Ninguém sabia ao certo quem fora chamar a polícia. Ela, contudo, ali se achava. Para quê?! Para fazer com que todos fossem embora, é evidente. A rua estava completamente tomada de gente; as casas comerciais, vazias. As pessoas não mais se interessavam naquilo que realmente vieram fazer no comércio. Outra coisa mais importante chamava-lhes a atenção.
Na certa fora algum dos proprietários daquelas casas comerciais quem achou certa a intervenção da polícia. Se não fora um deles, quem é que teria tido essa idéia de chamar a força pública? Afinal, os únicos prejudicados estavam sendo eles mesmos.
O sargento Antunes comandava os praças. Vinha ele à frente dos seus comandados. Pensava que se tratasse de pouca gente. Mas estava enganado. Logo se aproximou, e percebeu a quantidade de gente apinhada ali, naquele local. Tinham razão os donos das casas comerciais. Daquele jeito eles não podiam fazer negócio nenhum. Era preciso evacuar aquelas pessoas daquela beira de rio.
– Recuem todos, vamos. Recuem – ordenavam os policiais.
O lugar foi aos poucos ficando sem um pé de gente. Sem um pé de gente, é claro, no lugar onde estava situada a causa de tamanha concentração humana, porque o povo não desistiu de todo e ficou à certa distância, aguardando o desenrolar dos acontecimentos.
A presença dos policiais é que veio piorar a situação dos comerciantes. A ação ostensiva da polícia agora era motivo de chamariz. Os transeuntes não se lembravam da existência da loja de tecidos de Sinárdio, nem da casa de discos de Anastácia, a qual desligara a eletrola já um tanto cansada, mas, mesmo assim, capaz de suportar aquele roda-roda-sem-parar de todos os dias.
O desfecho ia-se dar. O sargento Antunes aproximou-se das duas estátuas de carne. Sim, pois tão estáticos estavam os homens que mais lembravam duas estátuas do que duas pessoas de carne e osso. O sargento adiantou-se, dispôs o dedo indicador como que estivesse apontando para alguém e, meio receoso, tocou os ombros de Nicolas. Um pequeno empurrão e o pobre coitado caiu duro sobre o chão úmido. A multidão avançou, veio mais para perto. Precisava ver à curta distância aquele acontecimento curioso. Antunes levou uma das mãos à cabeça. Como teria de agir, agora? Nunca lhe aconteceu o fato de ficar diante de um caso como aquele tão embaraçoso. Por isso quedou-se a dialogar com os seus botões. Enfim, saiu da posição estática em que se deixou ficar e se deslocou em direção ao outro homem. Desta vez não tocou nele como fizera com Nicolas. Agarrou Atrias pela cintura e eis que ele ia também caindo, quando o sargento o susteve. Deitou-o sobre o solo. E ali ficaram, Nicolas e Atrias. Duros. Pareciam mesmo dois cadáveres. Os policiais não puderam deter a massa que cada vez mais se avolumava e avançava.
Logo as conversas sobre o fato se alastraram. Foram até a cabeça da ladeira do Barril. E espalharam-se pela cidade. Dois homens estavam mortos diante da loja de Sinárdio. Trataram logo de providenciar umas velas e as acenderam aos pés dos dois corpos inertes. A essa altura daquelas cenas, chegaram mais soldados. Agora, sim. Ninguém poderia mais avançar. Nicolas e Atrias dormiam o sono da morte à beira do rio Opá.
Um amarelo viu e logo ficou tomado de espanto. Um dos corpos mexera uma das mãos. Tratou logo o amarelo de correr. Não, em terra nenhuma ele tinha visto um morto se bulir. Pouco tempo depois, muitos dos presentes também puderam constatar que o amarelo não estava brincando. Sim, era verdade. Nicolas começava agora a mexer completamente uma das mãos. Atrias, por sua vez, começou a abrir e a fechar os olhos, vagarosamente. Ambos foram dando movimentos às diversas partes do corpo. Ao cabo de dez minutos, os dois já se haviam levantado. Quando tal aconteceu, todos tinham abandonado o local. Não ficou um pé de gente. Até os policiais debandaram, diante daquele fato capaz de causar temor ao maior dos destemidos daquele lugar.
Onze horas, sol muito quente, ônibus muito cheio de pessoas e de objetos de feirantes.
– Pois é. Roubaram ontem grande importância em dinheiro de dona Anastácia. Só o senhor vendo como ela ficou louca da vida. Esses ladrõezinhos são muito perigosos…
Afirmou um senhor que só podia ter sido o Testinha o autor daquele roubo. Sim, ele é que costumava andar nos transportes daquela linha. Só podia ter sido ele mesmo, reforçou.
Cândida, que iniciara a conversa, tratou logo de cuidar dos seus petrechos. Vinha para os preparativos da feira que se realizaria no dia seguinte. Trazia consigo seus instrumentos de trabalho e também certa quantia em dinheiro trocado na sua bolsa.
– A gente que se cuide – acrescentou a verdureira.
Subitamente, o assunto do roubo teve fim. Foi quando o ônibus acabou de descer a ladeira do Barril. Muita gente ainda se encontrava ali. O que houve? O que estaria havendo para que se aglomerasse tanta gente diante da loja de Sinárdio? Cândida, a mulher mais linguaruda da cidade, não podia ficar sem nenhuma informação acerca daquela multidão, àquela hora do dia. Não. Tinha que ficar a par do acontecido. E por isso mesmo pediu para descer. Desceria ali e faria as perguntas que tão bem ela sabia formular. Só assim ficaria sabendo do que se passava.
– Que coisa horrível, espantosa!
Anastácia foi imediatamente tirando conversa. Era muito amiga de Cândida. E foi por isso mesmo transmitindo o acontecimento a sua amiga.
– Pois não é que Nicolas e Atrias morreram ali, bem ali na margem do rio! E o pior de tudo é que eles ressuscitaram horas depois!!!
– Estou quase não acreditando, Anastácia! – adiantou a recém-chegada.
Cândida se esquecera de cuidar da sua bolsa. O que lhe interessava agora era ficar sabendo mesmo o que se passara: tim-tim por tim-tim. E foi de imediato se metendo no meio da multidão que voltara a tomar conta da frente da loja de Sinárdio. Entra aqui, sai acolá, ela não parava um só minuto. Tinha de saber de tudo. Afinal, era o seu mister inteirar-se de tudo quanto se passava na cidade para, logo, sair transmitindo pelo mundo afora. Era uma verdadeira leva-e-traz de notícia. A cidade, porém, não a tinha na conta de uma fofoqueira.
– Socorro, socorro! Não deixem ninguém sair do local. Chamem a polícia.
Eram lamentosos gritos da coitada feirante. Quando dera por si, tinham levado a sua bolsa. Foi o fim dos seus trocados. As lágrimas tomaram conta do seu rosto um tanto queimado pelo sol causticante de Botu. Implorou muito à pessoa que fizera aquilo com ela; que lhe tivesse compaixão, pois não merecia aquilo. Era uma mulher pobre, que trabalhava para sustentar o neto e o marido inválido. Protestou contra tudo quanto era de ladrão. Falou tanto, que parecia estar discursando. Só prestava mesmo que um furacão arrastasse todos eles e os jogasse bem no fundo do mar. Era só o que essa gente perversa merecia – enfatizava ela, furiosamente.
– Tenha calma, minha senhora. Que lhe aconteceu?
Uma das pessoas presentes ao local assim tentava acalmá-la. Não houve jeito. Ela ficou irresignável. Que pena! Acabara de receber uma notícia. E que notícia boa para ser logo propagada! Dessa vez, porém, não iria fazer com que ela se alastrasse. Cândida, momentaneamente, se esquecera dela. Preocupava-se agora com os seus suados trocados. O dinheiro do seu ganha-pão. Não, o fato não iria mais ter a elasticidade que ela prontamente arquitetara. Pelo menos por sua boca, que espalhava as notícias de uma maneira tão interessante, e rápida. Ela dessa vez tinha mais com que se preocupar. O seu netinho e seu inválido marido esperavam-na em casa. Deixara-os ali entregues à irresponsabilidade de Filadelphia, a sua empregada. Mas agora, que iria fazer? A cidade, pois, não contaria imediatamente com o ofício dessa linguaruda, mas estimada senhora. Quem sabe depois de passada a agonia pela perda dos trocados que lhe foram furtados?! Aí, sim.
E foi o que aconteceu. Quatro dias depois, ninguém em Botu havia que não soubesse do ocorrido como se presenciado o tivesse. Cândida comprovava, mais uma vez, o seu talento.
Elvego sorriu satisfeito.
O trem, finalmente, atingira a estação de Botu, quando o relógio da matriz soava cinco horas da manhã. Fora uma viagem bem longa. Cansativa. Os passageiros, todos desceram. Era dia de feira; a feira mais movimentada da região. Entre os passageiros, encontrava-se um estranho, precisamente Elvego. Viera conhecer a cidadezinha. Aliás, ele era dessas pessoas que, durante as férias, dedicava todo o seu tempo para conhecer não só novas cidades, mas também novas pessoas e travar boas amizades com elas.
– Hum, gente nova na cidade! – comentou Cândida, que tinha ido à estação apanhar as mercadorias que encomendara e imediatamente percebera a presença do estranho.
Elvego era um homem dedicado ao estudo, o qual, para ele, era mais um lazer do que propriamente uma obrigação. Era um verdadeiro pesquisador do comportamento social. Adorava travar relações com pessoas de níveis sociais os mais diversos. Botu foi a cidade que ele agora tinha escolhido. E ele ali havia chegado sozinho. Não gostava de companhias. Bastavam-lhe as que com muita certeza arranjaria em cada nova cidade onde chegava.
Soubera já muita coisa de Botu, inclusive que a cidade se dividia em dois planos bem distintos. Segundo lhe informaram, a cidadezinha possuía pouco menos de cinco mil habitantes e fora fundada por Borra-Patos. Ficava à margem esquerda do rio Opá, um regato, cujas águas deslizavam mansamente, como que assim imitando aquela população que levava uma vida preguiçosa. Não havia muita movimentação na cidade. Movimento bom mesmo só em dia de feira. E Elvego ali estava chegando justamente no dia em que o comércio de Botu atingia o seu ponto máximo.
Logo procurou se inteirar de tudo quanto se passava naquela cidadezinha do fim do mundo. Procurou saber do passado da cidade, quando foi fundada, quem foi o seu primeiro prefeito. Era-lhe, finalmente, muito importante saber sobre a vida social, econômica, enfim, de toda atividade dos botuenses. Infelizmente, porém, eles não puderam ajudá-lo. A cidade estava preocupadíssima com outra coisa. Cândida, àquela altura dos acontecimentos, já havia dado fim ao seu mister: propagara por tudo quanto era canto o que sucedera na semana passada. E o assunto cada vez mais se repetia. As versões diferentes começaram a surgir. Confirmava, assim, o velho ditado, segundo o qual quem conta um conto, aumenta um ponto. Elvego, acostumado a ver seus desejos logo satisfeitos, dessa vez não os teria. Não que os botuenses se esquivassem de ajudá-lo. Era que ninguém se preocupava com outra coisa, senão com o que tinha acontecido há uma semana exatamente. Era uma coisa digna de registro. Digna de muita atenção por parte dos botuenses.
– Mas o que houve, finalmente?
Falaram logo em ressurreição. Sim, dois homens da cidade haviam morrido e, pouco tempo depois, haviam ressuscitado.
E Elvego, porque ansiava saber tudo de uma vez:
– E essa feira é assim mesmo, minha senhora?
– Assim como, meu senhor?
– Assim, com pouca gente, fraca desse jeito?
– Santo Deus! O senhor ainda não viu nada. É um feirão.
– E por que está assim tão vazia?
– Pois não é por causa do acontecido da semana passada, a ressurreição!
– Não entendi bem. Pode me explicar melhor?
– Grande parte dos feirantes e da freguesia está lá em cima – disse gesticulando em direção à parte superior da cidade – Está uma confusão louca. Todos querem entrar para ver os dois homens que ressuscitaram. Achamos que foi um milagre. Um aviso de Deus. Já tem gente até enricando com isso. Estão cobrando dois filardis a entrada.
– São botuenses esses dois homens, dona…
– …Cândida, meu nome é Cândida. E o senhor, como se chama?
– Elvego. Elvego Doso de Riela – e insistiu – são filhos da cidade?
– É verdade. Dois homens muito trabalhadores. Nicolas era um homem do trabalho, da pescaria e da sua casa. O mesmo acontecia com o seu compadre. Os dois só andavam juntos. E acontecer uma coisa daquela com os coitados. Ficaram como verdadeiras pedras. Não se mexiam. E isso durante mais de quatro horas.
