. Eu acredito nisso. Ele é forte, me fez superar o pecado que comigo carregava. Não preciso nem imploro o perdão do meu ex-marido, o João Ventura. Vá para o diabo!

Cândida ordenava a sua empregada, a Filadelphia, que retirasse imediatamente da parede de sua sala o crucifixo. Ele estava ali fazia uma porção de anos. Ganhara-o de presente numa reunião do movimento mariano que ocorrera na igreja de Santa Júlia. Recebera-o das próprias mãos do padre Messias. Mas agora ele não mais estava servindo. O novo Cristo tinha acabado de chegar. Era um Cristo alegre, feliz. Não havia na sua imagem nenhum sinal de sofrimento. Era o Cristo dominador, senhor de tudo e de todos, que tudo podia. Descera da cruz. As mãos e os pés não tinham sinal algum de que tivessem sido traspassados por cravos. O Cristo novo não era escravo da cruz. Tudo isso lhe ensinara o padre Messias, e passou a acreditar piamente em tudo quanto o padre lhe dissera. Sim, ele lhe mostrava que o Cristo que descera da cruz estava ali em Botu, entre aquela gente pobre e miserável e que esse Cristo não era outra pessoa, senão Nicolas, aquele homem simples, pobre, humilde, que viveu a maior parte de sua vida a lançar a rede nas águas do lago Borrado, atrás do peixe, do melhor e mais gostoso dos peixes ali existentes e que eram apreciados pela gente fina da cidade grande, principalmente Divinópolis.

– Definitivamente, Fila, tira rapidinho esse negócio aí da minha parede. Eu quero aí uma outra figura. A figura magra, barbuda, mas sem nenhum sinal de sangue do meu conhecido e velho amigo Nicolas. Ele sim. Quem diria! Tanto que eu já conversei com ele! Lembro-me que, muitas vezes, ele parava no meio da calçada por onde caminhava só para ouvir aquilo tudo que eu ficava lhe dizendo. Eu que tenho uma língua comprida! Eu reconheço isso.

Filadelphia, atendendo à determinação de sua patroa, subiu numa cadeira, pegou o crucifixo e o foi, aos poucos, descendo, a fim de entregá-lo à velha Cândida.

– Dona Candidinha, pula belchinha!!! – gritou fortemente feito um apito de trem o guri, filho do albergueiro Shiresto.

Cândida, desesperada, avançou para a porta da frente onde estava o garoto, pretendendo pegá-lo pela gola da camisa. Nisso, porém, tropeçou na cadeira sobre a qual estava a empregada Filadelphia.

– Patroa, tenha cuidado!!

Tarde demais. Foi Filadelphia para um lado e o crucifixo para o outro. Aquela, em que pese a violência da queda, ficou intacta; este, todavia, como era feito de gesso, espatifou-se. Foram cacos de crucifixo para tudo quanto era lado.

– Também não valia mesmo mais nada! – concluiu Cândida convictamente.

 

Capítulo XVIII

 

A exibição era constante. Alteíades e seu carrinho; carro, realmente, muito pequeno. Zutza o vendera porque estava apertado, em face da tremenda seca que atacara a região botuense. O velho estava precisando de dinheiro para comprar ração para o gado que estava morrendo de fome.

Agora, estava Alteíades no que queria. Sentia-se dono da situação. O povo continuava a afluir à casa 345 da rua do Tambor, endereço onde morava o pescador Nicolas. Durante todo o transcorrer dos fatos misteriosos nunca deixou de correr um dinheirinho para o sabichão. Ultimamente, estava ele bem aliado ao padre Messias. Alteíades pareceu-lhe a pessoa certa. Era interessante, então, que ele concordasse com o padre Messias. Daí sua disposição em demonstrar que tudo quanto o Nicolas tivesse tocado, tudo quando a ele pertencera era coisa do céu, era coisa sagrada. Dever-se-ia tratar com todo o zelo, com todo o carinho.

Já tirara Alteíades um bom lucro. Conseguira, com os rendimentos tirados do povo pobre de Botu, o suficiente para adquirir o carrinho do Zutza. Estava feliz. Não saía de dentro do seu automóvel. Exibia-o constantemente a todos e a si próprio. Andava até se enxerindo para uma garotas, bastante cuidadoso, entretanto, para que Helcina, seu grande e secreto amor, não viesse a saber desse seu procedimento. Parecia um rapazola. Não tinha mesmo nenhum cabimento o que ele fazia. Estava exagerando. Mas tinha o apoio do padre. E ai de quem dissesse qualquer coisa contra ele. O povo o respeitava. O povo o queria, apesar de por ele estar sendo explorado. Era a pessoa encarregada de tratar, de cuidar de Nicolas. Adquirir sua roupa, sua alimentação (que ele não comia), tratar dele, asseá-lo.

O padre não dava murro em ponta de faca. Dava corda a Alteíades, mas também dele exigia, e muito. Ele, por sua vez, estava desempregado. Deixara o seu trabalho na loja de tecidos do senhor Sinárdio. Precisava lá daquele emprego! Vivia, agora, sempre de burra cheia. E com seu carrinho ali para servi-lo, para viver a liberdade que nunca tivera, não podia mesmo reclamar da vida que passou a levar.

Elvego, muito constrangido, a tudo assistia, mas nem ele, nem o prefeito Floripes nada podiam fazer.

 

Capítulo XIX

 

A igreja de Santa Júlia estava lotada de fiéis. Padre Messias acabara de ler o Evangelho e ia seguindo para o púlpito, para fazer a sua prática, quando a figura esquálida de Nicolas assomou à nave central. Caminhava muito vagarosamente. À proporção que avançava, olhava para um lado e para o outro, lançando um olhar profundo sobre todos os que se achavam sentados nos bancos. Padre Messias sorriu.

Nicolas retirou o seu olhar de cima das pessoas ali presentes. Foi levantando o pescoço um tanto comprido. Deu de cara, inicialmente, com o quadro da via sacra, o primeiro deles. Fixou-lhe o olhar. Para o espanto de todos, inclusive do padre Messias, o quadro começou a balançar na parede onde se achava pendurado. Balançou para um lado, balançou para o outro e logo, em poucos instantes, ele caiu no assoalho, naquele mosaico bem desenhado, de cores acentuadas, aos pés de uma velhinha que, de terço à mão, estava tremendo o corpo todo. O quadro, ao atingir o chão, quebrou-se inteiramente, e tudo o que representava imagem, despedaçou-se.

– Deus Todo-Poderoso, dai-me luz para compreender esse fenômeno. Eu não pensava que a coisa era tão séria assim… – orava em silêncio o padre Messias ao mesmo tempo em que se mantinha de olhos bem abertos, assistindo à destruição que Nicolas continuava promovendo.

Aproveitara-se o padre de uma situação. Sabia o quanto ignorante era a gente daquela cidade. Pregou sobre a importância de Nicolas. Mas estava, então, diante daquele procedimento do pescador, começando a se arrepender.

– Eu queria que Nicolas se manifestasse, que mostrasse sua figura doce e querida, que fizesse mostrar seu papel do novo Messias. Mas, agora, eu estou vendo que os fatos acontecem, e eu não me sinto com domínio sobre eles. E não pode ser assim. Eu é que tenho de ter as rédeas, para conduzir tudo direitinho – avaliou, preocupadíssimo, o padre Messias.

E, dirigindo-se para o recém-chegado:

– Bendito Nicolas, pare, pelo amor de Deus. Não destrua essa casa, que é sua!

Mas Nicolas continuava olhando até mesmo para cada recanto da igreja e, onde punha fixamente o olhar, o objeto se movia e ou caía e se espatifava ou mesmo no lugar onde se encontrava ali se desintegrava.

– Meu Deus, eu mereço tudo isso? Esse estrago agora dentro da Igreja! Eu que tanto lutei para conseguir tudo isso, arrancando dinheiro dessa gente pobre e miserável. Agora vem esse homem que elegi como santo para destruir tudo quando consegui construir! – lamentava-se, intimamente, o padre.

Não demorou muito tempo para a destruição total acontecer. Os quadros da via sacra, todos despedaçados. O crucifixo central, todo quebrado, todo retorcido. A imagem de Santa Júlia transformada em miríade de partículas de cerâmica. Seu pedestal, que era de madeira nobre, apresentava-se como se tivesse sido atingido pelo fogo. Dele provinha uma fumaça branca, como a de um pedaço de madeira em combustão.

É claro que os jornalistas, que estavam em Botu para registrar o fenômeno do OVNI que ali aparecera, tinham, agora, material farto para explorar. Até antes daquele fenômeno na igreja, viviam a zombar do que dizia o padre, do que profetizava Atrias. Viviam a zombar, enfim, de tudo aquilo que a ignorância daquela gente a fazia crédula. Tinham visto, isso é inegável, o pescador Nicolas no monte de capim seco, por vários dias. Tinham visto o fogo ali ardendo, sem, sequer, queimar Nicolas. Tinham-no visto, às margens do rio Opá, envolto num bloco de vapor. Mas agora estavam ali, dentro da igreja, testemunhando cada passo de Nicolas e a destruição correspondente a cada olhar que era fixado em determinado compartimento daquela casa de oração. Pena é que não tivessem levado o seu material de trabalho. Nunca tanto suas câmeras e máquinas fotográficas lhes fizeram tanta falta.

Na verdade, todos ficaram estupefatos. Nicolas nada dizia, e, no entanto, muito fazia. Nenhuma palavra. Nenhuma menção de comunicação com quem quer que fosse. Não olhou fixamente em ninguém. Nem no padre Messias, nem nos fiéis assentados nos bancos, nem no pessoal da imprensa. Seu olhar fixava-se nos diversos compartimentos da igreja. E em tudo aquilo que olhava resultava, como conseqüência, que o objeto olhado se espatifava.

Todos, de repente, tiveram suas atenções centralizadas em determinado ponto. O local onde se encontrava o ostensório. Nicolas para lá estava se destinando. Abriu a portinhola daquela custódia tão bem trabalhada em ouro da melhor qualidade. Tomou-a em sua mãos. E todos puderam testemunhar que toda a matéria em que se constituía aquele ostensório se ia derretendo, aos poucos, e o resultado do derretimento simplesmente se evaporava, ficando, enfim, daquele objeto, apenas o seu elemento central, a hóstia, que, por sua vez, foi se agigantando, a ponto de tomar a dimensão do corpo de Nicolas e esse, enfim, adentrando a massa que a constituía, passou a se confundir com a mesma, após o que, com os mesmos passos lentos, saiu da igreja, deixando perplexas todas as pessoas ali presentes.

