Capitulo I
Botu situava-se numa região realmente bravia, um sertão onde, vez por outra, estava-se às voltas com os problemas decorrentes da estiagem. O lugar apresentava particularidades que eram de chamar a atenção. Um rio, melhor dizendo, um regato, chamado Opá, mantinha cheio o maior lago da região, o Borrado. Nem mesmo nos períodos de seca deixava de correr, nem que fosse com um filete d’água. Esta, a particularidade que mais chamava a atenção dos que chegavam por aquelas bandas. O riacho tinha suas nascentes bem longe, no planalto. Suas águas saíam de baixo de três pedras gigantes, dispostas de modo triangular, e logo, poucos quilômetros adiante, precipitavam-se, em forma de cachoeira, para a planície, proporcionando, destarte, um belíssimo espetáculo. Seguiam, depois da queda, mansamente, num destino de poucas curvas, a maior delas, justamente, a que contornava o encontro entre a planície e o planalto, tão de forma abrupta distintos pela alta parede de quase trinta metros de altura. Além da já mencionada curva, outras duas mereciam registro, pelo fato de a primeira delas, voltada para a esquerda, permitir que o curso do regato se afastasse do local da exata divisão dos planos, adentrando uma faixa de terreno firme, e a outra, voltada para a direita, no limite entre essa parte firme e um pântano, seguindo daí para desembocar no grande lago Borrado.
Sem nenhuma dúvida, Borra-Patos, o homem responsável pela fundação da cidade de Botu deve ter escolhido o lugar, em face da posição estratégica que ele apresentava. Percebeu facilmente que se tratava de uma pequena área de terreno firme, de nada mais que cinco quilômetros quadrados, localizada no sopé da grande barreira, precisamente onde esta apresentava uma inclinação de quase trinta graus. Referido espaço ficava delimitado entre a barreira e o terreno pantanoso, oposto àquela, entrecortado pelo rio Opá. Em toda a extensão final da margem direita do riacho, a presença do já mencionado terreno pantanoso e, no final dele, tinha início exatamente o lago bastante grande a que Borra-Patos deu o nome de Borrado. Esse lago recebia as águas do riacho Opá e, no lado oposto, ressalvados os períodos de estiagem, escoava através do também pequeno rio Quereré-Timbó, que, por sua vez, após percorrer mais de quatrocentos quilômetros, lançava suas águas no rio que banhava a cidade de Divinópolis.
Ali, pois, no sopé da barreira, Borra-Pa-tos se fixou juntamente com as quinhentas e poucas pessoas que o acompanhavam, entre homens e mulheres. Tinham achado o que procuravam, depois de percorrerem centenas de quilômetros, vencendo aquele sertão bravio, despovoado. Naquele local, achou o fundador de Botu de lançar os fundamentos da futura cidade. Viu que aquele pé-de-serra, em que pese pequeno o espaço, se tratava de lugar estratégico. Tiveram de vencer o pântano para chegar à terra firme, após atravessarem o rio Opá, na parte em que este dividia o dito terreno em partes de tamanhos bastante diferentes. Era ali, portanto, o melhor pedaço de terra, nas proximidades do lago Borrado. E, como o propósito era começar a fundação de uma cidade, a partir da exploração de um lago, visando, sobretudo, a pesca, outro lugar seguro e firme não encontrariam, senão na base daquela ladeira enorme.
A cidade foi fundada, exatamente, no terreno firme, sólido, entre a barreira e a margem esquerda do rio Opá, mas, como não tinha para onde crescer, foi-se alastrando não na encosta da barreira, em face de sua íngreme inclinação, mas em cima, no platô, um terreno plano e de um clima agradável. O seu crescimento foi permitindo naturalmente que tudo quanto era de atividade comercial ficasse na parte de baixo, reservando-se a parte superior principalmente para a área resedencial.
Capítulo II
Distante de Divinópolis mais de quatrocentos quilômetros, Botu conseguira, nos últimos dez anos, uma conquista importantíssima. Por não contar com uma estrada de verdade, Botu se valia da única via de acesso entre ela e a cidade de Divinópolis: um caminho estreito que dava passagem primeiramente aos tropeiros e, nos últimos anos, a mais de uma dezena de camionetas que faziam o transporte de pessoas e de mercadorias. Era um verdadeiro sofrimento, sobretudo no período do inverno. Mas, enfim, não se sabe por qual milagre – milagre mesmo ou interesse econômico? – acharam de estender um ramal de linha férrea até Botu. Tudo porque, certamente, estavam de olho na produção de pescado do lago Borrado. Era a única explicação que se tinha para que tivessem construído aquele ramal de linha ferroviária. A população achou boa uma iniciativa como aquela. E dali em diante, tudo quanto era de transporte de pessoas e de mercadorias passou a ser feito de trem. Pena é que, depois de alguns anos, sobretudo nos períodos de estiagem, que eram constantes, o trem começava a rarear. No início era a presença de uma composição a cada semana. O trem chegava na segunda-feira e só retornava na terça. Era uma festa, uma alegria para aquele povo. Vivia isolado do mundo, distante do maior centro populacional e comercial – a cidade de Divinópolis; esta, uma cidade de verdade, com bons colégios, universidade, estação de televisão e tudo o que uma cidade moderna podia possuir. Botu, porém, nunca ia para a frente, não crescia. Ficava naquilo mesmo. Era vista apenas como a única abastecedora do mercado em matéria de pescado. Talvez unicamente por isso é que ela era lembrada. Pois cada vez que se comprava e se comia peixe a certeza era a de que referido produto só poderia ter vindo da cidade de Botu, do seu grande lago Borrado. É que a principal atividade desenvolvida em Botu era a da pesca, realizada no citado lago. Aliás, a distante Botu sequer seria de alguma forma notada, não fora a sua existência. Era um lago bastante piscoso. Ele, na verdade, fora o motivo que atraiu os desbravadores até aquela região. Sem nenhuma sombra de dúvidas, Borra-Patos e toda a sua comitiva prosseguiram viagem por aquela terra adusta, com o sentido efetivamente dirigido para a certeza de que era possível encontrar, como enfim encontraram, a região propícia para a atividade que tinham em mente desenvolver: a pesca.