Elvego ficou, desde logo, muitíssimo interessado pelo caso. Queria ir até onde se encontravam os ressuscitados; ressuscitados na linguagem de Cândida, evidentemente.
– O senhor sobe essa ladeira – e apontou para a íngreme e esburacada ladeira do Barril – É muito fácil. Basta o senhor chegar lá em cima e vai notar a multidão. Não gastará muito dinheiro. Só dois filardis a entrada.
E Elvego para lá embicou.
Dentre todos os que visitaram os ressuscitados (ressuscitados na concepção dos botuenses, é claro), a opinião geral inicialmente era a de que os dois homens haviam ficado mudos, e a tal conclusão se chegou, porque não falavam nada com qualquer pessoa. Mas ninguém, até então, tinha tido a iniciativa de se aproximar e falar qualquer coisa com eles. Por isso, a primeira preocupação de Elvego foi a de certificar-se quanto à veracidade daquele estado de mudez de que falavam todas as pessoas que ali haviam estado.
O povo ia até a casa 345 da rua do Tambor – pois lá era onde morava Nicolas – mas ficava longe dos homens. Coisa misteriosa, coisa milagrosa. Não era para ninguém se aproximar. Não havia ninguém ali para poder falar com aqueles dois homens que todos julgavam haverem caído do céu. Tratava-se de um fenômeno divino. E se restringiam apenas a olhar à certa distância os dois homens que, aliás, faziam todos os movimentos dentro da pequena sala. Devagarinho, mas faziam. Na verdade, estavam desconfiadíssimos. Não havia aparecido ainda quem ousasse explicar o porquê de tanta gente ali somente para vê-los. Aquilo que havia acontecido com eles ainda os dominava quase por completo. Mesmo assim, uma preocupação devia-lhes rondar a mente: haviam feito alguma coisa errada?
Elvego não demorou a chegar à rua do Tambor, levando consigo um gravador que mais parecia uma maleta, adquirido em recente viagem que fizera à Europa. Muita gente havia na frente da casa 345. Era, pois, verdade o que lhe dissera a velha Cândida. Foi preciso usar da sua força para poder chegar à porta. Empurra para lá, empurra para cá, o estranho, por ter um corpo, além de pequeno, bem magro, conseguiu adentrar a sala onde estavam Nicolas e Atrias – único ponto para onde convergiam as atenções durante toda uma semana naquela pequena cidade. Elvego aproximou-se dos dois homens.
– Não chegue perto, meu senhor – disseram em uníssono muitas pessoas, dando a entender que ninguém poderia explicar o que se passava com os compadres, devendo-se, por isso, respeitar o mistério que os envolvia.
Elvego não deu ouvidos, e prosseguiu.
Os dois homens olhavam para o recém-chegado. Indagavam-se, intimamente, sobre quem seria aquele estranho, buscando as razões por que ele estava agindo de maneira diversa daquela adotada pelas demais pessoas ali presentes. Questionavam-se sobre sua firme disposição em aproximar-se deles.
O estranho ficou estático durante algum tempo. Avaliou a necessidade de equilíbrio e pulso forte ante o problema dificílimo com o qual voluntariamente se deparara. Muita gente ali conhecia Nicolas e Atrias. E por que não dizer todos? Sim, todos conheciam aqueles dois homens enigmáticos. Não eram botuenses? Nascidos e criados ali naquela terra? Por que, então, ninguém havia se aproximado deles? Era bom esclarecer logo aquilo. Mas o povo ficava de braços cruzados. Então, como considerou que aquele quadro estranho reclamava uma providência, Elvego avançou em direção aos dois homens. Estendeu a mão para um deles, precisamente o de nome Nicolas.
– O mundo receberá uma visita – disse, com voz quase inaudível.
De que visita estaria falando o Nicolas? Supôs Elvego que porventura ele pudesse estar se referindo a sua recente chegada em Botu.
– Cheguei não faz duas horas e o senhor ainda fala em receberá? De qual visita fala o senhor? Da minha, certamente, não é? Pois, se for dela, esqueça. Ela não mais será; ela já é. Eu estou aqui!
– O mundo receberá uma visita, cuidem-se.
– O mundo receberá uma visita – adiantou Atrias, que estava ao lado do seu compadre.
Que enigma seria aquele? O mundo receber uma visita?! E qual seria essa visita? Quem é que seria o visitador?
As coisas, agora sim, ficaram mais confusas.
– O senhor poderá me dizer quando será essa visita?
– O mundo receberá uma visita, já lhe dissemos. Não insista. Não falo mais. Nunca mais.
– O mundo receberá uma visita – profetizou, feito um eco, Atrias.
Ligeiro rebuliço. Duas pessoas alvoroçadas entraram na sala. Eram duas mulheres. Deus do céu! Pareciam duas loucas. Não cessavam de se lastimar.
– Você está louco, Nicolas? Meu marido, você enlouqueceu? Não se lembra mais de mim, sua querida esposa Ulyanna?
– Valha-me Nossa Senhora, o meu Atrias ficou doido. O que é que vou fazer? – assim se lastimou Joiahana, mulher de Atrias, cujas palavras eram mesmo que espadas que podiam ferir o mais duro dos corações.
Elvego queria aprofundar mais ainda a conversa com os dois homens enigmáticos. Mas, para conseguir isso, viu que era necessário a saída de todos. Gesticulou nesse sentido. E como sua determinação em abordar os dois homens enigmáticos fizera-o, de certa forma, respeitado, todos prontamente o atenderam. Com isso, então, a sala antes cheia de curiosos, passou a contar com a presença de somente três pessoas: Elvego e os dois compadres.
– Diabo que carregue esse infeliz para as profundezas do inferno. Será ele alguma autoridade? Mal chegou e já começa a me dar prejuízo.
Assim foi o desabafo imediato de Alteíades, um homem já de cabelos grisalhos, que não podia mesmo ter gostado daquela interferência de Elvego. É que ele estava controlando a entrada dos que visitavam os dois compadres, recebendo a quantia que estipulara para cada pessoa. Já estava, na verdade, com o bolso cheio de boa soma de filardis, conseguida durante uma semana.
Pobre população ignorante a de Botu. Deixar-se levar pela conversa do sabidão Alteíades.
– Que vá para o quinto dos infernos, com os seiscentos diabos – prosseguiu o explorador, cuja mina sentia que estava se esgotando, face a presença ali de Elvego.
Elvego precisava começar imediatamente o diálogo. Não havia ninguém ali para perturbá-lo. Todos o tinham atendido. Saíram. Ficaram tomando conta da frente da casa 345 da rua do Tambor. Urgia, pois, que ele começasse logo, porque poderia o povo aguçar a curiosidade com a demora, e terminar entrando na casa novamente. Acontecesse isso, e lá se ia a boa ocasião que estava tendo.
Dirigiu-se para Nicolas. Este calado estava, calado ficou. De cabeça baixa, sequer incomodou-se com a presença de Elvego.
– Fale, meu amigo. Eu preciso muito falar com o senhor.
Parecia que ninguém lhe havia falado. Apenas levantou a cabeça e afundou os seus olhos no rosto do seu compadre e, em seguida, no de Elvego. Este, depois de mais de vinte minutos de insistência, chegou à conclusão de que com Nicolas nada conseguiria. Ele não queria mesmo confessar nada. Voltou-lhe as costas e foi na direção de Atrias, que se encontrava sentado com o corpo bem relaxado, numa espreguiçadeira. Elvego aproximou-se. Puxou uma pequena cadeira. Sentou-se perto daquele outro homem enigmático.
– O senhor certamente está querendo que eu fale, não é?
Um alívio tomou conta de Elvego. Agora, sim. Iria se informar de tudo direitinho, entrar no cerne da questão. Afinal, um dos homens se predispôs a falar. Notou que Atrias estava mesmo disposto a fazer a confissão. Que ele falasse, pois.
Não foi preciso endereçar-lhe qualquer pergunta. A verdade é que a confissão saiu sem trabalho, numa série de palavras que eram pronunciadas numa pressa tal, que Elvego não teve folga para sequer acender o cigarro que trazia entre os lábios.
E assim ele iniciou a confissão:
“- Compadre Nicolas estava sentado na beira do rio, quando eu vi um peixe se aproximar dele. Era um peixe de um tamanho que eu nunca vi. O compadre estava aéreo, olhando para cima, como que estivesse a sonhar. Dei um grito, chamando por ele. Ficou meio leso. Talvez até tenha pensado que eu tivesse ficado louco, para estar gritando daquela maneira. Mas que louco que nada! Eu estava completamente bom. O compadre é que estava no mundo da lua e, quando eu dei um grito pelo seu nome, ele teve um susto e ficou pensando que eu estava louco por gritar daquela maneira. Ele ficou olhando para mim. Parecia querer me repreender. Aquilo não era coisa que eu fizesse. Por consideração nenhuma. Não tinha nenhum surdo ali para eu gritar daquela maneira. Tinha só o que ver! Mas o compadre era que não estava mesmo com a razão. Se dei um grito não foi para assustá-lo. Não. Que ganharia eu com isso? Com uma brincadeira dessa? Foi preciso eu lhe gritar novamente: Compadre, olhe, compadre, que coisa essa que está aí bem perto de você. Repare bem, compadre. O compadre entortou o longo pescoço para trás. E quão grande foi o seu susto! Era um peixe enorme. Media uns três metros o horrível animal. Os seus olhos… olhos?…ele não tinha olhos! Tinha, sim, um olho só. Bem no meio da testa. Brilhava que parecia um brilhante. O compadre ficou estarrecido com o que estava presenciando. Nunca ele tinha visto um peixe daquela envergadura. Nem tampouco eu, ora! E olhe que somos pescadores de fama nas redondezas de Botu. Nunca nos deparamos com tal coisa no grande lago Borrado, onde costumeiramente pescamos. E no Opá, um riacho daquele aparecer um monstro tão horripilante! Aquilo nem mais era peixe. Era um animal da terra, um animal feio de causar horror. Tratava-se de um animal de um brilho extravagante. As suas escamas reluziam como se fossem verdadeiras pedras caras, preciosas. As suas barbatanas eram de um luxo que Botu nunca conheceu. A cauda era muito diferente daquelas que estamos acostumados a ver em qualquer peixe.
E continuou:
– Não parei de olhar para o meu compadre que estava bem na beira do rio, como já disse. E não tirava os olhos do animal desconhecido. O compadre ficou numa posição só. Dela não se mexia. Eu, então, procurei me deslocar. Ir na direção dele. Mas, eu não pude sequer arredar um pé do lugar. Gritei, perguntando se ele não podia sair dali, vir para perto de mim. Disse-lhe que eu não podia sair do lugar onde me achava, pois estava completamente grudado ao terreno. Mas o compadre nem dava ouvidos. Gritei tanto, que senti doer a garganta. E o compadre nem se bulia. Não volvia sequer o pescoço para me acenar por meio de qualquer gesto. Ficou imóvel como uma pedra. O que estaria acontecendo com o compadre?, era sempre o que eu me perguntava. E o que estaria acontecendo comigo também? Que coisa mais estranha – concluí comigo mesmo. Eu mais afastado da beira do rio e o meu compadre lá, sem parar de fitar o estranho peixe, ou melhor, o estranho animal. Fiz tudo para ver se me libertava daquela força que me prendia ao solo. Mas não houve jeito. Estava preso mesmo e não adiantava tentar sair dali. O certo era me conformar com a situação. E fiquei esperando que o tempo passasse. Foram quatro horas ou mais. Nunca vi horas para custarem tanto a passar! Eu não tirava os olhos do meu compadre. E ele permanecia imóvel. Imóvel mesmo! O que seria aquele peixe (ou animal) estranho?, era o que sempre eu me perguntava. Que força estranha era aquela que prendia a mim e ao compadre? Interrogava, interrogava, mas não chegava a uma resposta exata. Não arranjava uma explicação. Resolvi, então, esperar. Não era possível que aquilo fosse durar o tempo todo. O compadre sempre atento, de olhos fixos no animal que eu antes avistara e lhe tinha mostrado. Um animal feio, tão feio que dava para arrepiar o corpo todo. É só isso o que eu sei dizer.
– Não se lembra de mais alguma coisa?
– Isso é tudo. Quem pode lhe dizer mais alguma coisa é aí o compadre.”