 

Capítulo XX

 

– O que é que se passa aqui neste fim de mundo, meu caro Elvego? Você que tem a cabeça no lugar, explique, por favor, a todos nós, o que realmente está se passando. Que coisas estranhas são essas? Coisas inusitadas! Já estamos, realmente, propensos a não encarar tudo isso que nesta cidade acontece como sendo crendice desse povo, dessa gente ignara. Verdade é que ela vive mergulhada numa religiosidade em que se afoga todos os dias, num misticismo fora de série. Mas algo mais sério nos está levando a concluir que não se trata de pura crendice.

No albergue de Shiresto, o jornalista Epistrau, da Rede Nacional de Televisão, distante das câmeras, conversava com Elvego Doso de Riela. Este, por sua vez, mostrava-se, também, estarrecido, sem saber exatamente onde encontrar a explicação que lhe estava sendo solicitada.

– Esperemos que os conhecimentos teológicos do padreco possam servir para alguma coisa. Foi ele quem botou na cabeça do povo isso tudo que ocorre por aqui. Eu vi com os meus próprios olhos, disso eu não tenho dúvida, porque também estava na igreja – observou Elvego com certo ar de ironia; ironia que tinha como destino certo a pessoa do padre Messias.

Este, por sinal, após o acontecido na igreja de Santa Júlia, já se manifestara interessado em conversar com o pessoal da imprensa e, também, com o próprio Elvego. É que ele também não sabia a saída para aquilo tudo que acontecera dentro da igreja, pois pensava ele que ali ninguém mexia, e que só quem mandava era ele.

E Elvego continuou:

– Vão atrás do padreco! Aliás, não precisam ir atrás dele. Ele já está louco para falar com vocês. Já me procurou, inclusive. Não quero muita conversa com ele. Não adianta.

– Também não é assim, Elvego – observou Epistrau – Você, pessoa que todos nós temos como inteligente, sensata, não é compreensível que entregue os pontos assim tão rapidamente. Estamos conversando sério com você. Nosso trabalho é feito com muita responsabilidade. Chegamos aqui neste fim de mundo, porque fomos atraídos pelo fenômeno do OVNI. Você também!

– Eu, não!

– Como não?!

– Não sou de viver dizendo a todo o mundo o que vivo fazendo. Mas agora eu tenho que me defender. Pois saiba, meu caro Epistrau, que é costume meu conhecer, a cada ano, uma cidade, uma nova comunidade, para melhor conhecer a diferença entre o comportamento social de um e de outro grupo humano. Se não sabe, o que me move e me inquieta é a sensação de sempre estar descobrindo novos costumes, novos hábitos, novos valores. Ver de perto a forma de vida de um povo. Desta vez, escolhi Botu, esta cidade do fim do mundo. Quase não a achava no mapa. Ao chegar aqui, para minha surpresa, deparei-me com o fato de que os dois compadres, segundo me informaram, tinham morrido e haviam ressuscitado quatro horas depois. Daí é que veio o desdobramento dos fatos, com o aparecimento do disco voador, que chamou a atenção dos senhores, para fazerem essa longa viagem até aqui, no desconforto que todos vocês devem ter sentido no trajeto feito de trem.

– Está certo, então me desculpe. Mas, por favor, deixe de lado esse seu comportamento irônico. Sei que não é nada contra nós da imprensa. É claro que você se comporta assim com o endereço certo na pessoa do padreco Messias. Todos estamos conscientes disso.

– Ainda bem que vocês reconhecem isso.

– Então, vamos arregaçar as mangas?

– Você pretende começar por onde? Veja que nem o bispo Agamirhom, coitado, conseguiu qualquer coisa de positivo. O danado do Messias manteve-se firme diante dele no seu propósito de manter essa gente enganada.

– Mas agora, meu caro, já existe uma porta, uma saída. Não viu como o padre ficou estarrecido na igreja, com o aparecimento ali do Nicolas, que quase pôs por terra aquele templo?

– Realmente.

– Ele ficou de olhos esbugalhados, vendo a destruição dos quadros da via sacra. E quando o Nicolas penetrou a hóstia aumentada de tamanho?!

– Pare um pouco, eu nem gosto de me lembrar disso. Sei que esse foi um fato que mexeu profundamente com aquele símbolo deveras importante para o catolicismo. Não sou religioso, mas abomino as práticas que possam contrariar os valores de qualquer religião.

– Também concordo com você. Mas o que interessa agora é que concorde comigo quanto ao evidente estado de desespero do padre.

– Isso é indiscutível.

O diálogo entre ambos prosseguiu, até que chegaram à conclusão de que deveriam procurar o padre e fazer por onde ele pudesse sentir que estava perdido, para o fim de tê-lo como aliado à pretensão que tinham em mente, que era a de reverter a situação, mostrando àquela população ignara que Nicolas não era do céu, que Nicolas não tinha poder.

Bom, que já era um pouco tarde para tal providência, era. Mas não custava tentar.

 

Capítulo XXI

 

Alteíades, enquanto comerciário na loja de tecidos do senhor Sinárdio, era aquela pessoa acanhada, mal vestida. Trazia consigo, escondido, o desejo de um dia casar, de um dia desposar Helcina, filha mais velha do Zutza da Farinha. Sua situação pessoal, todavia, desanimava-o. Agora, porém, tinha mudado para melhor. Embora desempregado, juntou boa quantidade de filardi com a exploração das pessoas crédulas que visitavam a casa 345 da rua do Tambor. A quantidade de dinheiro já fora mais do que suficiente para comprar um carrinho, justamente aquele que pertencera ao seu pretendido sogro. Por isso, achou que tinha reunido o patrimônio suficiente para chegar na casa da fazenda e propor o casamento. Quanto a Helcina, esta, na verdade, vivia caidinha por Alteíades, fazia muito tempo. O que faltava era apenas a iniciativa da parte dele.

Pois o que parecia difícil não o foi. A verdade é que Alteíades conseguiu o sim do pai de Helcina, e logo marcaram data para o casamento.

Tudo ficou combinado para que a festa desse certo. Primeiro o casamento na igreja, celebrado pelo padre Messias; depois, a recepção, no Clube do Lira.

E assim aconteceu.

Na igreja, contudo, o casamento, em que pese celebrado, causou certo desapontamento aos convidados, testemunhas, noivos e familiares. A todos, enfim. É que o padre Messias fez a celebração com todo o ritual conhecido, mas não se ouvia palavra nenhuma por ele pronunciada. Por fim, fez o sinal da bênção, apertou a mão dos noivos, dos pais e saiu.

Após todos os presentes naturalmente se interrogarem, perquirindo sobre o que estaria se passando com o padre, resolveram, enfim, encarar como se o casamento tivesse mesmo acontecido e, após as indispensáveis e devidas assinaturas dos noivos e das testemunhas e da reportagem fotográfica, saíram os recém-casados com destino ao Clube do Lira. Ali deveria haver um festão. Era o que se esperava e assim aconteceu para a alegria de todos.

A recepção transcorria na maior tranqüilidade e normalidade. A orquestra do maestro Vivi não parava de tocar. Lá por volta de uma hora da madrugada, os convidados sentiram falta de cerveja. Pediram permissão aos familiares para irem comprar mais bebida. Àquela hora, certamente, era difícil encontrar, mas iam tentar.

Voltaram, contudo, de mãos abanando.

Como não mais havia bebida, a festa, por isso mesmo, ia chegando ao seu final, quando, no entanto, no centro do salão, assomou a figura esquálida de Nicolas. Aqueles mesmos gestos simples, tranqüilos. Lançou o olhar por sobre as mesas, repletas de garrafas vazias. Os convidados foram se espantando, de olhos aboticados, ao verem que, sobre as mesas, as garrafas, antes vazias, se iam tornando cheias, a ponto de ficarem derramando a espuma de cheiro ativo e gostoso daquela bebida que agora parecia e era, na verdade, de uma qualidade especial e de um sabor superior ao daquela que vinham bebendo.

Nicolas, então, sem dizer uma palavra, sem sequer apresentar um gesto, saiu do salão, sem ao menos permitir a indicação do lugar para onde estava se destinando.

Não é preciso dizer que a festa voltou a reinar. Foi a maior festa de casamento dos últimos tempos ali em Botu. Foi tão animada que saíram embriagados os convidados, as testemunhas, os noivos e os familiares. Festão!

No outro dia é que todos se deram conta do fenômeno estranho que cercara aquele casamento, tanto na igreja, como no Clube do Lira. Nem mesmo Cândida, no mesmo dia, teve condições de propalar os fatos estranhos a que assistira. Bebera demasiadamente, sendo levada para casa nos braços de sua empregada doméstica, a Filadelphia.

 

Capítulo XXII

 

– Não, não, de jeito nenhum! Será que vocês não percebem o que está acontecendo aqui nesta cidade? Vocês estão com uma venda nos olhos?

A conversa se passava na casa paroquial, ao lado da igreja de Santa Júlia. Da reunião, a portas fechadas, participavam o padre Messias, o prefeito Floripes, o jornalista Epistrau e, como não podia deixar de ser, Elvego Doso de Riela.

– Mas padre, só agora o senhor vê que essa estória não pode continuar, não pode ir para a frente?!

– Eu sei, meu filho(tratamento inesperado aquele), mas veja, eu também só agora senti que a coisa é poderosa, que não está no meu domínio, pois está fora de mim…

– Que é isso, padre, está entregando os pontos? – observou, criticamente, Elvego.

– Vejo que não estamos em situação favorável a perda de tempo, com diálogo desse tipo, meu caro Elvego – observou, professoralmente, o jornalista Epistrau.

– Será que vocês estavam na igreja, quando aconteceu a destruição, quase a total demolição da casa de Deus? Foi ali, meus senhores, que comecei a ficar apavorado. Apavoradíssimo. Trêmulo, não tenho vergonha de dizer. É que eu pensara uma coisa e estava vendo outra, mil ou milhões de vezes mais poderosa. Um homem simples que eu o conhecia desde muito tempo. Eu só, não. Todos aqui em Botu conhecem muito bem o Nicolas. Um homem pacato, ordeiro. Vivia de sua casa para a sua pescaria no lago Borrado. E agora, depois de tudo aquilo que aconteceu com ele, achou de aparecer dentro da casa de Deus, manifestando poderes maravilhosos! Um poder espantoso! Isso tudo me inquieta, meus irmãos. Tem algo errado nisso tudo. Algo perigoso, que complica as bases da fé e dos assentamentos religiosos que comandam nossas ações. Eu sei disso. Temo por isso. Mas, ao mesmo tempo, não posso deixar de reconhecer que ele tem o dom de um poder maravilhoso, de fazer e de acontecer, pois não é a qualquer um que é dado o poder de dominar as coisas materiais e destrui-las só com o direcionamento do olhar.

Alguém bateu insistentemente na porta.

– Quem é, Jovina? Não lhe disse que a reunião não era para ser interrompida?

