A rua do Tambor fora transformada em passarela da folia de momo. Uma arquibancada bastante segura fora ali construída, ocupando ambos os lados daquela via tão conhecida dos botuenses. A grande armação de ferro tinha uma boa altura, com nada menos do que quinze degraus constituídos por tábuas que serviriam de assentos para os assistentes.
Pedro Honorato, o prefeito, investira alto. Apostava no sucesso que seria o carnaval de Botu, três anos após a tragédia que, em plena folia de momo, levara à morte, de forma misteriosa, cinqüenta e cinco botuenses.
– Tem que dar certo! – dizia consigo o prefeito, apreensivo.
No sábado, já se estava por volta das dezoito horas e não havia movimento de foliões como esperado. Arquibancadas com pequeníssimo número de assistentes, blocos carnavalescos sem o brilho da participação intensa de seus integrantes. E, então, o receio de que tudo não desse certo passou a tomar conta dos organizadores da festa. Apesar da campanha feita, no sentido de que a tragédia acontecida em passado recente não tinha como se repetir, o povo não deixou de todo a desconfiança. Afinal, o trágico acontecimento, em que pese esquecido – pois a cidade mudara em tudo praticamente – arraigou nos habitantes de Botu a precaução quanto à sorte de cada um. Na verdade, muitas pessoas haviam perdido familiares, na grande maioria crianças.
O prefeito contratara empresa de propaganda. Três meses antes do carnaval, emissoras de rádio de Botu, além da única emissora de televisão, transmitiam a campanha muito bem elaborada, que mostrava quão necessária era a realização da festa, para que a cidade, finalmente, se libertasse do receio de subseqüentes tragédias. Aquela que havia acontecido foi, sem dúvida, algo misterioso, mas, também, poderia ser explicada pela notória falta de condições morais e administrativas de quem, na época, se encontrava à frente da edilidade. Floripes, o então prefeito, só pensava nele. E, por cima de pau e pedra, fez por onde se organizasse aquele carnaval do infortúnio que levou Botu às lágrimas pela perda de cinqüenta e cinco habitantes. Realmente, clima não havia para aquela festa. Havia a seca que a todos atingia de maneira impiedosa.
Pedro Honorato, entretanto, foi ganhando um sorriso nos lábios, quando pôde ver, após a hora da Ave-Maria, a rua do Tambor tomada por uma multidão que manifestava a mais intensa alegria. Era a dança, o canto, o barulho dos instrumentos musicais tomando conta de tudo e de todos. Anteviu o sucesso.
Botu, que saíra da condição de lugar esquecido do resto do mundo, agora mantinha o nome lembrado pelo seu desenvolvimento social e econômico. Só faltava mesmo exportar o lado festivo do seu povo e o carnaval, para esse fim, era o melhor e mais rentável canal. Era só o que prendia Botu à realidade de seu passado. Mudara em tudo. E aquela apatia relativa à festa de momo era preciso acabar.
Mal, entretanto, ganhou força a animação dos foliões, o tempo mudou completamente. Nuvens negras começaram a tomar conta dos céus botuenses. A chuva intensa, verdadeira tempestade, se abateu sobre a cidade. Foi um festival de raios e de trovões nunca visto pelos habitantes do lugar. O vento forte começou a soprar, arrancando árvores e destelhando casas. O clima de festa, em questão de minutos, transmudara-se em apreensões, deixando em todos a sensação de que nova tragédia voltaria a desencadear-se. Será que, dessa vez, morreriam mais botuenses? O mistério, mais uma vez, estaria acontecendo?
E todos, então, passaram a recapitular tudo quanto tinha acontecido ali. O carnaval da tristeza com a morte de cinqüenta e cinco botuenses, a morte e a ressurreição dos compadres pescadores, a promessa de que a terra seria visitada, a visão estranha tida pelos compadres Nicolas e Atrias, o poder espantoso que o pescador Nicolas passou a demonstrar, a mudança radical da cidade, antes sem menor possibilidade de desenvolvimento e, agora, próspera, tudo isso, como a exibição de uma fita cinematográfica, foi objeto de avaliação por parte de quem se encheu, naturalmente, de temores, ante a possibilidade de nova tragédia, dessa vez claramente proporcionada pelas forças da natureza, com vento, chuva, trovões e relâmpagos.