Elvego viu as coisas piorarem. Estória mais estranha aquela! Como seria o relato do Nicolas a respeito? Seria mais detalhado do que o de Atrias? E, com a intenção de colher a confissão de Nicolas, procurou novamente falar com ele. Nicolas, porém, apesar de Elvego muito implorar, não quis dizer uma palavra sobre o assunto.
Com a cabeça um tanto pesada, pois a mesma doía-lhe bastante, devido à grande viagem que fizera (os trens, Santa Mãe de Deus, eram um desconforto sem limites), Elvego resolveu adiar a entrevista com Nicolas. Iria, agora, para casa. Descansaria. Depois veria qual a melhor medida que deveria tomar com referência àqueles dois homens.
– Deixem-me passar, por obséquio.
A multidão ainda se achava diante da casa 345 da rua do Tambor. Elvego conseguiu vencer a barreira humana e eis que, em poucos minutos, pôs-se a descansar em seu quarto. Shiresto, o albergueiro, reservara-lho. E ele ali demoraria algum tempo, na medida suficiente para vencer o enfado que lhe dominava o corpo. Depois, então, procuraria o caminho mais viável para resolver o caso dos dois homens enigmáticos.
Não havia, no momento, autoridade na cidade para fazê-lo, esta é a verdade.
As autoridades da cidade estavam de braços cruzados. Chegaram, inclusive, a ir até a casa 345 da rua do Tambor, mas a presença delas não era para resolver nada acerca do caso. Ali estavam, porque precisavam que acreditassem que eles também encaravam o caso como uma ressurreição e que estavam seguindo o comportamento ignorante da população de Botu, o qual em muito ajudara o intento do sabichão Alteíades, como já temos conhecimento.
Padre Messias lá chegou e a sua presença serviu de reforço para a opinião ali estabelecida de forma generalizada. Tratava-se, realmente, de milagre. Que todos rezassem. O padre, verdadeiramente, mostrou-se altamente convicto. Sim, não acontecera outra coisa. Os dois homens haviam ressuscitado. E isso era um fato que merecia muita reflexão. Quem sabe seria aquilo um aviso do céu? E, por isso, a autoridade espiritual da cidade aconselhava a todos que rezassem. Que não zombassem dos dois homens que lá estavam na casa 345 da rua do Tambor. Deus não haveria de aparecer no final dos tempos? E que final dos tempos seria esse, senão a vida do povo mergulhada na devassidão? Humanidade corrupta, depravada, hipócrita. Sim, era bom se cuidar. Certamente, os dois homens eram enviados de Deus.
E isso foi decisivo, para que a população redobrasse a crença de que realmente os dois homens enigmáticos eram verdadeiros santos. A casa 345 teve logo a calçada da frente tomada de velas acesas. Parecia um cemitério em dia de finados. Afinal, o padre era quem suspeitava de que os dois homens fossem enviados de Deus. E essa idéia, vinda da autoridade espiritual da cidade, era mais que suficiente para que aquela população crédula tomasse a mesma como verdadeira e passasse a praticar atos de pura crendice. O povo botuense não tinha culpa nenhuma. Povo ignorante. Seguiria, certamente, tudo quanto lhe dissesse uma autoridade. E que autoridade lhe estava dizendo aquilo? Não era o padre Messias? Ele era um homem que conversava com Deus, que tinha intimidade com Deus. Portanto, o que ele dissesse acerca dos dois homens enigmáticos era mais do que exato.
O prefeito Floripes não externava o que pensava sobre os dois homens misteriosos. Preferiu acreditar em cheio no que dissera o padre Messias. Afinal, poderia ele contrariar o que estava dizendo aquele sacerdote? Corria o risco de uma divergência com ele. Não podia esconder que em muito o ajudava na política. Era o seu maior cabo eleitoral. Não. O jeito era mesmo seguir o padre. Mesmo que ele chegasse a entender de maneira diferente, teria de se conformar com o que dizia a autoridade espiritual. Concordando sempre com ele, é certo que poderia contar com o seu apoio, por mais uma vez, nas próximas eleições.
E, por falar em eleições, sempre, nesse assunto, se lhe deparava o Pedro Honorato, figura que lhe era tediosa, homem de discurso bonito, perigoso, que buscava o poder através de argumentos para ele Floripes tão sem lógica. Onde já se viu querer o poder levando o povo a sério? Floripes, na verdade, tinha vontade de dizer isso em público, nos palanques. Mas tudo estava dando certo, da forma como o padre Messias lhe indicava. Se concordava com ele em assuntos políticos, como discordar desse assunto recém-surgido em torno dos dois compadres enigmáticos?
Tinham mesmo ressuscitado os dois homens. E ai de quem dissesse o contrário.
O fenômeno que envolveu Nicolas e Atrias aconteceu na primeira quinzena do mês de fevereiro, sendo interessante destacar que, três dias antes dele, comemorara-se o carnaval animadíssimo que Botu jamais tivera.
Crianças, adolescentes, adultos pularam a valer. Nunca a população botuense tivera uma festa de momo tão animada. Os blocos (pequenos, mas eram blocos) desfilaram pelas ruas da cidade. Todos os que podiam participaram para a realização da festa. Desde o menor ao maior comerciante. Vale dizer que, sem que ninguém esperasse, Botu contou com mais três clubes recreativos. Isso do dia para a noite. Uma coisa muito interessante. E o povo também contribuiu com o seu espírito animador. A prefeitura despendia naquele ano uma soma vultosa. Queria o prefeito, e se sabe bem por qual motivo, que o carnaval fosse de um sucesso realmente de abafar. Até Floripes que nunca saía de casa durante os três dias de festa, meteu-se dentro do Clube do Lira. Ali passou os dias daquele carnaval. Acompanhado de toda a sua família, além de seus auxiliares diretos na prefeitura e muitos outros amigos, o prefeito esqueceu-se mais ainda dos problemas da cidade. E caiu na folia. Era um verdadeiro esbanjar de bebidas. Por conta, é claro, do prefeito. Ou da prefeitura? Isso é mais um caso a apreciar. Mas o que queremos dizer realmente é que Botu teve um carnaval que nunca tivera em toda a sua existência. Foi um acontecimento de causar admiração. Não se contavam as pessoas que detestavam o carnaval e que deixaram de lado esse posicionamento, passando a apoiar o tríduo momesco que se avizinhava, dando tudo de si, muitas até querendo ir além dos limites de sua possibilidade. Até o cego Parnimas colaborou.
Mas que desastre! Se a festa empolgou a todos, a todos também, no final de tudo, entristeceu. Parecia que a desgraça estava mesmo para cair sobre aquela pobre cidade. Infortúnio semelhante àquele nunca fora visto pelos botuenses. Não. Eles nunca viveram momentos tão lúgubres. Desastres que se sucediam, cada um mais terrível de que o outro; desavenças constantes. E finalmente um saldo de muitas mortes. Já no último dia programado para a folia, a chamada terça-feira gorda, não se falava mais em carnaval. Tudo eram tristezas. Cinqüenta e cinco botuenses tiveram a sorte negra. E a cidade inteira ficou de luto.
De onde teria vindo toda aquela desgraça? De onde teria vindo aquela disposição do povo botuense em colaborar para o bom êxito do carnaval, coisa que jamais havia ali acontecido? Os botuenses não sabiam explicar nem uma coisa, nem outra. Certo é que aquela tragédia em muito contrariou aquela população. Só muito depois é que a cidade esqueceu aqueles dias fatídicos. Só não esqueceu mesmo os que morreram. Isso seria impossível.
Dois dias depois, a cidade, sem deixar de lado os comentários a respeito dos lamentáveis fatos ocorridos, mergulhava na sua atividade de rotina. O comércio de Botu voltava a sua atividade normal.
Era quinta-feira, um dia com sol causticante. Muita cinza fora derramada na cabeça dos fiéis, no dia anterior. Trabalho foi o do padre Messias. Trabalhão, pois uma espécie de arrependimento coletivo levou grande número de pessoas a buscar abrigo e salvaguarda dos castigos que lhe podiam advir, pela participação naquele desastroso festejo.
Houve quem dissesse que as cinzas não foram suficientes…
Capítulo VIII
Na rua principal da cidade, perto da estação ferroviária, foram armadas as arquibancadas. Muito dinheiro gasto, a considerar o orçamento magro da prefeitura, para armar aqueles monstrengos de ferro e de tábuas, por sobre os quais a população de Botu, ávida, não se sabe por que, esperou a realização do entrudo; o entrudo mais infeliz de que já se teve notícia.
O bloco carnavalesco formado pela direção do Clube do Lira sentiu-se bastante incomodado com o surgimento na cidade do dia para a noite, de vários outros blocos. Muitas eram as solicitações de famílias inteiras que, de repente, viram-se, como que tocadas por um vírus, tomadas por um desejo de se lançarem na festa de momo. Sinárdio, então, dono da loja de tecidos Irajá, saiu lucrando e muito. Três semanas antes do carnaval, trouxera um vagão completo tomado de peças de tecidos apropriados para a confecção de fantasias. O movimento em sua loja foi grande, enorme. Alteíades, que vivia sempre reclamando, dessa vez contou com mais uns trocados, pois obteve comissão especial, em face do aumento considerável nas vendas.
De Divinópolis, vieram cinco orquestras. A melhor delas, evidentemente, a do maestro Tinino, abrilhantou, como o fazia todos os anos, os bailes do Clube do Lira, para onde acorreu a fina flor da sociedade botuense. Nos demais clubes, todos apinhados de foliões, apresentaram-se outras orquestras de menor porte e fama. Contudo o que o povo queria era dançar, dançar, até chegar a quarta-feira de cinzas. Mas… o prejuízo foi enorme. Uma cidade pobre gastar tanto, criar uma infra-estrutura para uma festa popular, esperar que disso resultasse algum dividendo e, no fim, acontecer uma tragédia. O carnaval não ultrapassou a segunda-feira. Começaram a acontecer as mortes, as tragédias. E, então, as alegrias foram cedendo lugar às lágrimas. Cinqüenta e cinco mortos. Mortes causadas por fatores estranhos os mais diferentes. Só dentro do Clube do Lira, três pessoas morreram vítimas de uma troca de tiros. Mas essas foram mortes cuja causa se conheceu. O pior é que a grande maioria dos óbitos ficou sem explicação. Dificuldade foi para o doutor Plácido, único médico da cidade, já um pouco esclerosado, para dar a causa morte na declaração que tinha de assinar para o Oficial de Registro Civil. Os enterros não podiam esperar; eram muitos os cadáveres. Houve necessidade de se improvisar muitos ataúdes; pequenos, porque a maioria dos mortos eram crianças. Não se podia era esperar que a prefeitura resolvesse do dia para a noite a certidão de óbito, pois esta teria que ser resolvida numa distância de quatrocentos quilômetros até chegar em Divinópolis. E o transporte mais rápido para essa viagem era o trem. O trem que só chegava a Botu uma vez por semana, na segunda-feira. Mas, nesse caso, a urgência dos enterros não permitia a espera nem de um dia, quanto mais de três ou quatro. Daí por que muitos corpos foram inumados sem o competente registro de óbito.
O prefeito Floripes, no seu íntimo, trazia, decepcionado, muita contrariedade. Na verdade, ele queria seu nome na boca do povo, aplaudindo-o pela iniciativa que tomara para envolver a prefeitura naquele carnaval nunca visto naquela cidade, derramando, para isso, grande soma de dinheiro público.
Elvego parecia não saber o que fazer. É verdade que para tudo há uma saída. Quando todas as portas se fecham, sempre resta uma janela, pela qual se pode chegar ao que verdadeiramente se pretende alcançar. E nisso se firmou o homem das soluções. Sim. Tinha de haver uma solução. O povo botuense é que jamais poderia encontrá-la. Mas ele, Elvego Doso de Riela, um homem prático e inteligente, logo solucionaria o problema. Havia motivo de sobra para preocupação. Não podia perdurar por muito tempo aquela situação dificultosa. O povo de Botu estava sendo explorado por um sabichão. Valia-se ele da credulidade daquele povo humilde para lhe cobrar pequena quantia de filardi, só para ver os dois homens enigmáticos. Boatava-se já que ele começara a vender as fezes secas dos dois homens. Incutia na cabeça dos crédulos que aquilo curava e também que não havia doença que resistisse aos efeitos da urina, por mais velha que estivesse. Eram coisas do céu. Milagre. Aproveitassem, pois.