– Mas, padre Messias, é dona Cândida. Insiste em falar com o senhor. Diz que é muito importante. Precisa falar urgentemente com o senhor, e também com o prefeito, e também com o senhor Elvego, e também com o jornalista, esse homem que está aí dentro de nome tão esquisito. Como é mesmo…Epistrau. Sim, foi esse o nome que ela me disse.

– Ora, Jovina, não vejo motivo para você ter batido na porta.

– Um momento, padre Messias – interveio Elvego – Acho que devemos ouvir dona Cândida. Não devemos descartar as suas preciosas informações. São muito importantes, isto é, não todas, mas algumas delas. Talvez, essa que ela agora está querendo transmitir possa ser realmente importante para o tema que estamos debatendo.

– É – concordou Floripes, que, até aquele momento, não tinha dito uma só palavra. Falou assim logo em seguida à manifestação de Elvego, porque sempre, ultimamente, vinha se escorando em tudo o que ele fazia ou orientava.

– É melhor você ficar calado, Floripes. Você tem contas a prestar comigo – retorquiu o padre Messias.

E voltando ao assunto que interessava:

– Deixe, Jovina, deixe essa mulher linguaruda e muito querida de todos nós entrar. Deix…

Mal terminou o padre de pronunciar a última palavra daquela ordem dirigida a sua secretária, Cândida, toda apressada, suada da cabeça aos pés, ofegante, adentrou o recinto.

– Venho trazer uma grande notícia.

– Que notícia? – todos perguntaram ao mesmo tempo.

– Vejam, senhores, que privilégio o meu. Meu não somente, mas de todos os que estavam no Clube do Lira, ontem. Pois ontem foi a festa de casamento de Alteíades. Casou-se com Helcina, filha do senhor Zutza. Uma moça velha, e que justamente por isso dá mais do que certo para o Alteíades, porque…

– Basta, minha filha, fale logo o que você tem a dizer e deixe de falar da vida alheia. Que mau costume! Não lhe bastaram as tantas reprimendas que já lhe passei? – disse em tom severo o padre Messias.

– Pois, padre, pois, meus senhores aqui presentes, eu bebi cerveja na noite de ontem. Muita cerveja.

– E é essa a coisa importante que você nos tem a dizer, sua desmiolada? – criticou Floripes.

– Cale-se você, que esta aqui é minha casa, e não permito que você fale aqui – ordenou o padre.

Elvego ficou sorrindo, vendo aquela arenga dos dois que eram e que representavam as maiores autoridades daquele lugar, e da forma como se comportavam só dava mesmo para rir. Teve que controlar o riso, sem deixar de escapar, todavia, um ligeiro sorriso no canto da boca.

– Fale, Cândida, de uma vez, que não temos tempo a perder.

– Meus senhores, pensei que todos vocês já soubessem. Aquele homem santo, o Nicolas, esteve ontem à noite no Clube do Lira, assim sem ninguém esperar. Chegou, simplesmente chegou. Não se sabe se veio por aqui ou por ali. Não se sabe se ele entrou por porta, por janela, ou se atravessou parede. O certo é que, de repente, sem que ninguém esperasse, ele estava ali. Aquela figura de sempre. É um santo mesmo! Pois sem que ninguém lhe dissesse uma palavra, pressentiu a decepção de todos ali presentes com a chegada de um irmão da noiva, que tinha saído da festa para comprar mais cervejas. Mal ele acabou de dizer que não encontrou as cervejas que tinha ido buscar, Nicolas foi lançando o seu olhar, aquele olhar penetrante por sobre as garrafas vazias existentes sobre as meses, e o que aconteceu? Imaginam? Imaginam, senhores? E olhem que eu já ouvi falar numa estória mais ou menos parecida com essa. Só que não era com cerveja. Mas que se passou numa festa de casamento, disso não tenho nenhuma dúvida. Creiam, então, meus senhores, que aquelas garrafas secas se tornaram, como num passe de mágica, cheias de cerveja, da melhor que pode existir, já no ponto para ser ingerida, saborosa que só ela.

– Essa mulher dessa vez exagerou. Estamos aqui numa reunião importante e ela pede para interromper, para dizer semelhante coisa – observou Epistrau.

– Mas, senhor Epis…Epis…, como é mesmo o seu nome?

– Epistrau, senhora, e, por favor, saia logo do recinto, que não temos tempo a perder.

– Calma, Epistrau, calma, que ontem eu a vi também na igreja, e acho que ela presenciou a forma inusitada como foi celebrado aquele casamento. Era uma coisa que não estava em mim. Uma coisa que me dominava. Sentia que estava celebrando aquele casamento, que fazia todos os gestos normais, todo o ritual, como mandam os cânones. Mas não me lembro de ter pronunciado uma só palavra. Disso eu tenho certeza. Acho que já é o domínio dele que está atuando sobre mim. Deus me perdoe – e colocou, em sinal de desespero, as duas mãos cobrindo-lhe a face – Não é verdade o que eu estou dizendo, minha filha?

– É claro, padre Messias. O senhor estava bastante estranho ontem. Onde já se viu celebrar casamento sem dizer uma palavra sequer. Daqui a pouco o senhor vai querer celebrar a missa sem dizer uma só palavra também. Sinceramente, não estou entendendo o que se passa com o senhor.

Todos os personagens ali presentes se entreolharam com ares interrogativos. A situação estava ficando cada vez mais problemática e, por isso, concordaram que já era mais do que preciso uma solução urgente para superar aquele quadro de dificuldades.

E a reunião terminou por ali mesmo.

 

Capítulo XXIII

 

A notícia só poderia mesmo advir de uma grande novidade para se ter espalhado tão depressa. É verdade, um homem simples conseguiu, num gesto que sugeria uma mágica, encher várias garrafas de cerveja secas sobre as mesas do Clube do Lira. E é certo que ele conseguiu isso sem o menor esforço, sem pronunciar uma palavra. Nem sequer apontou com o dedo. Só olhou, e isso foi o bastante para que aquela quantidade enorme de garrafas (eram mais de cem) ficasse completamente cheia do produto por que mais ansiavam as pessoas participantes de uma festa de casamento, já quase no seu final.

– Quem fez isso, realmente, meu senhor? – perguntava um repórter a um dos convidados que participara da festa.

– Não foi o nosso tão conhecido Nicolas, ora! Quem é que poderia fazer mais? Acha que o padre Messias poderia fazer? D,u – du, v,i – vi, d,o – do! Duvido!!!

– Por que o senhor bota logo o padre Messias nessa estória?

– Ora, foi ele quem começou dizendo que o homem era o Cristo, que era o poderoso, que a ele é que deveríamos reverenciar, que deixássemos de lado aquela coisa de sofrimento, pois agora tudo era diferente, porque Cristo viera em sua segunda vinda, em seu segundo advento sem deixar transparecer qualquer sinal de sofrimento. Logo, até a cruz, esse sinal que tantos carregam consigo, no sentido de que, simbolicamente, estão solidários com Cristo em seu sofrimento, isso tudo deve ser coisa do passado, assim explicou o padre Messias. Ele falou que o Cristo novo, o Cristo recém-chegado ele é supremo, ele pode tudo, ele não está ligado a sofrimento por menor que seja ele. O Cristo verdadeiro tem domínio sobre tudo e sobre todos. Disse o padre Messias, ainda, que o novo Cristo, na verdade, não precisava dizer, não precisava pronunciar palavras, quaisquer palavras. Estas já haviam sido ditas. Já foram esgotadas. Já estavam registradas no Livro Sagrado. Não havia necessidade de se adicionar qualquer uma outra a mais. A revelação lingüística, na sua forma de compreensão, já estava consumada, estando prestes a completar dois milênios de pregação. Logo, o novo Cristo era aquele que estava ali, todo poderoso, que fazia e que acontecia, evidentemente com inclinação para o bem, pois não poderia ser diferente.

Ligeira pausa, após a qual aquele homem fitou diretamente o jornalista, acrescentando as seguintes considerações:

– Agora que o padre está apavorado, isto sim é a pura verdade! Ele nos botou isso na cabeça, esse novo poder de Cristo, mas se está mostrando receoso. Teme perder o posto de representante de Deus. A ele não foi de forma alguma agradável aquela estória de ver a igreja praticamente sendo destruída. Aquilo em muito abalou o padre.

– Então é verdade que o padre andou pregando isso tudo mesmo?

– É verdade, sim!!! Agora, é que ele vem nos pedir ajuda!

– Ajuda de quê?

– Ora, ele está com receio de perder a igreja, só sendo!

– É, disso eu sei, mas também eu sei que ele está sentindo dificuldade de se desvencilhar do poder que o Nicolas está imprimindo sobre ele. Já soube do comportamento do padre no último casamento que celebrou?

– O da filha do fazendeiro Zutza da Farinha?

– Sim, isso mesmo. O padre, no seu ofício de pastor, andou fazendo tal como vive fazendo o Nicolas, ou seja, age, age, realiza, concretiza sem, ao menos, emitir uma só palavra.

– É, isto é uma demonstração de que o padre está de certa forma ligado a Nicolas, à influência dele. Agora, mesmo assim, se sente o quanto ele está atemorizado. Acho que ele se aproveitou de uma situação que nunca podia pensar que tomasse a dimensão que enfim está tendo.

– É isso aí. Diga-me uma coisa, o senhor é freqüentador da igreja?

– Sou, sim. Por quê?

– E então, de que lado o senhor está? Do padre, ou de Nicolas?

– Eu estou do lado de Nicolas. Claro que nele estou vendo que existe poder realmente. O padre Messias que se sente ameaçado, eu não posso fazer nada por ele. Ele que se agüente.

– Posso publicar essa conversa que tivemos aqui?

– Não faço a menor oposição. Fique à vontade. Agora, publique na íntegra, por favor.

– Fique tranqüilo.

 

Capítulo XXIV

 

– E aqui começa, meus irmãos e minhas irmãs, a nossa pregação nesta noite alegre e muito bonita. Não temos culpa se outros estão com dores de cabeça. Quem semeia ventos, colhe tempestade. Assim ele quis, assim ele o terá. Aliás, nós é que estamos certos. Lidamos com o Deus vivo. E isto é realmente o que basta. Vimos dizendo isso desde o século XVI. Bendito o dia do rompimento protagonizado pelo grande Martinho.

Com essa pregação, pastor Dinosco começava, naquela noite, a falar aos crentes de sua igreja, localizada no início da íngreme ladeira da Pedra. Era um templo pequeno, como já foi dito. Aliás, seria melhor dizer que aquilo era a improvisação de um templo. Também com os poucos adeptos que tinha, o pastor já fizera muito, com a construção daquela casa bastante simples, onde, diariamente, se reunia com os crentes, para cultos e orações. Falava, como sempre o fazia, com a convicção de que ele e os seus outros irmãos estavam salvos da ira de Deus, pois cultuavam o verdadeiro Deus. Tanto assim que não permitiam a adoração de imagens.