A cidade, de repente, mudou. Em vez da agitação dos foliões decorrente da música, da bebida e da dança, o que se via era cada um correr para suas casas, para trancar-se. Apenas Ulyanna e Joyahana, mulheres de Nicolas e de Atrias, respectivamente, ficaram perdidas nas ruas, gritando feito loucas, à procura de seus maridos. É que, como por encanto, eles sumiram.
– Como é, seus maridos… de novo envolvidos em mistério?!
– Sim, prefeito. E queremos que faça alguma coisa.
– Chamem a imprensa. Dessa vez a coisa não vai ficar como antes. Não vai haver exploração de fatos. Ninguém vai tirar proveito algum. Haveremos de nós mesmos achar explicação para tudo o que acontece. Não precisaremos de estranhos intrometendo-se em nossas vidas. Basta que sejamos racionais.
Botu, agora, uma cidade arrasada. Ilhada. Não havia meios de comunicação. O fornecimento de energia elétrica tornou-se impossível. Os postes e a fiação sucumbiram à ação dos ventos e dos raios. O caos instalou-se na cidade em questão de horas. Foi preciso ajuda externa, em termos de provisão de alimentos. Isso, porém, ficou prejudicado, porque muitas barreiras caíram sobre a linha férrea, de modo a impossibilitar a chegada de qualquer composição à estação ferroviária da cidade. O mais perto que podia chegar era a uma distância de cinquenta quilômetros do centro. Dali, o transporte poderia ser concluído por meio da via terrestre. As estradas, entretanto, ficaram intransitáveis. Muita água e muita lama tomaram conta dos caminhos desde então muito precários. A comida, portanto, teve que ser transportada no lombo de animais. Voltava-se, destarte, ao processo de transporte de mercadorias utilizado no início da fundação da cidade.
Padre Albérico, em que pese seu pouco tempo à frente da paróquia, sabia das possíveis reações que o povo poderia tomar e, por isso, interveio com bastante energia. Era preciso que aqueles fatos desastrosos não fossem novamente tidos pela população como uma coisa do céu, um acontecimento que imprimia castigo de Deus. Estava bem a par de tudo quanto acontecera na época do mistério e da tragédia havidos anos atrás, quando o padre Messias se comportou de forma flagrantemente interesseira, pessoal.
Também a realidade ali era outra, pois a cidade contava com faculdades, estações de rádio e de televisão. Com dificuldade, então, a imprensa foi agindo, de modo a fazer chegar à distante capital as notícias sobre a tragédia que se abatera sobre Botu.
E foi pela imprensa, muitos dias depois da tragédia, após recuperado o sistema energético da cidade, que Elvego veio a tomar conhecimento do trágico ocorrido. Lamentou profundamente. Mas, viu que nada podia fazer, nem mesmo deslocando-se novamente ao lugar. Também, como já se disse, não era seu costume retornar aos lugares que conhecia. Quanto ao padre Messias, também veio a ser informado, mas ficou inteiramente indiferente, como se nada mais daquele lugar lhe despertasse o menor interesse.
Botu, em face das perdas enormes, ficou uma cidade pobre, embora bem maior do que há três anos. Quando tudo se tornou normal, voltando ela a ostentar condição inferior à da cidade de Divinópolis, os compadres, que haviam sumido misteriosamente, reapareceram, passando a levar uma vida de maneira natural, como se nada de mais tivesse acontecido.
– Que coisa estranha! Misteriosa mesmo!
– Pode-se dizer que vivemos terrificante mistério em Botu.
– E que é possível outros acontecerem.
– Não se pode, efetivamente, descartar essa possibilidade.
– Terá Borra-Patos, o nosso fundador, alguma coisa a ver com essas desditas?