Alteíades sempre fora um homem muito vivo; menos no trabalho. Sabia aproveitar-se das ocasiões. E como se aproveitava! A verdade é que já havia arrecadado muito dinheiro. Tanto dinheiro conseguira, que já pensara em adquirir um automóvel. O velho e econômico carrinho de Zutza da Farinha muito bem lhe serviria. Sabia que o velho não andava bem das finanças. E qualquer preço que ele oferecesse era negócio fechado. O carro, por sua vez, era velho, mas muito bom. Era um carrinho muito bem conservado. Aquele lhe serviria, sim. Econômico mais que ele, impossível. Comprando-o, deixaria de ser o comerciário faminto que sempre fora. Não levaria gritos e desaforos do seu patrão, o dono da loja de tecidos Irajá, o senhor Sinárdio, nunca mais. Pena é que chegou o intrometido Elvego. Parara de ganhar o seu dinheiro no ritmo acelerado que tanto o estava agradando. Elvego, por sua vez, condenava aquele procedimento. Um homem já de idade e praticando ato daquela natureza. Um grande sem-vergonha. Safadão. Fosse ganhar dinheiro assim de um modo desonesto longe dali. Aquilo não era coisa que fizesse.
Elvego, enfim, chegou a uma solução. Sim. Só poderiam estar doentes aqueles dois homens. Não tinha dúvida. O jeito era levá-los para um hospital. O explorador que ficasse a ver navios. Não iria permitir que continuasse aquela circunstância escandalosa. Um sabichão da marca maior, explorando os pobres ignorantes botuenses. Onde estavam as autoridades que não davam um jeito naquilo? É verdade: os botuenses estavam sendo levados pela propaganda do sabichão. E Elvego, vendo que isso não devia mais continuar, tratou de levar Nicolas e Atrias, tirá-los, enfim, daquela casa 345 da rua do Tambor. Levá-los-ia para o lugar onde eles deviam verdadeiramente estar: para um hospital, pois ali é que é o lugar dos doentes. E esses dois homens, por acaso, não estavam dando demonstração suficiente de que estavam precisando de tratamento? Onde já se viu uma pessoa ficar o tempo todo com uma idéia na cabeça? E que idéia! Que a Terra seria visitada. Mas visitada por quem? Era isso o que eles não diziam. Somente Atrias foi que, no final de contas, contou como se tinha passado o fato. Sim, foi o que Elvego conseguiu na confissão que ele, com toda a sua paciência, colheu junto a Atrias.
Pronto. Estava resolvido. O jeito era mesmo o hospital. E às onze horas em ponto, um automóvel (Elvego mesmo o alugou, pois não havia iniciativa por parte de ninguém afora ele) parou diante da casa 345. Os dois homens foram conduzidos para dentro do veículo, apesar da dificuldade gerada pela multidão que tomava cada centímetro do espaço que dominava a frente da casa um tanto já estragada pela ação do tempo, a casa que pertencia a Nicolas.
Alteíades via arruinar-se, assim, a sua empresa. Culpa do intrometido Elvego.
O povo foi deixando pouco a pouco a frente da casa. Dentro de poucos instantes ficou o local completamente vazio. Mas, por quê? Porque saíram todos atrás do carro que conduzia os dois homens enigmáticos. Depois, porque não puderam acompanhá-los, voltaram todos para o lugar de onde saíram. A casa passou então a ser como que um centro de romaria. Velas e mais velas passaram a ser acesas nos pés das paredes.
E foi assim que Alteíades viu que nem tudo estava perdido. Foram-se os homens, ficou a casa. O povo acreditava que ali era um lugar santo. Não ficaram ali dois homens que passaram uma semana inteirinha sem comer, sem beber? E calados? Que morreram e que tinham ressuscitado?
Não se fora, portanto, a esperança de Alteíades. Com a casa ele ainda podia angariar dinheiro e, quem sabe, mais cedo, mais tarde, terminaria comprando o automóvel com o qual tanto sonhava. Certo é que, se não tivesse havido a interferência de Elvego, as coisas correriam mais tranqüilas. Por isso é que o sabichão não cessava de rogar pragas as mais horríveis contra aquele estranho recém-chegado à cidade.
Elvego, porém, não era homem que temesse tais bobagens.
Uma vez no albergue, chegado do hospital de Divinópolis, Elvego descansava um pouco. Sentou-se num sofá e ali mesmo pretendia retirar o cansaço que o dominava, em face dos muitos atropelos que sofreu para conseguir conduzir os dois homens ao hospital. Lá os deixara. Por ora, estava tudo em paz. Esperava, agora, pelos acontecimentos futuros. Sim. Os homens, os dois compadres, iam ser interrogados sobre aquela situação que os estava atingindo. E Elvego só deixou que lhe usurpassem essa tarefa, porque, afinal de contas, Nicolas e Atrias ficaram muito bem assistidos. Tivera Elvego de fazer longa e péssima viagem, mas deixara os dois homens em boas mãos. O doutor José Levino, como pôde ver, era um competente profissional. Também era impossível que em Divinópolis não encontrasse uma pessoa adequada para resolver o problema. Os dois homens estavam lá. Elvego agora encontrava-se em Botu à espera do resultado dos exames. Estava com o pensamento voltado para o caso, quando alguém bateu à porta. Estava ele alojado no pequeno albergue de propriedade de Shiresto, como já sabemos, cujo nome era Descanso Alegre.
– Que deseja? – perguntou Elvego ao rapaz alto e magro que assomou à porta.
Era Sival, filho do prefeito Floripes. Ali viera logo que soubera da presença de Elvego na cidade. Vivia sempre à procura de alguém com quem pudesse disputar mais uma partida de xadrez. Talvez essa pessoa nova na cidade fosse amante desse tipo de esporte e, então, poderia dar o prazer de competir com ele. Sival, na verdade, era muito bom jogador. Sempre saíra vencedor nos campeonatos por ali realizados. Já ganhara troféu por três vezes consecutivas.
– Não sei se o incomodo. Talvez o senhor estivesse repousando. Mas é que eu muito lhe desejava falar…
– …sobre os dois homens? – adiantou Elvego interessado.
Não era sobre os dois homens que Sival queria falar. Rapaz dos seus quinze anos, pouco lhe interessava o que se passava na sua cidade. Vivia exclusivamente para assistir às suas aulas no Colégio Dom Carlos Costa de Divinópolis, cuidar dos seus passarinhos e jogar xadrez, seu passatempo predileto.
– Mas isso é um tabuleiro de xadrez? – inquiriu Elvego, quando viu um pequeno objeto que o rapaz trazia debaixo de um dos braços.
Era sim, um tabuleiro de xadrez. Pequeno, mas era.
– Terei imenso prazer de jogar com você – e adiantou – quem o informou da minha predileção esportiva? Alguém aqui já lhe disse que eu gosto muito de jogar xadrez?
Não. Ninguém havia dito nada. Apenas Sival estava fazendo uma tentativa. Fazia muito tempo que só jogava contra adversários conhecidíssimos. Queria sempre jogar com pessoas diferentes, desconhecidas. Conhecer outros sistemas de jogo. E como ali estava Elvego, chegado recentemente, quem sabe ele gostasse de jogar um xadrezinho…
– Foi bom você ter-me procurado. Você trabalha?
– Apenas estudo.
– Nasceu aqui mesmo?
– Sim, eu sou filho do prefeito Floripes. Já o conheceu?
Elvego animou-se. As coisas estavam melhorando para ele. Não conhecia ainda o prefeito, é claro. Mas iria conhecer e com muito prazer. O que Elvego queria no momento era mesmo conversar com o rapaz. E se puseram a jogar, sem desprezar o diálogo, que, nesse caso, mais interessava a Elvego, embora Sival o tenha iniciado.
– É claro que você está sabendo do fato que ocorreu aqui em Botu, semana passada.
– Sim.
– Xeque – avisou Sival.
E Elvego continuou com o assunto, dando a entender que mais lhe importava a conversa do que o jogo propriamente.
– Por incrível que pareça, somente eu é que me tenho preocupado com o fato. Não sei se você está bem informado…
– …estou.
– Pois bem. Estou só. Preciso de alguém que me ajude. E eu acho que não vou encontrar uma pessoa melhor do que você. Então?
– Mande as ordens. Que devo fazer?
– Preciso saber direitinho da vida desses dois homens. Você certamente os conhece muito bem. Assim creio.
Elvego não estava errado. Sival conhecia sim os dois homens enigmáticos. Sabia do comportamento daqueles que por uma semana inteira tomaram conta da atenção da população de Botu. Elvego interessou-se em elucidar aquele caso. Precisava de alguém que o ajudasse, mas não havia tido tempo ainda para encontrar esse alguém. Também só se deparara com pessoas que acreditavam ter havido mesmo ressurreição. Assim era impossível. Mas agora Elvego encontrou a pessoa certa. Sival preenchia, sim, todos os requisitos. E ficou acertado que os dois, no dia seguinte, passariam a estudar o caso.
– O senhor é mesmo um exímio jogador.
– Jogue, que eu quero lhe dar um xeque-mate.
– Já?
– Você não deveria ter jogado com o cavalo. Permitiu, assim, que eu entrasse com a minha dama, com forte domínio da situação.
O resultado é que Elvego, então, ganhara uma partida de xadrez. Uma vitória sem muito trabalho, que deixou Sival impressionado.
– Boa noite, senhor Elvego.
Sival entendeu que Elvego estava cansado, e não se demorou na despedida.
Dona Cândida, pula belchinha!
– Se enxergue, moleque. Respeite os mais velhos!
– Candidinha, pula belchinha! – e as risadas dobravam.
Os garotos, a sua alegria era mexer com a pobre Cândida. Logo ela que não fazia mal a ninguém. Só tinha mesmo a mania de viver conversando. Quando não tinha assunto, inventava. Ia ela agora em direção à igreja. Soubera, por intermédio de Floresbela, a vintenária corista da matriz, que o padre Messias já havia regressado. Há quase uns quinze minutos saíra de seu ponto comercial, na feira. Estava já se aproximando da igreja de Santa Júlia. Verdade é que a distância entre seu banco de verduras e a matriz não era tão grande assim. O que a fazia demorar tanto para chegar à igreja eram as conversas que ela mantinha com cada pessoa com quem se encontrava.
– Dona Cândida, pula belchinha!
A velha a princípio até que reprimia a atitude dos moleques que a apelidavam. Depois foi deixando um pouco de lado. Que lhe importavam aquelas xingações? Prova de que era bastante conhecida naquela comunidade. Que a apelidassem. Receberia, doravante, aquele tratamento sem se contrariar. Não se importaria mais com aqueles atrevidos.
– Olá, minha filha, como vai?
Padre Messias, embora cansadíssimo da viagem que empreendera (tivera de ir à Capital tratar de assuntos junto à Diocese), deixava transparecer que era um homem dedicadíssimo ao seu apostolado e, por isso, mal chegara e já estava a postos. Procurassem-no a qualquer hora, em qualquer circunstância, e ele ali estava, pronto para servir; e para ser servido também.
Cândida chamou-o ao confessionário. Queria confessar-se. Desabafar todos os seus pecados. A cidade vivia um clima que lhe parecia a chegada do fim dos tempos.
– Conte, filha de Deus. Conte todos os seus pecados.
A mulher linguaruda e querida de todos da cidade se pôs a falar. Disse ao padre que não era uma santa, mas esperava contar com a misericórdia de Deus.
– Perdôo, padre, perdôo tudo quanto a gentinha dessa cidade tem feito contra mim. Perdôo de coração.
– Isso são coisas de moleques, minha filha.
Cândida queria se referir a falta mais grave. Julgara altamente pecaminosas as palavras que pronunciara contra o ladrão que lhe tirara o dinheiro. Arrependera-se por tê-las pronunciado. E ali estava para pedir perdão a Deus por aquele seu comportamento. Doravante, pretendia só desejar o bem a quem o mal lhe fizesse.
Passavam, nessa hora, vários meninos pela porta central da igreja e, ao vê-la, sem nem mesmo respeitarem a casa de Deus…
– Candidinha, pula belchinha!
– Veja, padre. Mas já disse que perdôo. Estão perdoados. Padre, eu sou uma pecadora. Talvez pior que Madalena… espere aí… não direi Madalena, pois não vou confessar aqui o que eu nunca fiz. E Deus que me guarde, que eu não faria isso jamais! Mas sou pecadora por outras coisas. Digo isto por causa dos males que me cercaram de uns dias para cá. Estou com o meu velho, aleijado, e um tanto adoentado. O pobre do meu neto Inacinho continua com um fastio enorme, está bem magro o bichinho. Tudo isso é castigo. Se eu estou recebendo tudo isso é porque pequei. Pequei, padre. E estou aqui para o senhor perdoar tudo quanto eu tenha feito de errado. Sei que não deveria andar por aí afora falando. É verdade que eu não vivo a mexericar. Graças a Deus, que nunca me deixou fazer tal coisa. Só faço falar. Falar o que eu ouço das pessoas. Falar o que eu presencio. Mas só falo a verdade. Veja como eu sou conhecida aqui.