Naquela igrejória, o pastor Dinosco era voz respeitada. Sim, ali, naquela recinto, ele podia falar à vontade, extravasar seus pensamentos e posições religiosas, sem correr nenhum perigo. Ele e seus irmãos e irmãs de fé constituíam um percentual mínimo, insignificante, diante dos que professavam a fé católica. Mas o que importava era que existiam como vozes firmes que se implantaram no lugar onde antes, em termos de assuntos religiosos, somente havia espaço para a pregação feita na igreja do padre Messias. Podiam, pois, falar à vontade naquele modesto templo. Ninguém os molestaria ali. Nicolas não faria ali o que fizera na igreja de Santa Júlia. Julgavam-se imunes a uma ação destruidora daquela. Deus, o Deus vivo estava com eles.

Sem que ninguém esperasse, todavia, ali chegou Atrias, portando a já famosa vara, anunciando que Nicolas deveria aparecer naquele recinto dentro de poucos instantes. E, na verdade, mal ele terminou de falar, a figura esquálida de Nicolas invadiu a igreja. O pequeno templo evangélico encontrava-se repleto de crentes. Nicolas foi andando, passos lentos, pelo corredor central. Todos deixaram de lado o pastor que se encontrava pregando, bíblia nas mãos. Os passos de Nicolas agora aumentaram um pouco. Logo, então, ele atingiu o lugar onde se encontrava o pregador. Pegou a bíblia que se encontrava em mãos do pastor. Fez um gesto que ninguém entendeu. É que, tomando o volumoso livro com a mão esquerda, ergueu-o até a altura dos seus olhos, na distância do seu braço estendido e, com a mão direita, ficou a dar voltas em torno do mesmo. Em seguida, encostou-o em sua testa. Aos poucos, todos viram como o livro ia penetrando a cabeça de Nicolas até que, enfim, desapareceu por completo. Depois, ele encarou a todos, principalmente o pastor Dinosco, e este ficou todo trêmulo.

– Meu Deus, que é que se passa? Dai-me luz para alcançar o que está se passando aqui em vossa casa, Senhor!

Nicolas olhou para o pastor Dinosco, pôs a língua para fora, tocou-a com o dedo indicador da mão direita por diversas vezes e, em seguida, apontando o mesmo dedo para o pastor, fez o gesto negativo balançando demoradamente a referida mão com o dedo apontando para cima.

Fazendo isso, saiu imediatamente.

Os crentes não sabiam o que fazer: olhar para a figura de Nicolas que se distanciava a passos lentos, da igreja, ou para a gravura pintada no fundo do templo, que começou a queimar, primeiramente pelas bordas e, a pouco e pouco, sendo alcançada em seu ponto central, até ficar totalmente dominada pelas chamas, que a consumiram, sem, contudo, chamuscar qualquer outra parte da igreja.

Todos ficaram realmente estupefatos.

 

Capítulo XXV

 

O jornalista Epistrau, conforme conversa que tivera com Elvego, voltou a procurá-lo, insistindo em que lhe esclarecesse tudo aquilo que se passava naquela cidade. Na realidade, nunca tinha tido um caso assim tão estranho para fazer a cobertura jornalística. Hóspede também do albergueiro Shiresto, Epistrau, aproveitando um momento em que diante do albergue passava o enigmático Atrias, portando, como sempre, a sua vara, olhou para Elvego, que se encontrava deitado em sua espreguiçadeira, e o convocou:

– Elvego, acho que agora é um momento bom. É só atrair o homem aqui para o albergue e começarmos uma conversa com ele.

– Sobre?

– Ora, eu estou sabendo que você foi o único a colher alguma coisa do Atrias, pois eu estou informado de que você conseguiu manter um diálogo com ele.

– É verdade. Pensava que você já soubesse disso há algum tempo. Quem é que lhe passou esse assunto?

– Ora, quem?! Dona Cândida!

– Muito bem, vou fazer o que você está me pedindo.

E levantando-se da espreguiçadeira, saiu, atravessando todo o alpendre e, chegando à rua onde estava Atrias, estático, meditativo, olhando para o alto, disse:

– Atrias, sei que você se lembra de mim…

– Afaste-se!

– Mas, Atrias… aquela estória que você me contou…a visão que o seu compadre teve…lembra?

– Que visão? Está ficando leso? Eu não sei de visão, coisa nenhuma!

– Está vendo aí, Elvego? – observou Epistrau – Parece que você agora está em maus lençóis. Andou dizendo que colheu uma confissão do desmiolado Atrias e ele está deixando você assim…

– Assim como?

– Ora, é a sua palavra, homem! Precisamos acreditar em você, mas é preciso que haja alguma coisa que comprove. Se fica só a sua palavra, aí é difícil. Você falou do diálogo mantido com Atrias, no qual ele lhe relatou a visão tida pelo Nicolas. Mas ele não está confirmando nada! E agora? Podemos acreditar em você assim sem-que-nem-mais?

– Aí você está enganado, meu caro jornalista. Eu tenho a prova, sim. Está aqui comigo. Espere um instante.

E se dirigiu para dentro do albergue, para o seu quarto, dele retornando com um gravador grande que mais parecia uma maleta.

– Olhe aqui, está gravado. Pensa que eu não sou prevenido?

– E então, Atrias, vai dizer, agora, que não teve nenhum diálogo com Elvego? – perguntou Epistrau.

– Calma, que eu vou ligar o aparelho.

Logo apareceu, no ar, a conhecida voz um tanto rouca de Atrias. Na fita, realmente, estava gravada a conversa que Elvego mantivera com ele. Epistrau ouviu bem nitidamente a narrativa ali contida. Ele pôde, então, ficar inteirado de cada passo daquela estória estranha, esquisita. Nicolas e Atrias, os dois compadres, na beira do rio Opá, tendo uma visão… O peixe enorme, feio… Nicolas aéreo, olhando para cima, como se estivesse sonhando… O grito de Atrias, chamando-lhe a atenção… O susto de Nicolas, quando se deparou com o peixe enorme, seu único olho bem no meio da testa e que tanto brilhava que parecia um brilhante… Um monstro horripilante, um animal de brilho extravagante… Escamas que reluziam como se fossem pedras preciosas… O compadre Nicolas estático… O desejo de Atrias de ir em direção a Nicolas e a sensação de que se encontrava preso ao chão… O grito de Atrias pedindo que o compadre Nicolas saísse dali e viesse para perto dele… A espera de mais de quatro horas… O compadre Nicolas de olhos fixos no estranho animal… Tudo isso Epistrau ouvia numa concentração que o deixava inteiramente alheio a tudo aquilo que estava em seu derredor.

– Coisa mais esquisita! – considerou Epistrau, após escutar a gravação.

E acrescentou:

– E não é que é verdadeira mesma a estória que tanto se tem ouvido! Elvego ter conversado com Atrias!

– Está vendo? E depois, você não estava confiando em mim…

– Eh…, perdoe-me, caro Elvego.

– Está bem, por esta vez eu desculpo.

E deixaram que Atrias saísse dali.

Mas Epistrau ficou insistindo a respeito daquela narrativa tão estranha. Com certeza, seria uma bomba a sua publicação. Coisa estranha!

– Elvego me perdoe a sinceridade: não devia ter demorado tanto para revelar a prova tão robusta que tinha em seu poder.

 

Capítulo XXVI

 

Seis dias depois, chegavam em Botu os jornais trazendo a revelação feita por Elvego. Os jornalistas, por várias vezes, ouviram referências ao diálogo mantido entre Elvego e Atrias, mas não chegaram a acreditar no que escutavam. Acharam que era conversa fiada daquela gente. E nunca tinham tido oportunidade de uma conversa séria com Elvego sobre isso. A verdade é que, quando os jornalistas vieram dar importância a Elvego, já fazia muito tempo da permanência deles na cidade de Botu. Aquela fita magnética que estava em poder dele foi uma verdadeira bomba. Os jornalistas, que tinham ido a Botu para cobrir o fato relativo ao aparecimento de um OVNI, estavam, agora, a braços com o desdobramento de outros fatos que, certamente, diziam respeito àquela aparição que os levara até aqueles confins.

Nunca a população de Botu se ligara em jornais. Na cidade, onde ia trem uma vez por semana, os únicos exemplares que chegavam eram para a prefeitura e para a casa paroquial. Ninguém mais se determinava em ler jornal, a não ser o padre e o prefeito. É certo que, ali em Botu, chegavam as notícias através do rádio e da televisão. Mas os noticiários não eram, na verdade, motivo de atenção dos botuenses. Nem mesmo aqueles mais recentes, veiculados quer pela televisão, quer pelo rádio.

Agora, porém, foi a vez dos jornais. Botu ficou invadida por eles. Os jornalistas fizeram questão de pedir o maior número possível de jornais para Botu. É que a edição do dia vinte e seis do mês de novembro tinha saído repleta de notícias sobre Botu. Uma cobertura jornalística perfeita sobre a cidade e sua gente. Fotos variadas de diversos lugares e de muitos personagens que nela se destacavam. Até Cândida foi alvo de reportagem. Não houve jornal que não trouxesse uma foto dela.

O assunto principal, evidentemente, era o disco voador. Afinal, os jornalistas tinham se deslocado para aquele fim de mundo para fazerem a cobertura do aparecimento do OVNI. Mas, ao ali chegarem, depararam-se com a estória da morte e da ressurreição de dois homens, um fato por demais enigmático. Levantaram, também, as causas relativas à tragédia acontecida, em pleno festejo carnavalesco. Cinqüenta e cinco botuenses mortos, do dia para a noite. Trataram sobre a revelação de Nicolas, o poder que ele aparentava ter. O recuo do padre Messias, não mais aceitando aquilo que o pescador Nicolas para ele representava inicialmente. Enfim, no meio do cipoal de notícia estampada nos jornais, como fato concreto, como fato palpável, como prova irrefutável, trazia, também, a entrevista que Elvego mantivera com Atrias. Entrevista em que ele relatara a visão que ele e o compadre Nicolas tiveram às margens do rio Opá. Desde o dia da chegada dos jornalistas na cidade de Botu até aquela data, eles não tinham tido, na verdade, um documento tão poderoso quanto aquele. Tratava-se, realmente, de algo concreto. Sim, naquela fita estava gravada a conversa que Elvego mantivera com Atrias. Igualzinha, da forma como ele havia retratado aos jornalistas. A voz era inconfundível. A voz rouca de Atrias.

Movimento igual naquela cidade nunca se tinha visto até então. De trem, chegaram nada menos que trezentos exemplares de jornais. Jornais os mais diversos; dos que mais amplamente circulavam aos que menor circulação tinham. Ficaram os exemplares de mão em mão. Quem jamais em sua vida viu em suas mãos um jornal, estava lá, agarrado com o bicho. Sim, porque aquilo era coisa estranha. Sabia-se da existência, mas nunca se tinha despertado o interesse em ter um jornal em mãos para ler ou, quando não fosse para ler, para, ao menos, ver uma fotografia. E, por certo, a grande maioria da massa habitante daquela cidade não estava de posse de um exemplar de jornal para ler nada ali escrito. O que lhe interessava era, isso sim, olhar as fotografias, comentá-las. Até Alteíades e seu já famoso carrinho saíram no Jornal A FOLHA, o matutino mais conceituado na Capital.

