VIAGEM

Sinto que se as lágrimas caírem, eu passarei a me sentir melhor. Pois bem. Depois de estar consciente disso, por que é que eu não choro? Não deveria jogar de lado o meu orgulho masculino, desprezar o que se alardeia sobre a fortaleza do meu sexo? Só as mulheres é que podem chorar? Que bobagem! Pois eu sou homem, induvidosamente homem e quero chorar e vou chorar. Vejo bem distante de mim o preconceito de que o homem não chora. O homem pode chorar, sim! E isso em nada vem abalar a sua masculinidade. Logo, por que não choro?

Ah, que bom que eu chorasse! Difícil para eu conseguir é a presença em mim de verdadeiras peias que me controlam as engrenagens do equilíbrio e da resignação. Como, pois, eu queria ter forças para retirar essa parede compacta que me impede a passagem das lágrimas! E fico, então, a clamar: corram, ó lágrimas. Tragam para fora de mim as amarguras que me dominam e me abatem. Não se esqueçam de que, ao brotarem nos meus olhos, devem sacudir-me e agitar-me, para que eu me sinta qual ser verdadeiramente alado. Sim, é preciso que eu fique alado, mesmo que imaginariamente. Para quê? Deixem de lado esta pergunta. Que venham a mim essas asas. Tragam-na, pois eu quero, eu preciso voar alto, bem alto, mais alto que o condor. Que voe, pois, a minha imaginação, enquanto eu, nessa realidade tangível, vou por aqui ficando, sujeito às influências irrevogáveis das terríveis leis naturais que consomem tudo com o passar devorador do tempo.

Obrigado. Ah, que sensação de felicidade, de paz, de muito contentamento! Vejo-me livre, solto, aqui de cima dessas alturas que são deveras estonteantes. Ó, lágrimas, onde está e por onde anda essa montanha que sou eu, cuja estrutura é como se fora de matéria volátil? Sim, cá de cima eu percebo claramente a sua pálida fortaleza. Ó, meu corpo, como és frágil! Chego a sentir vergonha de ti. Quando penso nos muitos cuidados que tive para contigo… para quê? Para se preocupar com o que é hoje e não é amanhã? Eu, realmente, como ser real, mas, na verdade, uma moradia transitória, um abrigo inseguro. E as “oficinas” nas quais eu tanto estive contigo? Agora vejo mesmo que elas só fazem remendos que se arrebentam inevitavelmente, mais dia, menos dia. E mais tarde? É o baque surdo, final, previsível e em dia incerto, porém. És tu, meu corpo, que começas a te deteriorar, para que dentro em pouco já não mais sejas. Ah, como eu me envergonho de ti! Como és fraco! Fica, portanto, aí. Aí onde estás. Não pretendo mais voltar para a tua sombra, para o teu abrigo. Esse é o meu perpétuo desejo. Fica tu aí errando nessa terra maldita. Vai de cidade em cidade. Sofre as amarguras em cada uma delas por onde passares. Desfruta dos falsos prazeres que há por aí. Eu de cá estou vendo a realidade de tudo isso. São tudo coisas fúteis, passageiras, enganadoras. Fica, finalmente, com essas palavras derradeiras. São elas as últimas que de mim ouvirás. A essa altura, já estou longe, bem longe, numa viagem sem retorno. Conduzido pelo vento da imortalidade, eu viajo numa confortável nave de pó, e dentro dela eu vislumbro a maravilha do universo sem astros e assim vou caminhando, cada vez mais, ao encontro do que mais importa, ELE, o responsável por tudo que me é agora invisível e que, mesmo assim, eu vejo; ELE, cuja névoa que lhe envolve o ser haverá de me restituir as forças do bem que desgraçadamente eu perdi por aí…