– É verdade.
Cândida não queria falar somente dos seus azares. Logo entrou noutro assunto:
– E os dois coitados, padre – começou a chorar – os dois coitados, que eu não sei se são coitados ou bem-aventurados. Receberam a graça que os nossos cinqüenta e cinco irmãos mortos não alcançaram. Morreram e ressuscitaram. Aqueles dois homens tão conhecidos de todos nós. Dois compadres trabalhadores. Homens de suas casas. Aqueles homens receberam uma graça do céu. Estou dizendo alguma tolice, padre Messias?
– Absolutamente, minha filha. Aqueles homens são dois santos.
– Padre, eu fui vê-los. Estavam calados, sem comer, sem beber. Durante uma semana, padre, uma semana. Era preciso o senhor estar aqui para ver.
– É… tive de viajar, minha filha. Aquele triste acontecimento…muitos de nossos irmãos mortos, de forma inexplicável… uma tragédia. Precisava falar com as autoridades superiores, na Capital. Mas agora aqui estou e aparecerei sempre por lá. Só os vi uma vez. Justamente no mesmo dia em que eles haviam sido cercados pelo mistério. Estou até com vontade de ir lá nesse instante.
– Mas, reverendo…
– Ora, Cândida, não se preocupe. Eu espero que você termine a confissão. Vamos, então. Diga mais.
– Não é isso, reverendo. Pensei que o senhor já soubesse.
– Soubesse de quê?
– Os homens…
– Que aconteceu?
– …não estão mais lá…
– Quem os tirou?
Ao saber que tinha sido um estranho, esqueceu-se até de terminar o seu ofício. A confissão ficaria para outra vez. E com o rosto que denotava estar completamente tomado de ira foi na direção da casa do prefeito Floripes.
– Irresponsável!!!! – dizia o padre com seus botões, durante todo o trajeto que separava a igreja da casa do chefe da edilidade.
Ficou a feirante desnorteada. Não sabia o que fizesse. Mesmo assim, demorou ainda uns quinze minutos na igreja, tempo suficiente para rezar. E não deixou de rezar por todos os ladrões deste mundo.
– Oi, dona Cândida.
Respondeu ela ao menino franzino, e saiu. Ia já descendo o patamar, quando uma voz alta e muito fina tomou conta dos seus ouvidos.
– Dona Cândida, Candidinha, pula belchinha!…
Perdeu, de um momento para o outro, o controle emocional. Havia saído da igreja com o coração aliviado, mais compreensiva, disposta a perdoar, mas a paciência apagou-se do seu consciente e, então, ela asperamente respondeu:
– Miserável!
O menino, de nome Lhiono, filho, aliás, do albergueiro Shiresto, levou um violento puxavão de orelha. A velha, então, ficou sorrindo, satisfeita. Que lhe importava ter saído da igreja onde se confessara e, logo ali na porta, não cumprir aquilo que prometera?
Curta, porém, foi a sua alegria. Um grupo de guris esperava-a adiante.
– Dona Cândida, Candidiiiinha, pula belchinha!!!
A velha, como viu que não poderia dominar a gurizada, lembrou-se então do que havia prometido. Perdoar-lhes-ia.
Tudo, enfim, porque nada podia fazer.
Botu, na verdade, estava precisando mesmo de muita água para resolver o quadro triste e desolador que ali se instalara com a seca, resultado da ausência de chuvas por mais de quatro meses. O sol ardente castigara as plantações, os animais. Zutza, o maior proprietário do município, via a sua plantação de mandioca morrer por falta do precioso líquido. Ele plantara muitos alqueires desse tubérculo da família das euforbiáceas.
Transcorria o mês de fevereiro, e a estiagem persistia. Por isso era que o proprietário da fazenda Caju queria vender seu carrinho, aquele que constava dos planos do sabichão Alteíades. E tal aconteceu, pois a casa 345 da rua do Tambor continuou a lhe dar rendimentos. Deixara, assim, de ser o comerciário que sempre fora. Com o carrinho, a sua vida agora mudaria. Passaria a fazer o transporte de pessoas e de mercadorias, dos lugares mais distantes, para a feira de Botu. No momento, reconhecia, as coisas não andavam bem. A seca não poderia deixar de surtir efeitos negativos na vida econômica dos botuenses. A feira, então, caíra muito. Deixara de ser aquele feirão, ponto de convergência dos homens mais ricos do município. Passara a ser uma simples feirinha. No lago Borrado, os cardumes haviam diminuído, desaparecido, com a diminuição do nível de suas águas. É que a sua fonte de vida principal era o riacho Opá, e quando diminuía o seu volume d’água… Assim, Alteíades vivia torcendo para que a situação melhorasse, para poder explorar o seu carrinho.
Março trouxe, enfim, a salvação. Logo no primeiro dia o aguaceiro começou a cair. O lago Borrado, que a seca fez baixar de nível consideravelmente, voltava, agora, a tomar o volume de água que lhe era normal. E a fartura, novamente chegou. Peixe, nos primeiros dias da chuva, não em abundância verdadeiramente. Diremos que dava satisfatoriamente para o consumo. E os homens que tinham por ofício a pescaria naquele lago, deram-se pela falta de dois companheiros de muitas labutas. Nicolas e Atrias ainda estavam no hospital. A cidade inteira sentia a falta de dois grandes pescadores que, com o seu labor, contribuíam com boa oferta de peixes na feira da cidade. A pescaria, enfim, era uma das maiores atividades dos botuenses. E, na sua exploração, dois homens se sobressaíam: aqueles que, para a tristeza de todos os botuenses, estavam hospitalizados.
– Vocês precisam ter mais atividade. Têm pescado pouco peixe – dizia um dos vendedores de peixe a Bertínio Ipoeira, também pescador no lago Borrado.
– Como podemos, se nos faltam os nossos mestres? A culpa não é da gente.
Na verdade, pescadores de fama comprovada e incontestável eram Nicolas e Atrias. Os outros apenas o faziam sem o conhecimento das técnicas, embora rústicas, mas sempre capazes de perseguir o cardume e de apanhá-lo; técnicas essas empregadas pelos dois pescadores agora ausentes.
Até nisso Botu sofria. Era uma verdadeira avalanche de azar que caía sobre aquela população. Os dois profissionais da atividade pesqueira, de cuja competência dependia o sucesso na produção de pescado, estes se achavam lá, num leito de hospital, sem que se soubesse, sequer, quando eles haveriam de voltar.
Mas apesar da ausência dos dois competentes pescadores, a pesca, mesmo assim, ia sendo desenvolvida. Poucos eram os resultados dos trabalhos; mas pescava-se.
Para Elvego Doso de Riela, um homem recém-chegado àquela comunidade, era de se esperar que ele ficasse alheio aos problemas que por ali estavam aparecendo. Tal não acontecia, porém, visto ser ele um homem dinâmico. Não era ele um intrometido. É que via mesmo que a sua intervenção nos assuntos da cidade só traria o bem. Conhecedor que era de assuntos os mais diversos, aplicava, ali, a sua técnica. E logo se tornou revelação, como se fora um herói. É bem verdade que tal “heroísmo” só era reconhecido pela população botuense. Sim, porque as autoridades, estas eram verdadeiras desinteressadas. Viam o problema e dele se esquivavam. Deixavam as rédeas correrem frouxas. Se tal estava acontecendo, era porque Deus assim o queria. E ninguém podia modificar os planos de Deus.
Assombraram-se, pois, quando viram ali na cidade um homem dinamicíssimo. Um homem para quem não havia problemas difíceis nem insolúveis, pois para estes é que volvia a sua atenção com acuidade e, imediatamente, ele ia achando as clareiras que lhe dessem passagem para a pronta solução.
Numa tarde, um homem assomou à porta do albergueiro Shiresto. Este o conduziu até onde estava um homem com os olhos sobre as páginas de um livro, lendo atentamente.
– Chama-se Elvego o senhor?
– Sim.
– O prefeito Floripes deseja lhe falar.
Elvego iria falar com ele sim. Tinha, aliás, uma forte ansiedade para fazê-lo. Não o tinha feito ainda, porque tempo não lhe sobrava. Agora mesmo estava prestes a terminar a leitura sobre assunto médico que lhe pudesse explicar o que ocorria com os dois homens enigmáticos. O homem das soluções, prazerosamente, fazia-se escravo na busca de cada uma que se ajustasse ao problema com que se deparasse. E as soluções, muitas soluções a que teve de chegar tomaram-lhe, evidentemente, muito tempo, impedindo-o até mesmo de contactar com o chefe da edilidade, o qual, segundo lhe informaram, vivia na sua atividade rotineira, sem muita preocupação, mesmo que o mundo estivesse se acabando. Era de casa para a prefeitura, da prefeitura para casa. Fazendo o que, não se sabe.
Elvego, verdadeiramente um homem de bons propósitos; Elvego que ia enfrentar sem temor o chefe de uma cidade sem rédeas para governá-la; Elvego que nada temia.
Não importa que idade se tenha. Pessoas adultas muitas vezes ficam a praticar verdadeiras meninices, quanto mais um rapazola lá pelos seus quinze anos. Aí sim. Osival Sahino, o Sival de seus passarinhos e o campeão de xadrez, o rapaz bem comportado, filho de Floripes, achou de fazer uma traquinagem. Verdade é que nunca andava desprevenido de dinheiro. Sempre era visto comprando e trocando passarinhos. Mas, talvez porque estivesse duro nesse dia ou mesmo porque quisera fazer algo que jamais tenha feito, achou de, numa noite, ir até a bolsa do velho seu pai. É que concordara com um vizinho muito traquinas que no dia seguinte alugariam uma bicicleta.
E assim fez. Aproximou-se da cama do pai. Pensara em tudo. Se o velho percebesse, diria que ali estava, porque precisava fazer xixi. Vinha, portanto, atrás do penico. Este, o velho o punha todas as noites debaixo da cama. Para a sua sorte ele nem sequer suspirou. Estava num sono profundo. Dormia o sono de um justo. Puxou, então, a bolsa que estava na calça e tirou uma cédula. Não pôde sequer verificar a quantia ali estampada. O escuro dominava o quarto.
Durante aquela noite chovera bastante, com relâmpagos e trovões fortíssimos. Quando amanheceu, entretanto, um sol muito brilhante começou a despontar por sobre as pequenas elevações que dominavam os horizontes do lado oriental de Botu.
– Como é, a gente vai mesmo?
– Claro, Beto.
E desceram os dois. Sival e Beto.
– Lá na rua da Pedra, na casa de Didi.
– É lá mesmo. Parece que só tem ele aqui para alugar bicicleta.
– Tem outro, sim. Mas é longe. É melhor lá mesmo.
E, nessa conversa, chegaram. Tiveram de andar uns dois quilômetros.
– Dois filardis a hora. E só alugo, porque é a você, Sival. Esse pestinha que veio com você é um safadão. Quando é que me paga, heim?
– Besteira, seu Didi – acrescentou Sival.
Acharam logo de sair os dois montados.
– Cuidado, Beto. Muito cuidado. Essa ladeira é perigosa.
Era verdade. A rua da Pedra era uma ladeira muito perigosa. Muitos acidentes ali já tinham ocorrido. Ninguém nunca se esqueceu do carro que, perdendo os freios, atropelou quatro crianças. Elas morreram no próprio local do acidente. Nem disseram um ai, coitadas.
E o veículo foi ganhando velocidade.
– Ih, Sival, tem freio, não. Te segura aí.
– Não brinca, seu…
– Não estou mentindo, não. Veja.
– Meu Deus do céu!
Adiante era um trecho estreitíssimo. E o pior era que havia uma valeta de cada lado. Fundas, é verdade. Mais de dois metros cada uma, escavadas pela forte chuva que caíra durante toda a noite.
– Venha para casa, seu pestinha! – gritava em altos brados uma velhinha que corria atrás de uma criança.
Sival reconheceu aquela mulher imediatamente. Tratava-se de dona Lalá, a lavadeira de sua casa.
– Saia do meio, dona Lalá.
Tarde demais. Ainda bem que Beto agiu com toda a cautela. Defendeu o quanto pôde a velhinha, mas eles…
Gabriel limpava os vidros de um balcão, quando adentrou o seu estabelecimento um homem que lhe foi logo ordenando:
– Vamos, corra, corra, venha fazer aqui uns curativos.
E o boticário:
– Sival! Que você andou fazendo?