– Acho que, com esse rebuliço todo, Nicolas agora vai dizer alguma coisa. Não é possível que ele continue no seu mutismo de sempre – avaliou, satisfeito, Epistrau.

 

Capítulo XXVII

 

Elvego, por breves instantes, ficou vermelho de raiva, ainda com a edição da FOLHA DA TARDE em suas mãos.

– Miseráveis!

Logo, porém, procurou se corrigir, pois não era do seu feitio reações assim tão cheias de indignação. Para ele isso só fazia mais complicar as situações que por si já eram difíceis. Ao invés de se deixar irritar, dominou-se e, serenamente, se pôs a pensar no que deveria fazer, diante daquela injustiça que lhe fora feita.

O jornal estampava, na primeira página, o conteúdo da gravação da conversa que ele tivera com Atrias. Quanto ao seu inteiro teor, tudo bem, pois Elvego não tinha como esconder nada, nenhuma passagem daquilo que resultou na conversa que tivera com Atrias logo que chegara em Botu. O que lhe doeu e o irritou foi a afirmação do jornalista de que ele estava sonegando informação aos órgãos de imprensa, porque ele não abriu o jogo, não dissera, não revelara tudo quanto tinha conhecimento. Depois, somente depois é que revelou que tinha consigo uma fita gravada com aquela conversa. E, realmente, a conversa, melhor dizendo, praticamente o monólogo de Atrias foi como que uma bomba para a imprensa. Até então eles, que haviam sido atraídos para Botu pelas notícias acerca do objeto voador não identificado que por ali aparecera, não tinham nada de concreto sobre o fato misterioso que acontecera com os dois compadres, pois a única revelação feita, a respeito, por um dos personagens envolvidos, ficou em poder de Elvego. E este só o revelou quando provocado, como já dissemos. Pois bem, só poderia ser prato cheio para a imprensa, pois, sem dúvida, o documento logo fez com que ela o associasse ao acontecimento subseqüente, que foi a aparição do estranho objeto. E depois, ainda fazendo as devidas ligações, o fato de Nicolas haver desaparecido e, por fim, a sua demonstração de poder, um poder que estava deixando a todos bastante preocupados.

 

Capítulo XXVIII

 

O cego Parnimas não se continha. Havia falado com o padre Messias diversas vezes. Achava-se tomado de pecado, desde quando, apesar de sua condição de cego, também participou ativamente nos preparativos para o maior carnaval que Botu havia tido, o carnaval do desastre, do infortúnio, o carnaval que os botuenses jamais esquecerão de verdade em suas vidas. Além disso, também tinha confessado, quando do aparecimento do estranho objeto sobrevoando a cidade, o pecado que cometera em sua juventude. Assim o fez, como grande parte dos seus conterrâneos o fizera, porque sentiu a morte aproximar-se. Viu-se invadido de arrependimento, e confessou.

– Padre Messias, o senhor me perdoe. Eu tanto já me confessei com vossa reverendíssima, tanto me confessei, mas agora, tenha paciência. Eu sei que, no começo, o senhor estava do lado dele e também sei que, agora, o senhor está com um pé atrás. Está vendo que vem perdendo terreno para ele. Antes o senhor era o manda-chuva, não é verdade? Fazia e acontecia. Ditava tudo. Agora, não. O senhor se deparou com um poder maior, não é verdade, padre Messias?

– Vá para o inferno, cego desgraçado!

– Pois não vou, não, seu padre. Eu vou mas é procurar Nicolas, isto sim. Ele que tanto poder já demonstrou, poderá me restituir a visão.

– Vá pensando assim, coisinha ruim. Está pensando que ele tem tanto poder assim?! Quem demonstrou isso foi o Cristo. Mas aquilo não é Cristo, coisa nenhuma.

– Está bem. Espere, para ver. Não é o senhor quem está precisando. Sou eu. Tanto já lhe pedi e implorei, para me ajudar. Mas o senhor é fraco.

– Ah, cego miserável! – disse o padre Messias, fazendo menção de agarrá-lo pelo pescoço, sendo, entretanto, contido pela sua secretária.

– Calma, padre.

– Bote esse miserável para fora daqui. Agora!

 

Capítulo XXIX

 

Numa tarde, quando o prefeito se encontrava na prefeitura, ali chegou, inesperadamente, Nicolas. Estava acompanhado de Atrias. Queria falar com Floripes. Atrias, pelo menos, assim esboçou uma frase, escapando, através de sua fala rouca, o propósito que os havia levado até ali. Nicolas, por sua vez, não falava nada, não deixava escapar um ai, um sim ou um não. Continuava como sempre nos últimos dias. Só agir era o seu propósito.

– Querem falar com o senhor Floripes? – adiantou-se, querendo ser agradável, o secretário do prefeito – Podem entrar. É por aqui. Por favor.

Nicolas seguia na frente e Atrias, atrás. A porta do gabinete de Floripes foi aberta sem que fosse feito o costumeiro anúncio.

– Que é isso, Florisval? Que espécie de secretário é você que não toma conta direito da entrada das pessoas em meu gabinete? Então, chega-se aqui e se entra sem pedir permissão? Você não está vendo que…

Não terminou a frase que ia dizendo, porque, naquele instante, postou-se a sua frente a figura esquálida de Nicolas, muito conhecida dele, pois o mesmo sempre fora pessoa ligada ao grupo político do prefeito, sem, contudo, nunca haver feito política. Apenas votava no prefeito, e nada mais.

– Você, agora, vai ter que dar contas da sua conduta, Floripes – disse Atrias intrometendo-se entre o prefeito e Nicolas.

– De que é que você está falando, Atrias?

– De sua conduta criminosa, a de querer à fina força fazer nesta pobre cidade um carnaval, resultando em tanta gente morta, tantos defuntos de uma vez só. Foi muito trágico, Floripes. E você é o culpado maior. O grande culpado. O único culpado. E todos sabemos a causa que levou você a querer e, enfim, conseguir realizar aquele carnaval nanico. Digo nanico, porque não chegou à terça-feira gorda. Começou a morrer gente logo no domingo. Quem é que pode esquecer aquela tragédia? Foi um castigo, Floripes. Todos sabemos que o que você queria era realizar a festa, deixar o povo animado, como a dar pão e circo à gente faminta e pobre desta cidade, esperando o troco no futuro próximo, quando das eleições. Homem cheio de pecado você! Agora, Nicolas está aqui. Veio cobrar de você, como você bem o merece. Não pense que vai acontecer nada aqui na prefeitura, não. É claro que tudo que está aqui não pertence a você. Pertence ao povo. Pertence a todos nós. Logo, a cobrança não haverá de ser aqui. Mas aqui apenas vimos para noticiar o quanto você será castigado.

– Atrias, eu conheço você e o Nicolas também! De que você está falando? Está meio desmiolado, homem?

– Estou! Estamos, melhor dizendo! Mas espere o que virá sobre você, de nossa parte. Basta que você chegue em casa.

O prefeito Floripes ficou preocupado. O que deveria acontecer com ele como estava sendo prometido por aqueles dois homens? Pelos dois, não. Por um só, justamente o Atrias, já que Nicolas não dava uma palavra. Mas Floripes sabia que o poder, se é que aquilo era realmente poder, advinha de Nicolas e, não, de Atrias. E, embora tomado de preocupação, mesmo assim, deu uma gargalhada, seguida de um gesto de que precisava ficar só para continuar trabalhando.

Sem reclamação, Atrias e Nicolas saíram do gabinete do prefeito. Atrias, normalmente. Nicolas, todavia, saiu pelo caminho oposto, justamente o local onde estava a parede por trás da cadeira do prefeito. E, quando Floripes deu por si, viu que tudo que havia sobre o seu corpo tinha desaparecido. Foram-se a camisa, a calça, a cueca, as meias, os sapatos, relógio, carteira de cédulas. Floripes ficou do mesmo modo como chegou ao mundo.

– Essa agora!

Correu para trancar a porta, antes que o secretário Florisval adentrasse o recinto.

 

Capítulo XXX

 

– Que danado é que está se passando aqui em casa, Sival?!

O jovem filho do prefeito Floripes, metido dentro de um camisão branco, cabelos bem compridos, estava na sala da casa do seu pai, cofre aberto (ele descobriu o segredo), casa cheia de gente, gente pobrezinha, formando fila, recebendo, cada pessoa, determinada quantia de filardi, dinheiro de Floripes. O prefeito sovina. O prefeito miserável que nada dava aos pobres. Nunca deu nada. Só pensava nele mesmo. Aquela estória de parecer bonzinho para o filho, dizendo que não precisava tirar dinheiro escondido, era só balela. Pura balela. O filho não tinha direito a mesada. Era só o dinheiro do transporte para o colégio Dom Carlos Costa, em Divinópolis e para a sua estada naquela cidade. Queria que o rapaz fosse gente. Ah, isso ele queria. E o jovem até que era inteligente. Gostava das coisas boas. Tinha aquela mania pelo jogo de xadrez, o que era muito bom. A outra mania era que desgostava um pouco o prefeito. Sovina como era, ainda assim permitia que o jovem criasse tantos pássaros. Mas isso admitia, porque também gostava de ouvir o belo canto das aves. Aliás, em sua juventude fora também dado à criação de vários passarinhos, os mais afamados daquela região, a Sorobina, lugar onde ele nasceu e se criou.

Mas voltando dessa digressão que, no momento, não interessa ao ponto principal sobre o qual vínhamos discorrendo, o certo é que aquela figura jovem, alto, magro, empertigado, cabelos encaracolados e compridos (nisso ele puxara à mãe, dona Euflozina) foi flagrada pelo pai no momento em que trazia em suas mãos um sem-número de cédulas de filardi que acabara de retirar do cofre e as ia distribuindo àquela gente ávida por se assenhorear da quantia que lhe estava sendo estendida.

– Que é que se passa aqui em minha casa? Quem trouxe essa cambada de miseráveis para dentro do meu lar? Foi você, seu desmiolado! Tanto dinheiro perdi com você, para lhe dar instrução! À-toa. De nada vai me valer. Que bela retribuição estou tendo! Está, agora, pensando que pode fazer tudo quanto aqueles dois loucos, o Atrias e o Nicolas vêm fazendo? Eu amarro você. Eu isolo você. Eu mando você para longe. Eu mando soltá-lo em pleno mar. Parece que não é o meu filho!