Capítulo III
A cidade, quando de sua fundação, obteve logo o lançamento do plano de como deveria ser construída, naquele espaço mínimo, imprensado entre a barreira e a margem esquerda do rio Opá, de modo a se manter com o aspecto inicial. A visão dos seus fundadores, entretanto, foi muito pequena. Não pensavam que logo teria que se desenvolver para além daquele espaço, o que, efetivamente, aconteceu, em curto lapso de tempo, pois a atividade pesqueira não demorou a atrair muita gente para aquele lugar. Assim é que, de repente, ante a necessidade de crescimento, espremida naquele pequeno espaço de cinco quilômetros quadrados, a cidade se expandiu e ganhou uma outra parte, a superior, situada após a ladeira do Barril, num planalto de clima agradável, propício para a construção de casas residenciais.
Dessa forma, Botu apresentava a característica principal que a distinguia de qualquer outro centro urbano, que era a existência de dois planos distintos: a cidade alta e a cidade baixa.
Na parte baixa, a mais antiga, cuja existência coincidia com a fundação da cidade, situavam-se os prédios onde se desenvolviam as atividades de um modo geral. Atividades comerciais, civis, eclesiásticas, culturais, sociais. Tudo isso se concentrava nessa parte, entre a barreira e a margem esquerda do riacho. Do casario, destacava-se, evidentemente, a igreja de Santa Júlia, cujos fundos davam para o lago Borrado. Mais um pouco distante, e na mesma disposição, situava-se o prédio da prefeitura. Na seqüência da mesma linha, a estação ferroviária, um prédio de construção recente. Mais recente ainda, naquela parte da cidade, existia uma igreja, precisamente um igrejório, edificado sob os protestos dos moradores ainda remanescentes do tempo da fundação da cidade. Era o templo dos evangélicos, fruto do esforço de poucos protestantes existentes no lugar, construído no começo da ladeira da Pedra, ladeira essa que tinha seu início bem próximo às águas do grande lago Borrado, e mais alta do que a outra ladeira, a do Barril.
Capítulo IV
Naquele recanto do mundo, muito bom de se morar e de se viver, onde tudo se apresentava simples, era possível encontrar pessoas as mais interessantes. Sobressaía-se, sem nenhuma dúvida, a figura de Cândida, velha senhora, mulher batalhadora, há anos explorando a atividade comercial de vendedora de verduras, na feira de Botu, em substituição ao seu inválido marido, João Ventura, que ficava em casa, por conta de sua invalidez, juntamente com o seu neto, o Inacinho, e a empregada da família, Filadelphia, por todos carinhosamente chamada de Fila. Mas a característica principal de Cândida era a de ser a pessoa que vivia sempre a falar, a comentar, a noticiar tudo quanto acontecia de bom ou de ruim na cidade. Era a sua forma de ser e, por isso, tantas vezes chamada a atenção, quando, por algum deslize na vigilância que fazia de si própria, se excedia nos comentários que lhe traziam um gosto especial. Cândida era católica fervorosa, freqüentadora assídua da igreja Santa Júlia, matriz da cidade de Botu, onde, nas horas vagas, procurava ajudar o padre Messias. E por falar em padre Messias, vai a seu respeito o registro de que chegara em Botu fazia mais de quinze anos, de forma que, àquela altura dos acontecimentos, se podia dizer que conhecia de perto os seus paroquianos. Filho da Capital, terminou seu curso no Seminário, ordenando-se padre, logo embicando em direção à cidade de Botu, para a qual, mesmo não a conhecendo, fez questão de ser indicado. Falando em padre Messias, surge facilmente à lembrança a pessoa do cego Parnimas, pessoa sempre presente à igreja de Santa Júlia, mas presente do lado de fora. É que, não abandonando, jamais, seu chapéu de massa, olhos escuros e violão desafinado, punha-se, todos os dias, à porta da matriz, explorando a caridade pública. Finalmente, uma rápida passagem a respeito de Nicolas e de Atrias. Compadres há mais de quinze anos. O primeiro fora padrinho da filha do segundo. Coitada, viveu pouco tempo. Mas os dois, em que pese a morte da menina, não deixaram jamais de se considerar compadres. Ambos com grande parte de suas vidas mergulhada no lago Borrado, de onde, como bons pescadores, tiravam seu sustento, e, além do mais, serviam de verdadeiro exemplo para outros colegas de profissão, através da prática com que se lançavam ao trabalho, acumulada após tantos anos de pescaria, sempre no maior manancial da região, o grande lago Borrado.
Há muito mais personagens interessantes que podem ser citados. Ficamos, todavia, por enquanto, apenas nessa análise preliminar, dando realce à velha e querida e estimada Cândida, a mulher linguaruda da cidade de Botu, querida por todos os habitantes daquele lugar do fim do mundo.