– Não é hora para perguntas, seu Gabri.
E, em poucos minutos, a cabeça de Sival estava toda enfaixada. Quanto a Beto, este sofreu apenas uns arranhões. Ferimentos, aliás, levíssimos.
– Pode ir. Quer que eu leve você, Sival?
Ele não queria companhia. Não sabia como explicaria o fato. Que deveria dizer ao chegar a casa?
Era já meio-dia. Ao chegar, encontrou as portas cerradas. Sabia que aquilo era costume. Estavam almoçando. Bateu.
– Desculpe, hoje não podemos dar esmolas.
– Mas, papai, sou eu.
– O quê??
O velho quase desmaiava.
Tão alta era a discussão, que chamou a atenção dos passantes.
– O senhor precisa ser mais responsável. Afinal, trata-se de um prefeito. E como se pode conceber um homem investido nesse cargo que nem sequer cuida dos problemas de relevância que acontecem na cidade? Um irresponsável, um verdadeiro irresponsável é o que eu posso dizer de você. De que me valeu tanto trabalho? Eu que lutei desesperadamente na última campanha! Tudo porque eu fazia de você um homem de iniciativa; um homem de pulso que se interessasse em dar soluções aos nossos problemas. Mas, que vejo eu? Uma lesma. Movimente-se, homem!
O prefeito ouvia calado. Só ele mesmo sabia as amarguras que lhe dilaceravam o coração. Agüentou o quanto pôde os desaforos daquele padreco. O reverendo, não podia ele negar, era a pessoa a quem devia o sucesso na campanha eleitoral que encetara contra um político de fama, como era o Pedro Honorato.
– Irresponsável!
– Basta. O senhor só vê os problemas da cidade. E não pense que eu estou alheio a todos eles. Na verdade, eu não posso é achar soluções para o impossível. Não sou irresponsável como o senhor diz.
A família ouvia apreensiva a discussão. Num canto da sala via-se a figura de um rapaz. Cabeça envolta em faixas e esparadrapos, tinha a mãe perto. Acabava ela de lhe trazer um copo d’água.
– Não sou um irresponsável como o senhor apregoa. Eu tenho cuidado dos problemas que têm afetado a nossa comunidade. Na medida do possível, é verdade, mas tenho me preocupado. Além disso, quem calça o sapato, sabe onde ele aperta. O senhor não há de escurecer isso. Veja só ali – e apontou para um canto da sala – Não conhece aquele rapaz ali? Pois veja: venha cá, meu filho.
– Sival??!!
– Ora, padre, parece que todos nós estamos pagando por alguma coisa errada que praticamos. Uma verdadeira avalanche de azar vem descambando sobre nós. Pensa o senhor que eu esqueço um só minuto os cinqüenta e cinco botuenses que desapareceram há poucos dias? Tenho feito muito pelas viúvas, pelas crianças órfãs, enfim por todos quanto perderam seus familiares naquela hecatombe daqueles dias de carnaval. Eu lhe confesso, padre, que eu nunca havia brincado carnaval. Era a minha primeira vez. Estava possuído de uma imensa alegria. Começava mesmo a gostar da festa. Uma alegria contagiante tomava conta de mim. Desmoronou, contudo, como se fora um castelo de cartas. Oh, Deus do céu, ajudai-me!
– Sim, foi realmente uma desgraça – concordou o padre Messias.
– E mais essa agora, padre. O senhor que tão bem conhece o Sival…
– Menino bem comportado.
– Quem diabo foi que colocou na cabeça dele para andar de bicicleta alugada? E logo onde! Naquela maldita ladeira da Pedra, um lugar onde sempre têm ocorrido desastres.
– Andou causando dores de cabeça ao seu pai, não é, Sival? – observou o padre, colocando a mão sobre o ombro do rapaz. Este, encabulado, não quis dar uma palavra.
O padre, que ali estava, porque não se conformara com o que tinha sido feito com os dois homens enigmáticos, não podia abandonar o propósito que o levara até a casa do prefeito.
– Mas o senhor devia ser mais prevenido. Veja então: chega um estranho aqui, retira os dois homens da cidade, sem procurar, sequer, entrar em contacto com o senhor. O que acha disso? Está certo o que ele fez? E é correto esse seu desinteresse pelo caso?
– Calma, padre. Eu já tomei as providências. Mandei…
Um carro buzinou lá fora.
– …devem ser eles.
– Eles quem? – inquiriu o padre.
– Eles, os dois homens, Nicolas e Atrias. Quero que eles fiquem, agora, na minha casa. E desafio quem se atreva a tirá-los daqui.
Não se tratava, verdadeiramente, de outras pessoas. Nicolas e Atrias acabavam de chegar. Floripes mandara buscá-los na ambulância da prefeitura.
– Ainda bem que você fez uma coisa certa – deixou escapar o padre, meio aliviado.
Os dois homens não se encontravam em perfeito estado de saúde. Haviam recebido alta do doutor José Levino, chefe do hospital de Divinópolis, onde estavam internados. Andavam ainda naquela leseira, naqueles passos desengonçados, olhares temerosos, tudo indicando que as circunstâncias vivenciadas ainda influíam decididamente no comportamento de ambos.
De súbito, a voz de um estranho se fez ouvir na sala. Intervinha sem ser chamado para o diálogo que se desenvolvia entre o padre Messias e o prefeito Floripes, sob os olhares dos familiares deste, além dos dois homens enigmáticos recém-chegados.
– Saibam os senhores que estão errados, erradíssimos. Que tipo de autoridade são vocês?? Que poderão vocês fazer por esses dois infelizes?
Ligeira pausa, durante a qual houve o cruzamento de olhares que se interrogavam; olhares fuzilantes.
– Quem é o senhor? Não vê que colocou o carro na frente dos bois? – sentenciou o padre Messias.
– O senhor saberá. Mas antes, direi que não vou dar a minha mão à palmatória. Façam de mim o que quiserem. Expulsem-me daqui, inclusive. Sei que podem fazer isso. Contudo, antes eu quero lhes dizer que tenho a consciência tranqüila. Ah, isso eu tenho! Não fiz nada de grave de que possa ser acusado. Crime algum cometi. Então, chega-se aqui nesta cidade a qual estava acabando de sair de uma seca que quase a riscava do mapa…
– Pensa que por aqui não existe autoridade com a qual deveria antes de tudo falar?
– Não pensei tal coisa. Agi, e acho que cumpri aquilo que qualquer pessoa de bom senso faria. Estive no local onde estavam os dois homens. Esses dois coitados que aí estão. Ali eu esperava encontrar as autoridades. Sim, porque elas existem é para lutarem e trazerem a solução para os problemas que surgem numa comunidade. Lá, porém, vocês não se encontravam. Soube, por muitas bocas, que vocês estavam fora da cidade. Que fazer, então? Porque eu encontrei todos de braços cruzados, deveria eu também ficar? Ora, como poderia? E como poderia eu suportar um desonesto a arrancar dinheiro dessa população ignara? Sim, lá encontrei um descarado, um tal de Alteíades que ainda hoje vive a me rogar pragas. Tudo porque a minha intervenção tinha o propósito de impedir que ele ficasse na sua esperteza, arrancando dinheiro do bolso dos pobres habitantes dessa cidade. Era justo que um monstro desse continuasse a sua exploração?
– Mas o senhor chega na casa alheia, faz do que fez e ainda diz estar com razão?! – arrazoou o padre, sarcasticamente.
– Admira-me que tal afirmação parta exatamente do senhor.
– Por quê?
– Não prega o senhor que se deve fazer o bem?
– Forasteiro atrevido!! – retorquiu o reverendo exasperado.
– Calma, reverendo, calma – interveio conciliador o prefeito que começava a compreender que Elvego lhe podia ser útil.
Nicolas e Atrias, que acabaram de chegar, estavam sentados nos braços de uma poltrona. Continuavam no mutismo de sempre. Mantiveram-se, portanto, alheios ao que se passava ali na sala.
– Ao invés de o senhor insultar-me, devia, pois é um representante da Igreja, cuidar desses dois infelizes – arrematou Elvego, apontando para a poltrona – Não só o senhor, mas todos nós, que nada ganharemos em estarmos discutindo.
– Eu exijo uma medida de sua parte, Floripes – enfatizou o padre – Expulse-o da cidade. Não quero vê-lo mais na minha frente. Não esperarei muito tempo. O meu prazo é de um dia só.
E saiu.
Elvego, agora, percebeu que poderia ficar mais à vontade. Com o prefeito Floripes achava que podia dialogar, entender-se.
E ele não estava enganado quanto ao pensamento que acabara de formular, pois Floripes, na verdade, é que estava de olho nele, achando-o mais vigoroso em seus argumentos do que o padre Messias.
Fizera o doutor José Levino todos os exames que lhe pareceram necessários. E todos o tranqüilizaram. Os dois homens estavam sem nenhum problema físico. Mostravam, no entanto, uma aparência de quem sofrera uma espécie de choque, um abalo enorme. Daí a maneira como continuavam se comportando, sempre calados, cismados, comendo pouco. E estava o doutor resolvido a dar alta aos dois compadres, quando, no hospital que dirigia, apareceu o homem que levara o pedido do prefeito Floripes. Trazia o pedido de remoção dos dois homens enigmáticos. Eles, àquela altura, já eram motivo de comentários para a população divinopolitana.
O chefe do hospital não teve motivos para se queixar do pedido do prefeito, pois este chegara, quando o médico já havia resolvido dar alta a Nicolas e a Atrias. Não adiantava mesmo eles ficarem ali, quando mais nada podia fazer por eles.
Pensara Elvego em ir até Divinópolis. Parecia-lhe que o doutor José Levino não dera mesmo tudo de si na apreciação do mal que atingira aqueles dois pobres homens. Desistiu logo, depois de fazer algumas conjecturas acerca da sua competência, pois, como pôde ver pessoalmente, se tratava de um excelente discípulo de Hipócrates. O problema, agora, era dele. Somente dele. Restava-lhe, ainda, muito tempo. Tirara férias bem longas. Não havendo ninguém na cidade com quem pudesse contar, arregaçaria ele mesmo as suas mangas e se poria à frente daquele caso que o estava deixando intrigado deveras. As informações que conseguiu junto a Sival em muito lhe serviram. Ficou sabendo de muita coisa sobre Nicolas e Atrias.
Falaria com o senhor Floripes. Tinha quase certeza de que da parte dele receberia o apoio de que estava necessitando. Deixasse aqueles dois homens sob sua orientação, era o pedido que tinha em mente fazer.
Na prefeitura, foi logo direto ao assunto. Pediu a Floripes que deixasse Nicolas e Atrias sob sua responsabilidade. Prometeu que daria tudo de si. Não havia nada a temer. Era um homem que sabia onde colocar o seu nariz. Não era nenhum imprudente, justificou-se. Continuaria com a missão que ora se propunha assumir até o momento em que sentisse o completo restabelecimento daqueles homens.
– O senhor tem carta branca para agir. Aquele padreco já se meteu muito no meu caminho. Que ele não se intrometa mais. A partir de hoje o senhor poderá ir a minha casa. Lá estão os homens, doravante sob sua responsabilidade. Afinal, eu nunca acreditei que o que aconteceu com eles é coisa ligada a mistério. Deve haver uma explicação para aquilo.
– E por que o senhor não procurou cuidar no sentido de pôr logo fim àquilo?
– Senhor Elvego, é uma estória bem longa. É até vergonhoso o que tenho a lhe dizer. Aquele padre, foi ele quem, na verdade, me pôs na prefeitura. Por isso nunca deixou de intervir na minha administração. Sempre tinha de fazer tudo quanto ele me ditava. A partir de hoje, porém, as coisas mudarão. Chega!!!
– Não é preciso o senhor romper em definitivo com ele. Afinal, ele, inclusive, poderá nos ajudar.
– Não espere isso dele. Quando não se faz o que ele quer, não existe acordo. É um prepotente. Vigarista. Isso mesmo.
O prefeito, a princípio, não esclareceu por que rompera tão repentinamente com o padre. Depois é que deu a entender que assim fizera, porque contava agora com um homem que o podia ajudar, um braço forte, enfim. A verdade é que ele precisava de uma pessoa assim, capaz de enfrentar os argumentos sempre vigorosos daquele padreco. E, com Elvego Doso de Riela ali para ajudá-lo, ele não poderia temer. Levaria avante aquilo que há muito pretendia realizar: separar-se da influência do padre, livrar-se de suas artimanhas. Viu em Elvego um instrumento com o qual poderia novamente se lançar noutra campanha eleitoral e sair vitorioso. Ficara, aliás, muito contente, quando viu chegarem os dois homens. Mandara um secretário até Divinópolis. E o seu pedido foi levado em consideração. Estava com os dois homens na sua casa. E agora era Elvego quem vinha rogar-lhe para cuidar dos dois compadres. Por que não permitir? Claro. Tê-lo-ia, de agora em diante, como a pessoa de quem extrairia orientações corretas para a boa administração da cidade. Isto lhe daria, com certeza, uma maior popularidade entre os botuenses, coisa de que mais necessitava no momento, pois as eleições não tardavam a chegar.