– Tenha calma, meu pai. Não precisa fazer nada disso. Eu já vou saindo. Estava apenas aliviando um pouco o seu cofre. O coitado precisava desse alívio. Estava abarrotado. Ele, certamente, está bastante agradecido – sorriu, melhor dizendo, deu uma gargalhada, e saiu sendo acompanhado pelos que estavam invadindo a casa.

Floripes, desesperado, pôs as mãos no rosto, lamentando a situação em que se encontrava. Trazia consigo o peso na consciência por ter tido a iniciativa de realizar o maior carnaval que Botu já tivera e que redundou numa tragédia. Veio a estória da visão de Nicolas, a seca maldita que quase matou a todos de fome e de sede. O aparecimento daquele objeto estranho. A cidade invadida por aqueles homens da Capital que viviam no seu encalço, sempre lhe perguntando um monte de coisas. Sival, soltando os seus passarinhos, tanto dinheiro no mato. Ainda bem que o Zutza foi consciencioso e devolveu alguns, os melhores. Depois, Sival fundiu ainda mais a cuca. Passou a se vestir daquele modo, passou a seguir os dois desmiolados. Agora, por fim, veio o pior. Atacar a propriedade do próprio pai. Destruir a sua própria herança. Maldição. Isso não era possível continuar. Haveria de ter um jeito, uma saída para tamanha dificuldade.

– É preciso que as autoridades constituídas desse lugar se reúnam para que, juntas, tenham a força capaz de solucionar esse grave problema.

Refletiu um pouco e, enfim, como que acordando de um sono:

– Bem que aquele miserável do Atrias me dissera ainda há pouco lá na prefeitura. Bem que ele disse que o mal não cairia sobre a prefeitura e, sim, sobre o prefeito. E que mal maior poderia ser esse, senão o esvaziamento do coitado do meu cofre? Como ele deve ter se aliviado! Ele, sim, porque eu, não! Oh, meu Deus, ajudai-me!

 

Capítulo XXXI

 

Padre Messias estava prestes a receber a suspensão de suas ordens sacerdotais. O processo corria célere, quando, enfim, apareceu o fato favorável a sua defesa. A Diocese ficara sabendo que ele, agora, já mudara de postura. Já não mais pregava que Nicolas fosse um novo Cristo. Soubera a Diocese como ele reagira àquela intervenção danosa de Nicolas na igreja. Soubera, também, que desistira de suas ações, agindo, só agindo, só influenciando as pessoas com os seus gestos, sem sequer pronunciar uma palavra, como fazia o Nicolas. Conduta que influenciou a muitos. A Sival, como já se sabe. E a tantos outros. Tudo resultando, na verdade, na subversão da ordem imperante. O prefeito sofreu do que sofrera. Tivera o cofre aliviado. O pastor Dinosco ficou com a mão na cabeça, transtornado, vendo destruída uma parte da igreja tão admirada pelos crentes, que era a grande gravura exibindo o rio de águas plácidas, em meio a exuberante vegetação. Padre Messias, então, mormente em face da destruição ocorrida em sua igreja, já havia adotado um posicionamento diferente. Corria o risco de ter a sua igreja esvaziada. E, é claro, no primeiro domingo após o seu público posicionamento, a freqüência diminuiu em torno de cinqüenta por cento. Mas o padre Messias se manteve firme. Não estava certo, não era correto aquilo tudo que se passava em Botu. Cristo era, foi e sempre será aquele que está pregado na cruz. Não haverá de ter um outro. Enganou-se. Não está vendo que coisa mais sem cabimento! Um homem como Nicolas, um homem inculto, um homem sem letras poder ser considerado divino! E, ainda mais, conceber-se um Cristo que não diz uma palavra sequer! Está certo que o padre assistiu àquela demonstração de poder, dentro da igreja. É certo que ele também soube do que acontecera na igreja do pastor Dinosco. É certo que ele sabia da influência que Nicolas estava exercendo sobre muitas pessoas da cidade. O povo estava cego. Estava seguindo tudo, rigorosamente tudo mesmo que ele insinuou a respeito de Nicolas. Ele, então, ficou como sendo o centro de tudo para o povo. A casa 345 da rua do Tambor continuava sendo alvo de romaria. E Nicolas não deixava de viver por lá. Quando não saía para fazer suas demonstrações de poder, permanecia na sala de sua casa, sentado na cadeira de sempre em que se acostumara a relaxar o seu esquálido corpo queimado pelo sol de Botu; aquele corpo que tantas vezes se lançou lago Borrado a dentro, para efetuar a pesca necessária à subsistência daquele povo.

– Padre Messias, carta para o senhor – apressava-se o sacristão Ananias a dizer que havia chegado, naquele momento, no trem, uma carta para o padre Messias.

Era a missiva da parte do bispo Agamirhom, informando, com satisfação, que soubera do novo posicionamento do padre Messias e que, por isso, o processo de suspensão das ordens sacerdotais tinha sido convertido em pena mais branda.

Padre Messias sorriu, bastante satisfeito.

 

Capítulo XXXII

 

Foi preciso muito esforço da parte do padre Messias. Nunca em sua via sacerdotal havia se comportado daquela maneira. Onde já se viu um padre sair atrás de reconquistar fiéis para a sua igreja?! Pois foi o que aconteceu com ele. Aproximou-se da residência de Cândida. Ela sempre lhe falava do crucifixo que recebera de presente na igreja, das próprias mãos do padre. Esperava o vigário avistar logo o crucifixo pendurado na parede daquela casa modesta, onde morava a verdureira mais famosa do mundo. É que, em canto algum do mundo, alguém que vende verduras tinha a importância que desfrutava aquela mulher naquela cidadezinha do fim do mundo, distante dos grandes centros, mas, na verdade, na crista da onda dos noticiários de tevê e dos melhores jornais da Capital. E agora, sendo procurada pela maior autoridade espiritual da cidade, em sua casa!

– Cândida, Cândida, onde está você, mulher? Será que está falando sozinha dentro de casa? Será que você é direto como cantiga de grilo?

Padre Messias não esperava a surpresa que teria pela frente.

– Agarre ele, Fila!

– Mas patroa…

– Agarre, menina!

– Cândida, sou eu, padre Messias…

– Eu sei, é você mesmo. Que é que quer aqui na minha casa abençoada?

– Mas não é possível, Cândida! Tratando-me assim dessa maneira? Eu mereço isso? Aquele desmiolado botou tudo isso na sua cabeça?

Mal terminou de pronunciar a última frase, e sentiu o cabo da vassoura, fortemente, atingir a sua larga e suada testa.

– Ai, ai, ai, Cândida! Calma! Não precisa fazer isso.

– Não pense que vem mudar a minha maneira de pensar.

– Está certo. Não vamos por esse caminho. Quero apenas conversar com você sobre outros assuntos.

– Pois então cuidado para não desviar do assunto. Não quero que diga um ai contra o meu santo Nicolas. Promete?

Padre Messias viu que a situação não era fácil. A mulher estava, realmente, tomada, possuída pelo que lhe dissera Atrias e pelo que Nicolas vivia realizando. E tudo por culpa dele também.

– E a feira, minha filha, como vai o movimento? Tem feito muita encomenda em Divinópolis? As coisas estão realmente ficando difíceis nestes dias. O trem tem atrasado. Eu estou sabendo. Sei das dificuldades por que está passando. Sei que o seu banco de verduras sempre foi o mais freqüentado pelos fregueses. E agora essa estória de o trem falhar. Ter semana que vem e outra, não. Continua, mesmo assim, vendendo todo tipo de verdura?

– É, quando tem, faz-se o que se pode.

– Qualquer dia apareço por lá para comprar algumas verduras.

– Mas leve dinheiro. Sabidão comigo não tem vez.

– Ora, Cândida, que posição mais atrevida!

– É assim mesmo, padre. E, por falar nisso, o senhor ainda é padre?

– Mas, Cândida, você não disse que não era para falarmos nesse assunto?

– Realmente…

– Mas, já que você tocou nele, vamos, minha filha, levá-lo adiante. Compreenda-me. Eu preciso de você. Preciso de verdade. Você é o leva-e-traz de notícias nessa nossa pequena cidade.

– Ora essa!

– É isso mesmo. Tenho sentido muito a sua falta na igreja.

– Não me peça isso, padre.

– Volte, minha filha, volte, que precisamos de você lá. Você nos faz muita falta.

– Faço nada!

– Faz.

E, já se deixando vencer:

– Padre, realmente, eu estou sentindo saudade daqueles momentos, principalmente dos momentos da confissão…

– Eu não disse que deveria vir aqui falar com você?! Sabia que essa sua alma estava precisando de uma orientação. De uma palavra. Palavra, isto sim, pois ultimamente você não vem tendo isso.

– É a pura verdade, padre.

– Minha filha, eu estranhei muito quando cheguei aqui. Esperava encontrar na parede o crucifixo de que você tanto falava. Aquele que você ganhou de presente lá na matriz.

– Mas, padre…

– Que foi que você fez dele?

– Espatifou-se, padre.

– Verdade?

– Pura verdade. Pergunte a Fila.

Filadelphia ia saindo, conduzindo a vassoura com que a patroa batera no padre.

– Menina, venha cá. É verdade o que diz a sua patroa?

– É sim, seu padre. É verdade. E o pior é que quando eu fui catar os cacos no chão não encontrei nenhum.

– Cruz-credo!!! – benzeu-se o sacerdote.

 

Capítulo XXXIII

 

Padre, prefeito, Elvego, todos estavam de mãos dadas. Queriam resolver o problema. Aquele absurdo não poderia continuar. Era um péssimo exemplo que aquela pequena comunidade, nos confins do mundo, estava dando. Aquilo que Nicolas pregava não estava certo. Que pregava, não, pois ele não pregava coisa nenhuma! Ele simplesmente chegava, olhava, e fazia. E fazia bem feito, completo, atingindo somente aquilo que efetivamente queria, em que pese o seu olhar estar cercado de outros objetos.

– E Epistrau, não vem?

– Ele ficou de vir, senhor Floripes. Saí do albergue, mas antes passei no quarto dele, dizendo da reunião. Disse-lhe que começaria às oito horas.

– Mas já são nove horas! – adiantou o padre Messias.

Estavam os três reunidos na prefeitura, no gabinete do prefeito Floripes. As principais autoridades do lugar que estava virando um caos. Um louco fazendo e acontecendo, e o povo acreditando, seguindo tudo que ele fazia. E aplaudia, e acreditava na força poderosa de Nicolas. Era um Deus. Era poderoso. A ordem estava, realmente, ameaçada. Os princípios básicos da boa convivência estavam indo de água abaixo. Abolira-se o respeito às autoridades. A palavra do prefeito de nada mais valia. A palavra do padre Messias não tinha a mínima importância. Quanto a Elvego, o intrometido Elvego, nele ninguém acreditava. De sua parte, precavido, cuidava sempre de bem refletir antes de dizer qualquer coisa. Corria o risco de ser linchado.

– Ora, e Epistrau, por que é que ele não chega?

Já eram onze horas da manhã. Os três estavam desapontados. Decepcionados. Esperavam contar com o apoio da imprensa. E Epistrau ali representava, verdadeiramente, o papel de condutor dos seus confrades. Os demais jornalistas faziam sempre o que ele recomendava. Era o líder. Comandava com incontestável liderança.

– Que terá acontecido com Epistrau, para não ter vindo à reunião, meus amigos? – perguntou, com ar de preocupação, o prefeito Floripes.

– Eu tenho uma explicação para isso – acrescentou Elvego.

– O que exatamente? – perguntou o padre Messias.

– Ora, padre, é tão fácil perceber. Não vê que depois que eu dei aquela fita, com a confissão de Atrias, eles da imprensa estão fazendo o maior estardalhaço? Estão tentando agora ligar a visão dos dois compadres, com a aparição do objeto estranho, com o desaparecimento de Nicolas, com a forma como ele vem se apresentando, mostrando-se poderoso. E todo esse comportamento da imprensa só faz aumentar a forma atrevida do povo contra a autoridade de vocês.

– É mesmo! – deixou escapar Floripes.

– Epistrau, agora, só quer estar na dele. Ele quer é vender jornal, é ter audiência no rádio e na televisão, isso sim.

– Mas é claro! – concordou o padre

– Parece que agora estamos sozinhos – concluiu Floripes.

– Mas, homem, que sozinhos, coisa nenhuma. Tenha confiança no senhor mesmo. Está certo que a imprensa ajuda. Mas o fato de ela não ser mais nossa aliada, pode ser superado. Podemos, somente nós três, arregaçar as mangas, e lutar, mostrando ao povo dessa cidade que tudo que Nicolas faz não tem o menor sentido. Que ele não é poderoso, que ele não é divino, coisa nenhuma – sentenciou Elvego, com isso deixando escapar um pouco da indignação que ainda nutria contra os homens da imprensa.

– Mas é melhor que não descartemos a imprensa – ponderou o padre Messias.

E a reunião terminou ali no espaço físico do gabinete do prefeito. Mas deveria continuar dentro de poucos minutos, pois os três saíram com destino ao albergue de Shiresto para conversar com Epistrau.

 

Capítulo XXXIV

 

– Ora essa, senhor Epistrau! Quando pensávamos nos seus bons propósitos… Que estória é essa agora de lançar mais lenha na fogueira? Pare com isso, pelo amor de Deus! Precisamos de sua ajuda, para reverter esse quadro anômalo, essa situação esquisita que só está trazendo prejuízo para essa pobre população. Eu falo assim como pastor de almas deste lugar, que conhece as suas ovelhas e…

– Mas no começo o senhor não pensava assim, não era padre?

– Ora, Epistrau, não vamos por esse caminho. Não é hora para ataques pessoais. Estamos aqui para concitar você e todos os seus confrades a fazerem uma verdadeira corrente, no sentido de fazer voltar a paz que antes aqui reinava nessa cidadezinha. Sei que você é um homem de consciência. Vai somar esforços conosco – interveio Elvego, conciliador.

– E o que devo eu fazer? Eu sou um homem de notícia. Vim aqui para este fim de mundo para, enfim, fazer a reportagem desse fenômeno que foi a aparição do OVNI. Fiz a cobertura da melhor maneira possível, fiel aos fatos que se passaram. Vocês aqui desta cidade é que não deram a mínima importância para o nosso trabalho. Quando pensei que havíamos esgotado o assunto, que tudo já dissera sobre a aparição do disco voador, que tenha bem informado os meus leitores e telespectadores, aparece uma novidade, novidade que só mesmo a mania de fala-fala de dona Cândida permitiu que eu tivesse acesso a ela.

– Você fala da fita gravada que eu lhe entreguei? – interveio Elvego.

– Isso mesmo, Elvego. Você, como pessoa esclarecida que é, deveria nos ter trazido esse fato logo que aqui chegamos. Estamos vendo o acontecimento como sendo de uma importância muito grande. Afinal, os nossos leitores estão muito interessados em que haja um aprofundamento nessa possibilidade de a aparição do disco estar ligada à visão que tiveram os dois compadres enigmáticos. Disso tenham certeza. E o jornal e a televisão não vão deixar passar essa oportunidade. É assunto momentoso. Tem mais é que ser divulgado. A essa altura dos acontecimentos, o país inteiro está ligado aqui neste fim de mundo. Tanto pelo fenômeno do OVNI, como pelo fenômeno acontecido com Nicolas e seu compadre Atrias, a mudança acontecida na cidade, a quebra do princípio de autoridade. Estamos informando os nossos leitores e telespectadores sobre os apuros por que passam vocês dois – e apontou para o padre e para o prefeito.

– Mas, Epistrau, onde é que fica a ética nisso tudo? Você está nos dizendo que simplesmente quer vender notícia. E a verdade? Será que você está comungando com tudo isso que se está passando nesta cidade? Vamos, responda, não nos decepcione!

– Não é fácil. Eu tenho contas a prestar. Se o fato existe, tenho que noticiar. E, por falar em fatos, sabem vocês da última do desmiolado Nicolas?

– O que? Não diga que temos mais novidades!

– Sim, o Parnimas, assim ele se dizia chamar.

– O cego – interveio o padre.

– Isso mesmo. O cego. Ele chegou aqui no albergue, faz poucos minutos, antes da chegada de vocês. Disse que até então era cego, completamente cego, mas, agora, depois da última e bem sucedida tentativa de falar com Nicolas, passou a ver, está vendo, vendo tudo, como se nunca tivesse sido cego. Está enxergando tudo!

– Ora, e ainda mais essa! – observou Elvego.

– Pois é, e como é que os senhores querem que eu não explore isso? Está certo, eu mesmo me corrijo. A palavra correta não é explorar, que aqui não estamos para isso. Estamos aqui para informar. Se o fato aconteceu, querem que eu deixe meus leitores e telespectadores desinformados? Absolutamente, não! Jamais faria isso. Não seria procedimento recomendável para nós que fazemos um jornalismo sério. Decididamente, tudo o que acontecer aqui vai ser objeto de notícia.

– Mas, Epistrau, seus órgãos de comunicação têm uma linha de pensamento. Não queremos que sonegue notícia, de maneira nenhuma. Queremos é o posicionamento institucional, homem – interveio, professoralmente, Elvego – e, além disso, abertura de espaço para nós.

– Ah, bom. Assim é possível. Quando quiserem, a televisão e os jornais estão à disposição de vocês. Fiquem à vontade. A propósito, já têm algum artigo que possa ser publicado?

– Isso não é problema – intrometeu-se Floripes no diálogo, olhando, ao mesmo tempo, para Elvego e para o padre Messias – Logo, logo você terá a quantidade de artigos que quiser. O senhor Elvego é bom nisso. Padre Messias, nem se fala.

E assim ficou combinado. A imprensa noticiaria os fatos; porém, não se escusaria de dar oportunidade às autoridades responsáveis, no sentido de combater aquilo que, também para os jornalistas, se constituía num verdadeiro absurdo, num verdadeiro ataque à ordem constituída e que não tinha sentido continuar, pois assim o exigia a ordem social daquela que sempre fora pacata, a cidadezinha do fim do mundo chamada Botu.

 

Capítulo XXXV

 

Realmente, o cego Parnimas tinha estado por diversas vezes na casa 345 da rua do Tambor. Exatamente cinqüenta e cinco vezes. Ele teve o cuidado de contar. E toda vez em que lá esteve, foi posto para fora violentamente. Ulyanna, esposa de Nicolas, mais precisamente, assim o fazia.

– Cego abusado, infeliz, vá para o inferno. O que é que você quer aqui? Não pense que eu me esqueci do que você me fez.

– Mas, Ulyanna, pelo amor de Deus, esqueça isso. Agora eu preciso do seu marido. Deixe-me falar com ele, pelo amor de Deus.

Na verdade, Ulyanna tinha sido vítima de estupro por parte de Parnimas, quando este, no verdor dos seus dezoito anos, era um verdadeiro pai-de-chiqueiro. Esse assunto era guardado a sete chaves, pelos próprios personagens que o vivenciaram. Acharam melhor não contar nada a ninguém. Apenas Nicolas veio a tomar conhecimento dele, dias depois do seu casamento com a sua Ulyanna. E também, por último, o padre Messias, assim mesmo em segredo de confissão. Confissão, aliás, feita por ambos, quando do assombro causado pelo estranho objeto que apareceu nos céus botuenses.

Como dissemos, era aquela a qüinquagésima quinta vez que o cego estava voltando à casa 345 da rua do Tambor. Tanta persistência assim nunca se tinha visto. Naquela vez, porém, o cego sentiu algo bastante diferente. Uma coisa mexia por dentro do seu corpo. Ele não podia ver nada, mas sentia aquela coisa estranha, aquela sensação de bem-estar invadindo o seu corpo, subindo-lhe à cabeça e se localizando em suas orbitárias. Aos poucos, foi sentindo que vinha chegando luz aos seus olhos e, à proporção que ela ia chegando, ele ia podendo ver a figura esquálida de um homem, justamente o Nicolas. Sim, apesar de mais velhos, apesar de tanto tempo já passado daquele dia do seu infortúnio, no lago Borrado, onde perdera a visão, foi logo reconhecendo que aquela imagem que se ia formando e que a sua visão ia captando aos poucos se tratava da figura de Nicolas. Até que, finalmente, deu para ver, de forma nítida, que se tratava realmente de Nicolas, seu velho conhecido. Aquela era uma hora para agradecer, somente. Nunca de relembrar aquele fato que lhe causou a perda da visão: a enorme sova que levara de Nicolas, lá dentro do lago Borrado. É que Nicolas o chamou para acompanhá-lo numa pescaria, ir com ele lago a dentro, para ver como era que se pescava. E aconteceu ali a maior sova que jamais ele tinha levado em sua vida. Apanhou de cabeçadas, de bofetadas, de pesadas, tudo isso em cima da embarcação um tanto frágil em que se encontravam. Foi espancado até mesmo com peixes, um dos quais foi jogado de encontro ao seu rosto, resultando imediatamente em sua cegueira, desde aquele dia.

– Graças a você eu voltei a enxergar. Você me tirou a visão, naquele dia, naquela surra que me deu, quando me jogou aquele peixe esquisito na direção do meu rosto. Agora, tanto tempo depois, é você mesmo quem me recobra a visão. Homem santo!

E saiu dando pulos de alegria, ficando Nicolas no seu estado de tranqüilidade de sempre, sem muito movimentar-se. Quanto a Ulyanna, esta ficou roendo as unhas de tanto desespero de ver seu estuprador recobrando a visão; a visão que fora tirada pelo seu marido, e que ele mesmo, agora, em estado de santidade, fazia-a voltar.