Era domingo. O púlpito da igreja de Santa Júlia seria ocupado mais uma vez pelo reverendo Messias. E o fazia dessa vez com o espírito carregado das críticas que tinha em mente fazer não só contra a população de Botu, como também contra o cretino do Floripes, um homem que agora para ele não reunia as condições exigidas para ocupar um cargo tão relevante como o de prefeito. Ameaçado que estava de perder o prestígio que mantinha junto ao chefe da edilidade, não fazia questão de perdê-lo de vez, pois, face à presença de Elvego perto do prefeito, facilmente desconfiou que com Floripes nunca mais voltaria a ter boas relações. Era, portanto, a sua vez de delatar as irregularidades que tão bem conhecia. Doía-lhe ter que se restringir à vida pastoral, propriamente dita. Na verdade, era muito bem dotado de qualidades que só se encontram num verdadeiro político. Poderia candidatar-se, mas aquela população ignara não podia conceber um padre protagonizando assuntos políticos. Jamais.
As naves da igreja estavam com todos os seus lugares tomados de fiéis. Aquele templo, dominicalmente, sem exceção, ficava lotado. Acostumara-se a população mais idosa de Botu a assistir à missa das seis horas da manhã. Não se constituía, pois, novidade o fato de a igreja estar repleta de fiéis. Sabia o reverendo que ali, naquele dia e hora, se faziam presentes as pessoas mais avisadas do lugar. E essa era ocasião mais que excelente para dar vazão aos seus propósitos. Estes agora seriam concretizados numa das práticas que havia tempo não era feita do púlpito da matriz da cidade. Ansiosamente, o vigário esperava o momento para lançar-se na sua oração. Seria, também, nada mais nada menos que um desabafo. Não iria ser uma peça magistral da verdadeira oratória, mas que surtiria efeito retumbante, disso ele tinha certeza. Floresbela, corista antiga, mais antiga na paróquia do que o próprio padre Messias, ficou atordoada. Nunca vira o padre de modo tão diferente, com um comportamento que lhe dizia sobre algo fora da rotina que estava por acontecer. Sim, porque o padre sequer atendia ao ritual, dele tão conhecido, os cânticos tão bem ensaiados… Floresbela, naquele domingo, ficara praticamente sem o prazer de fazer ecoar as vozes daquele coro tão dedicadamente dirigido por ela. A corista estava correta em suas previsões, pois foi com passos firmes que, após a leitura do Evangelho, padre Messias se dirigiu para o púlpito. Começou dizendo que Botu era uma cidade infeliz, mas, felizmente, se sabia a razão de tamanho infortúnio. Desgraçados seríamos nós botuenses – dizia ele na sua oração – se fôssemos cegos para não enxergarmos aquilo que está tão ao alcance dos olhos. A causa de toda a miséria de Botu estava na própria Botu, com sua gente ignorante e, o que era pior, sem ter ninguém que a soubesse conduzir.
– Caríssimos paroquianos, como eu queria que o Espírito Santo me iluminasse a mim e a todos vocês. A mim, para que pudesse fazer chegar a vocês as verdades ocultas por artifícios dos que se dizem prontos para fazerem o bem, quando, na realidade, a intenção não é o bem geral da comunidade, mas o próprio interesse. E pediria que também o Divino cobrisse todos vocês de luz, porque de nada valerá que eu leve a todos vocês essas verdades, se vocês não podem ouvi-las. Seria chover no molhado.
Ligeira pausa, para limpar o suor do rosto.
– Ah, minha querida Botu. Por quantos dissabores tens passado! Não faz muito tempo, cinqüenta e cinco pessoas tiveram ceifadas as suas preciosas vidas. Que Deus os tenha a todos no lugar que Ele reservou para os infortunados. Como devem todos vocês se lembrar, tudo isso motivado por erros que partiram de vocês mesmos e cuja culpa maior está na pessoa a quem entregamos as chaves da nossa cidade. Pois, caros paroquianos, quem é o responsável por essa festa que nos trouxe tantos malefícios? Tinham, além disso, todos vocês condições econômicas para despender com a fundação de mais clubes sociais, com a ornamentação de nossa avenida principal? Tinha, enfim, a cidade, que vivia mergulhada na secura motivada pela ausência das chuvas, condições para realizar nenhuma festa por menor que ela fosse? Todos vocês haverão de entender que as minhas reprimendas têm como destinatário principal aquele que nos governa a nós, aquele em quem depositamos a nossa firme confiança, pois nele víamos um homem de bem. Botuenses, em que mundo estamos nós? Que verdadeira falta de competência se tem presenciado aqui em nossas plagas! Não devemos considerar como um castigo do céu tudo isso que de ruim nos aconteceu. Deus não haveria de permitir que uma população tão ordeira como a nossa sofresse castigos, quando nenhum grande pecado cometeu. A origem dessa desgraça deve estar por aqui mesmo. Alguém a provocou. É hora, pois, de perguntar: com que propósito agiu o nosso prefeito naquele movimento que encetou nos dias que antecederam a festa de momo? Era porque tinha em mente trazer-lhes alegrias, felicidades, as quais fizessem a nossa população esquecer um pouco as dores por que estava passando? Isto, não tenho dúvida nenhuma, haverá de ser o argumento em que ele se apoiará para dar corpo a sua defesa. Não comungo, porém, da esperteza que considere todos vocês verdadeiros néscios. Não falo com temeridade, nem fazendo suposições. Aquilo que estou dizendo acerca do nosso prefeito, digo-o sem nenhum constrangimento. Digo-o com a consciência tranqüila de que não estou cometendo a menor injustiça. É uma verdade por demais clara. Não foi outra, caríssimos irmãos, a intenção do senhor Floripes ao incentivar tão animado entrudo. Realizando tal promoção – acreditava ele – conseguiria, na certa, a retomada de sua popularidade. Não estão próximas as eleições? Foi este, e não outro, o propósito dele, quando concitou todos vocês, desde os comerciantes até as pessoas de renda mais baixa para colaborarem com a organização das festividades carnavalescas. E, infelizmente, ele conseguiu fazer a festa. Vocês se deixaram levar, e a verdade é que o ladrão de consciências conseguiu botar seu nome em evidência.
Já a essa altura, todos, na igreja, sentiam a que ponto queria chegar o reverendo. E este, apesar de notar que um certo número de pessoas se ia evadindo, não perdeu, com isso, a força dos seus argumentos, nem a seqüência dos seus pensamentos. Quem não quisesse ouvir, saísse. Claro é que ele contaria com o apoio da maioria dos botuenses. Disso ele tinha certeza. A tal conclusão logo chegou, porque a evasão não passara de mais de dez por cento dos fiéis. Aqueles, certamente, estavam do lado oposto. Que saíssem. Não lhe faziam falta.
E o pároco retomou a sua linha de pensamento:
– Botu sofre uma ameaça. E é preciso que seus filhos não fiquem de braços cruzados. Sou eu quem está advertindo todos vocês. Como sabem, a Igreja não quer outra coisa, a não ser o bem para a humanidade. Por isso é que ela trabalha, lutando contra tudo e contra todos, numa luta honesta, numa luta de bons propósitos. E como a seara do Senhor jamais teve inerte a sua colheita, que cada um de nós dela também participemos. Disse o nosso Divino Mestre que a árvore que não prestasse deveria ser cortada e lançada ao fogo. Um estranho pernicioso é essa árvore que o povo dessa minha querida cidade deve cortar. Não podemos ser hospedeiros de pessoas cuja intenção é nos levar ao desmantelo de tudo, à negação do princípio de autoridade. Este é o apelo que eu faço a todos os fiéis. O tal Elvego Doso de Riela é um sacrílego. Preciso, portanto, do apoio de vocês. Que façamos a partir de agora uma campanha para expulsar esse excomungado do seio da nossa sociedade. Além de sacrílego, ele é um covarde, pois se valeu da minha ausência para tirar os dois homens santos da casa 345 da rua do Tambor. Botu, na verdade, estava precisando de um milagre que viesse pôr termo as nossas amarguras. Até que nos caíram do céu aqueles dois pescadores. Eles nada mais podem ser do que enviados do céu. Eles, sim, são o nosso conforto espiritual. Deus os mandou para que a eles nós pedíssemos as orientações, através das quais nós pudéssemos sair das dificuldades que atingem as nossas vidas, meus irmãos botuenses. Portanto, urge que vocês encetem uma campanha contra o estranho e este prefeito que só estão nos causando problemas. Estão eles apossados de Nicolas e de Atrias, como se aqueles dois santos fossem propriedades suas, quando, na realidade, são verdadeiros enviados de Deus. Tomemos, pois, e os coloquemos lá naquela casa da rua do Tambor. Em todos vocês eu deposito a minha confiança. E…
Não pôde continuar. Uma intensa balbúrdia se fez escutar dentro da matriz. Lá fora algo estranho estava acontecendo. Àquela altura, poucos eram os botuenses que, na cidade, se encontravam dentro de suas casas. O céu era o lugar para onde eles tanto olhavam. Algo estranho estava acontecendo mesmo.
Padre Messias não conseguiu terminar a sua prática, mas dissera muita coisa do que tinha a dizer. Por isso não ficou exasperado com a evasão de todos os fiéis de dentro da igreja. Aliás, até ele deixou o púlpito, e foi se juntar à multidão que viajava com os olhos pelo céu.
De uma gente ordeira poucos são os comportamentos inadequados que dela se pode esperar. Botu levava uma vida certinha, harmoniosa. Cidade onde havia o respeito. Era, aliás, povo de uma religiosidade considerável. Preservava sempre o legado moral que lhe deixavam os avoengos. A decência era o que mais se constatava nas relações entre as pessoas, onde as mais jovens reconheciam a sua condição de obedientes às orientações das mais idosas, nelas reconhecendo a fonte de onde brotavam os sábios conselhos sempre admitidos sem contestação. Escândalo era coisa cujo registro ali nunca foi posto à mostra. Só mesmo o de Alteíades, assim mesmo porque a população fora hipnotizada pela propaganda daquele espertalhão. Afora isso, tudo era normalidade. Cada um no seu mister, cada um na sua atividade simples de gente que não tem muita ambição. No comércio, então, reinava a honestidade. Quanto a Testinha, adolescente problemático, a pertinaz contumácia na subtração dos bens alheios a ninguém escandalizava; pelo contrário, todos já sabiam de quem ele se tratava e, por isso, sempre se mantinham de olhos abertos.
A cidade pacata, porém, entrara em polvorosa. Muitas pessoas precipitaram-se na confissão de comportamentos estarrecedores. Vieram à tona escândalos e mais escândalos, práticas pecaminosas, muitas delas camufladíssimas; outras, patentes, mas dissimuladas pelo poder de convencimento dos seus autores. A razão de tudo isso foi o fato de, por algumas horas, as pessoas haverem pensado que o fim dos tempos havia chegado. Morreriam naquele mesmo dia, quem sabe naquele mesmo momento. E doía-lhes morrer carregando a cruz do pecado. Haviam praticado erros e, porque a morte se aproximava, abriam suas consciências, anunciando aos seus semelhantes o véu negro que guardavam dentro de si, pare se aliviarem.
O inválido João Ventura – aliás, Ventura era apenas um apelido adquirido na profissão de vendedor de verduras, pois, por um problema em sua fala, sempre pronunciava “ventura” no lugar de “verdura” – ele, casado com a nossa tão conhecida Cândida, quase sofreu uma síncope, quando sua mulher lhe confessou ter praticado adultério, muitos anos atrás. Contou as circunstâncias e adiantou que seu marido quase a surpreendia em flagrante delito. Sorte dela, pois houve tempo para fazer sair o seu ocasional amante. Ele desapareceu sem jamais pôr os pés naquela cidade. É que conhecia a fama de valentão que tinha João Ventura. E tudo isso ocorreu no tempo em que o vendedor de verduras tinha as suas pernas; homem do seu lar, vivendo só para a sua mulher e seus familiares, mantendo a todos através do trabalho que desempenhava com a maior satisfação.