 

Capítulo XXXVI

 

– Parnimas, venha cá, depressa, que eu quero falar com você – ordenou o padre Messias.

– Diga, padre. Ou melhor, não é o senhor quem deve dizer. Sou eu mesmo. Pois então, eu lhe digo. Só agora, passado algum tempo de reflexão, é que eu sinto como tudo foi possível. O poder dele é imenso. Ele é inimitável. Ele faz. Simplesmente faz. Quando menos se espera, está feito. Foi o que aconteceu comigo, padre. Não tem essa estória de falar, de mover a cabeça, de movimentar braços, pernas, o corpo inteiro. Nada disso. Bem-aventurado aquele para quem ele destinar a sua determinação em realizar, em fazer. Tudo isso com o seu inigualável poder. Ele pode tudo, realmente. Ninguém se iguala a ele. Nem o Nazareno…perdão, padre.

– Vamos, continue.

– Sim, ele me abriu os olhos. Agora, eu vejo verdadeiramente. Vejo. Vejo, sim. Mais do que o prefeito; mais do que o senhor, padre; mais do que o intrometido, um tal de Elvego; mais do que essa gente metida a divulgar notícias, que invadiu a nossa cidade.

Parnimas, que fora cego durante nada menos que quinze anos, deixara, agora, a viola que sempre conduzia e com a qual se tornou conhecido na cidade, em todos os recantos por onde costumava andar, sempre cantarolando cantigas de várias modalidades, que sempre encantavam os ouvidos das pessoas, da mais cultas às incultas. Fazia como seu ponto principal a porta da igreja de Santa Júlia. Aliás, o padre Messias muitas vezes se indignara com isso. Pediu-lhe inúmeras vezes que saísse dali, que ali não dava certo ele permanecer. Agora, ele tivera a sorte, depois de tantas tentativas! Valeu a persistência. Fora posto para fora tantas vezes. Também, a mulher de Nicolas tinha lá suas razões para não gostar dele. Apanhara-a, certa vez, desprevenida, lavando roupa, seios quase expostos, e não resistiu. Estuprou-a ali mesmo. Estuprar é um modo de dizer, porque, na certa, ela não opôs tanta resistência assim como se pode pensar. Deve ter é gostado mesmo. Pois bem, tantas vezes Parnimas procurara o padre Messias, à espera de um milagre do céu, e nunca que acontecesse.

– Mas, meu filho, todas as vezes eu o recebi, e muito bem, agora…

– Eu sei, padre. Não se preocupe. As coisas são assim mesmo. Veja que o homem que me cegou foi o mesmo que hoje me trouxe a luz dos olhos.

– É interessante. Muito interessante mesmo.

– Pois não é, padre!

Padre Messias ficou contrariado ainda mais do que estava. Quase não se continha em si. A situação estava piorando cada vez mais. As rédeas estavam lhe fugindo das mãos. Era preciso, com urgência, começar a reverter aquele quadro.

– Parnimas, meu filho, dê-me licença, mas preciso ir à igreja.

– Fique à vontade, padre. Mas, se quiser, pode ir também à casa 345 da rua do Tamb…

Não terminou, porque o padre lhe sapecou um bofete que lhe atingiu a boca, que ficou sangrando.

– Miserável!!!

 

Capítulo XXXVII

 

Sargento Antunes andava de cabeça quente. Prendera o Testinha diversas vezes. A última delas fora por causa de sua investida contra a loja de tecidos Irajá, pertencente ao senhor Sinárdio. O próprio Sinárdio foi prestar queixa na delegacia.

Quem é que, ali em Botu, não conhecia o Testinha? Menino de seus dezessete anos de idade, filho de família pobre, nunca conhecera um banco escolar. Vivia assim, tirando dos incautos pequenas importâncias para sobreviver. O povo na feira o conhecia direitinho. Todos procuravam se acercar de cuidados, quando ele aparecia. Testinha jamais quis trabalhar. O trabalho para ele era encarado com o maior desprezo. Era ele, portanto, o grande mau exemplo existente em Botu. Muitas e muitas vezes já havia sido conduzido para Divinópolis. Mas logo voltava, e continuava a mesma vida de sempre. Não tinha jeito mesmo.

Dessa última vez, ele estava preso na delegacia. Como já se aproximava da idade penal, o delegado achou que não tinha problema mantê-lo preso. Fora o próprio Antunes quem o prendera. Colocara-o na cela, a única ali existente. Nesse dia, o sargento Antunes achava-se sozinho na delegacia.

Lá por volta da quinze horas, o Testinha alarmou:

– Sargento, sargento, pelo amor de Deus! O que é que está acontecendo?

– Calma, calma, deixe de alarido, seu medonho – disse o sargento Antunes, aproximando-se da cela – Que é que está havendo?

– Veja, sargento, as barras de ferro mais parecem feitas de cera. A gente toca nelas e se amassam com toda a facilidade. Veja!

– Que brincadeira é essa, garoto levado da breca!

– É verdade, sim. Veja, olhe – e apertou um dos ferros da grade.

– Pois não é que você tem razão?

Daí a instantes, Testinha e Sargento Antunes estavam diante de uma grade de ferro totalmente amolecida, como se fosse feita, realmente, de massa, mexendo-se constantemente.

– Que coisa estranha! Que explicação se pode dar a tudo isso? – perguntou-se, em voz alta, o sargento – Quando eu narrar esse fato, ninguém vai acreditar. Vão achar que eu estou caducando. É capaz até de eu perdeu o meu cargo. Por isso, acho que é melhor não contar nada a ninguém.

Testinha, de repente, ficou lívido. Perdeu a fala. Ficou imóvel. Sargento Antunes inquietou-se com aquilo que passara a ver no Testinha. Seria mais um truque do moleque?

– Que é que você tem?

E Testinha continuava completamente estático.

Quando o sargento Antunes se virou, deu de cara com Nicolas. Sim, com Nicolas! Este, braço direito estendido em direção à grade da cela. Olhos fixos, fitando incessantemente o adolescente Testinha. Em poucos instantes, a grade da cela desapareceu por completo. Testinha ficou, então, livre, para poder sair. Mas estático estava, estático continuou.

A presença de Nicolas ali, na delegacia, não excedeu a mais do que cinco minutos, e logo desapareceu por completo. Uma palavra sequer foi pronunciada por ele.

O sargento ficou estupefato. Não sabia o que fazer. Finalmente, viu a figura estática de Testinha. Dirigiu-se a ele. Estava teso, feito uma pedra. Tocou nele e logo ele recobrou os sentidos e os movimentos.

– De hoje em diante, graças a ele, eu serei outro garoto. Espere para ver, sargento!

Ouviu o sargento essa promessa e, diante do inusitado, sabendo ele dos poderes já revelados por Nicolas, não teve dúvidas.

– Sim, garoto, vá, e não volte jamais aqui.

E, com os seus botões:

– Disso agora eu estou certo.

Mas também o sargento estava certo da dor de cabeça que teria, quando o senhor Sinárdio soubesse que ele havia soltado o perigoso adolescente.

 

Capítulo XXXVIII

 

Anastácia e Cândida acabaram de chegar à cidade baixa, no ônibus que fazia a linha entre os dois planos do lugar esquecido do mundo e agora tão famoso. Vinham de suas casas. Eram cinco horas da manhã. Ambas iam, agora, em direção à igreja de Santa Júlia.

Passaram-se, já, tantos meses, muitos escândalos já haviam sido revelados, mas o caso do furto de que fora vítima a velha Cândida ainda persistia sem uma solução. O Testinha confessou tudo. Absolutamente tudo. Assumiu o furto com relação a Anastácia. Mas, e com relação àquele de que foi vítima a verdureira? Ele jurou de pés juntos ao sargento Antunes que não havia sido ele o autor. Pois é. Até aquela data, apesar de tanto escândalo ter sido descoberto, nunca apareceu o responsável por aquele furto.

A igreja estava de portas abertas. Era um domingo. Aproximavam-se as seis horas da manhã. O repicar dos sinos anunciava que a celebração da santa missa estava prestes a se iniciar. Quem poderia imaginar que aquele templo, num dia daquele, pudesse achar-se quase vazio, quando antes, por aqueles horas, sempre se apresentava abarrotado de fiéis? O padre perdera a sua freguesia. A ação de Nicolas estava enchendo a vista do povo rude, ignaro, o povo que, no começo, tinha sido insuflado, nesse sentido, pelo próprio padre Messias. Ah, se ele soubesse que tudo daria no que deu, não teria realmente movido uma palha no sentido de incentivar aquela massa ignorante. Mas descobriu o perigo, quando já era tarde, muito tarde. A sua igreja, a cuja edificação assistiu, desde a sua fundação, com tantos e tamanhos sacrifícios para concretizá-la, estava agora quase vazia, com poucos fiéis. E o fato espantoso, aquele fato que, realmente, lhe trouxe bastante temor, o fato que demonstrou que lhe saíam as coisas do controle foi aquele em que o pescador Nicolas, igreja cheia, produziu aquele destroço todo, o aniquilamento de todos os quadros da via sacra. E o episódio mais intrigante, o desaparecimento do ostensório e, enfim, a hóstia que ganhou proporção do tamanho de Nicolas, com ele se confundindo.

– Padre Messias, padre Messias!

As duas mulheres chegaram à igreja, encontrando o padre Messias no confessionário, sozinho, cabeça recostada, olhos fechados. Estaria dormindo? Assim pensaram, mas estavam enganadas. Padre Messias apenas refletia sobre o estado de coisas que se implantara ali na pacata cidade de Botu.

– Afastem, afastem, senhoras, por favor.

Padre Messias teve um susto. Ergueu a cabeça. E viu que era o sacristão Ananias que se aproximava.

– Padre, eu quero me confessar.

E não esperou chegar ao confessionário. Disse em alto e bom som o pecado que carregava com ele. O padre, Anastácia e Cândida ouviram nitidamente quando ele assim se manifestou:

– Fui eu, padre, fui eu que roubei dona Cândida. Aproveitei a oportunidade, no meio da multidão, no dia da morte e da ressurreição de Nicolas e de Atrias. Fui eu.

Todos ficaram estarrecidos.

E o sacristão acrescentou:

– E venho dizer mais uma coisa. Não estou confessando pecado, coisa nenhuma. Ele já me absolveu. Ele olhou para mim e logo entendi perfeitamente. Senti-me aliviado. Completamente aliviado. E, de hoje em diante, padre, procure outro para ajudar o senhor nas missas. Não quero e não posso mais ser o sacristão.

As duas mulheres caíram para trás de tanto espanto que as dominara.

O padre, por sua vez, baixou a cabeça, e chorou.

– Que difícil situação, sinceramente.

Não houve mais clima para a celebração da santa missa.