O temor da morte fez com que Cândida desvendasse o mistério, o seu mistério que tão bem guardara e que nunca lhe passou na cabeça tal dia chegar. Senhora de já seus setenta anos, levava uma vida honesta, trabalhando para o marido inválido que vivia da cama para a cadeira de rodas e vice-versa. Vivia também trabalhando para o seu netinho Inácio, chamado carinhosamente de Inacinho, que lhe era a coisa mais cara neste mundo e cuja mãe, Irene, filha dela e de João Ventura, abandonara a casa dos pais, e não dera notícia nunca mais.
Mulher tão boa a Cândida! Tão conhecida pelos botuenses! Uma alma boa, uma mulher sem defeitos. Somente aquela mania de viver conversando. Parecia ter bebido água de chocalho. E quem haveria de pensar que no seu passado existia um ponto negro? Jamais se poderia fazer tal pensamento. Isso era impossível diante do seu comportamento no meio dos botuenses. Mas confessou o seu erro. João Ventura, apesar de inválido, dela não mais quis saber, depois que os vexames passaram. Aquela alma de demônio. Pura como ele pensava que ela era, e agora! Mostrou a face de lobo; lobo que escondia na sua pele de ovelha mansa e boa e agradável e fiel. Não quis mais saber de Cândida, a mulher que para ele era tudo, no amor e na necessidade para viver, após o acidente que sofrera.
Não ficou somente na pessoa da mulher vendedora de verduras a aparição dos comportamentos indevidos de muitos habitantes daquela cidade do fim do mundo. Alteíades, porque não ignorava que o seu gesto tinha sido uma verdadeira espoliação, também ajoelhava-se e pedia a Deus perdão pelos pecados que cometera. Valera-se, é verdade, da credulidade do povo botuense para lhe arrancar dinheiro, cobrando dois filardis dos que queriam ver os dois homens enigmáticos. E assim foi, como sabemos, que ele conseguiu tirar o pé da lama. Deixar de ser um comerciário que vivia do seu salário que mal dava para prover as suas necessidades mais elementares. Poria à disposição da Igreja todo o seu patrimônio. Não se importava em voltar à pobreza. Importante era-lhe a salvação. A consciência, somente agora, com a aproximação do fim do mundo, é que lhe doía. Perderia tudo, mas o que ele desejava mesmo era a salvação da sua alma.
Quanto mais piorava a situação, mais e mais apareciam pessoas confessando os erros que haviam cometido. Agora, era o Testinha. Acostumado desde cedo à usurpação das coisas alheias, fora ele, na verdade, quem tinha praticado o furto do caixa de Anastácia. Confessou que se aproveitara do momento em que a dona da loja de discos se afastara para trocar uma cédula na loja vizinha. Oportunidade melhor não teria. E retirou todo o dinheiro que na gaveta havia. Não podia devolver a quantia que tirara. Gastara-a toda.
– E quanto à importância roubada de dona Cândida? – inquiriu o sargento Antunes que estava presente e passou a interrogar o larápio, quase na certeza de que ele confessaria ter sido ele mesmo o autor daquele furto.
Não. Não tinha sido ele. Jurou, inclusive. Queria ver-se livre de qualquer peso na consciência. Arrependera-se, como fizera o bom ladrão. E com isso acreditava que salvaria a sua alma.
– Eu juro, juro. Não fui eu.
Ele, realmente, com toda a sinceridade que demonstrava, não denotava ter sido o autor do furto que diminuiu o numerário da vendedora de verduras.
Mais de trinta confissões se verificaram. E a última de que se teve conhecimento foi a do jovem Osival Sahino, o nosso já tão conhecido Sival, o rapaz dos seus passarinhos, o rapaz que amava o jogo de xadrez, enfim o Sival, filho de Floripes, o prefeito.
– Pequei, pai…
Dissera ao pai como agira no dia anterior ao desastre que sofrera.
– …mas, filho, era só pedir.
Floripes, quem sabe, estava dizendo que não importava o que fizera o filho, porque ele também via a situação ficar preta, e sabia ter praticado algo errado. A morte de cinqüenta e cinco pessoas tinha tido como uma das causas não outra coisa, senão a sua ambição, justamente seu desejo de ver crescer a sua popularidade perante a população. Disso ficaram sabendo os botuenses, sobretudo depois da denúncia do padre, em seu último sermão. Somente ele é que não queria confessar isso.
Pôde, assim, a cidade ficar sabendo das podridões dos seus habitantes, graças ao estranho objeto que, circundando Botu, causou-lhes pânico, a ponto de pensarem haver chegado o fim deste mundo. Mas o objeto, depois de muito circundar por sobre a cidade, por cerca de quatro horas ininterruptas, desapareceu, constituindo-se, assim, em mais um enigma que aparecia ali por aquelas bandas.
Em muito mudaria a cidade de Botu dali em diante.
O susto passara, e não passara. Certo é que por algumas horas a população botuense voltara quase à normalidade de antes, depois do desaparecimento do estranho objeto para o lado norte da cidade. Mas, depois, correu uma notícia entristecedora. Dessa vez, Cândida, apesar de muito contristada por haver perdido a companhia de João Ventura, mesmo assim ela não se deixou levar pelas forças negativas que insistiam em lhe dominar o ânimo. Saiu pelas ruas. Havia trabalho para ela. Botu inteira precisava saber que Nicolas havia desaparecido. Foi, aliás, motivo de muitos comentários. A população crédula daquela cidade, aquela parte que seguia o pensamento do padre, viu no acontecimento mais um mistério. Ligara o pobre homem à figura de Jesus Cristo, na hora de sua ascensão. Sim, não havia dúvida. O Nicolas não era outro senão o Cristo que voltara à terra e ei-lo de volta novamente para o seio do Pai. O padre Messias revelou-se crente de que se tratava, realmente, da nova vinda do Ungido à terra. Fez ver, de certa forma, sua estranheza no fato de ele não haver transmitido a sua doutrina ao seu povo, o povo deste século de escândalos, de hipocrisias. Mas, como tudo muda, quem sabe quisera Deus mostrar sua insatisfação com o seu mutismo. Era isso mesmo. Deus estava tão decepcionado com a humanidade que no seu seio chegou e não quis sequer dizer-lhe uma palavra. Toda a Botu cria que ali se verificara o que há quase dois mil anos se passara em Jerusalém. O Cristo havia subido aos céus. Voltava para o seio do pai. O povo assim pensava, contando, para isso, com o reforço das palavras do padre Messias.
Como não podia deixar de ser, o ocorrido teria que arder a cabeça de Elvego Doso de Riela. Não que ele desacreditasse no testemunho dos que deram pelo desaparecimento de Nicolas. Ele havia desaparecido mesmo. Acreditava no que lhe diziam. Elvego mesmo procurou investigar. Preocuparam-se todos em procurar Nicolas por todos os lados e recantos da cidade. E a conclusão a que chegaram foi a de que ele havia sumido deveras. Como dizer, então, àquela gente que Nicolas não era um Deus? Como incutir na cabeça daquela gente que seguia a opinião de um padre vigarista que não havia ali se verificado uma nova vinda do Cristo Salvador? – interrogava-se Elvego, tomado de intensa apreensão,
Na verdade, pensava Elvego que havia uma explicação para tudo aquilo. Aliás, somente ele era quem poderia explicar, de fato, o que verdadeiramente tinha ocorrido. Não lhe disseram Nicolas e Atrias que a Terra seria visitada? Sim, agora ele começava a crer que aqueles dois homens não estavam loucos. Agora ele sentia que algo estranho ocorrera com aqueles dois compadres.
E todo esse problema o preocupou por muitas horas, sem que achasse uma solução. Foi quando, passadas mais de cinco horas, o avisaram de que Nicolas havia sido achado sobre um monte de capim, na fazenda Caju.
Por conta desse acontecido, Botu passou a conhecer os seus dias de uma abstinência total às coisas profanas. O trabalho, que aliás nunca deixou de ser sagrado, pois é através dele que a humanidade pode caminhar em busca de dias melhores, até ele foi posto no esquecimento. Padre Messias aconselhava a oração com todo o ardor, com toda a devoção. Cristo ali estava. Ele não poderia escolher uma grande cidade, um grande centro para voltar a terra, novamente. Ele achou de escolher dessa vez a cidade de Botu, aquela que ultimamente só tivera a triste sina de ser palco de acontecimentos os mais nefastos. Não dissera o Mestre, na sua primeira vinda, que veio para salvar os enfermos? Portanto, a sua escolha foi mais do que certa. Botu era uma verdadeira Sodoma. O pecado consumia aquela gente sem escrúpulos, aquela gente eivada do magnetismo da mentira, aquela gente que parecia um rebanho de ovelhas quando, na realidade, não passava de uma alcatéia de lobos. É bem verdade que havia as pessoas que procediam bem. Verdadeiros homens de caráter. Justos. Mas grande parte da população era aquilo que se estava vendo.
Tudo isso passou ao conhecimento geral, graças àquele estranho objeto que deixou aterrorizada a população. Cada um que confessasse os seus erros. Viera o padre a saber de muitos deles. Não foram poucos os que lhe vieram confessar a decepção por que passaram. João Ventura foi um deles. Contara ao padre o procedimento de Cândida. Sim, precisava ele desabafar. Mas o padre quase não acreditava. Cândida?! Não era possível. Uma mulher daquela ter praticado adultério?! Impossível!
– É verdade, sim, padre.
Padre Messias recebia, depois do estranho fenômeno acontecido, notícias de muitas pessoas que praticaram atitudes indevidas, pecaminosas. Chegou até a pensar que era certa a confissão de Floripes. Sim, ele também viria aos pés da autoridade espiritual confessar os seus erros. Não advogava o padre que o prefeito era, sem dúvida nenhuma, o grande responsável pela morte dos cinqüenta e cinco botuenses? Por isso, ele alimentou a esperança de contar ali a seus pés com a presença do medíocre Floripes.
Tal, porém, não aconteceu. É verdade que Floripes não ficara imune aos temores que o estranho objeto causou à população da cidade. Mas ele não era tão ignorante quanto todos os seus munícipes. Era um homem relativamente esclarecido. Como é sabido, Floripes não se deixava levar pelo pensamento do padre e da população em geral, os quais esposavam a certeza de que Nicolas e Atrias, os homens enigmáticos, haviam ressuscitado.
– Padre Messias – o reverendo assustou-se – Padre… – o recém-chegado tinha dificuldade para articular as palavras.
– Diga de uma vez por todas, homem.
– Nicolas está…
– Onde, onde está o santo? Diga logo pelo amor de Deus.
– Lá na fazenda…
– Que fazenda?
– …do seu Zutza, o meu patrão, padre.
– Mas você…
– Não acredita, padre? Não acredita?
O destino de uma cidade parecia estar entregue aos ditames do azar. Parecia a escuridão da desgraça que resolvera despejar os seus males naquele recanto outrora tão cheio de paz. Onde antes reinava a alegria, dominava, agora, a intranqüilidade. Não se dormia sossegado. O mal que chega sem avisar adentrava a cidade, exposta em frestas gigantes que lhe permitiam a passagem devoradora, e estava já como senhor absoluto. Absorvera quase por completo o ânimo daquela população, incutindo-lhe a certeza de que o fim era chegado. Botu era o centro urbano mais pacato que se podia encontrar. Isso, aliás, na aparência, pois, como é sabido, depois do aparecimento do estranho objeto nos céus daquela cidade, o povo começou a vomitar os erros que praticara e que, até então, achavam-se bem guardados pela vergonha de cada um. Graças, porém, àquele objeto estranho, os erros vieram à tona. Tudo porque aquele povo sentia aproximar-se o momento final. Aquele estranho objeto não era outra coisa senão a arma do aniquilamento final, o veículo de que se serviria Deus para destruir a humanidade.
– Chame um carro. Chame logo.
– Sim, padre. Vou chamar.
Padre Messias precisava chegar o mais depressa possível à fazenda Caju. Quem sabe o tal Elvego havia tido ciência primeiro do que ele e já se achasse lá no local, pois ele já provara o quanto era intrometido. Foi logo no que pensou sua reverendíssima. Urgia, pois, que apressasse a sua ida. E mal acabara o carro de chegar, lançou-se a ele, tomando o seu lugar, sequer esperando que o veículo estacionasse.
– Fazenda Caju, o mais depressa possível.
O carro, então, disparou numa velocidade altíssima, levantando muita poeira e levando dentro dele um padre que agora acabava de revelar sua crença de que definitivamente o Cristo cujas idéias ele pregava não estava tão longe. Ao contrário, bem ali, na fazenda do Zutza.