SOMBRAS MORTAS

A noite apresentava um aspecto assombrador. O susurro do vento nas largas frestas da janela parodiava u’a música louca. Vez por outra, cheguei a ouvir gritinhos infernais. Na rede onde me achava deitado, eu sentia um vento frio, diferente, pois o seu deslizar por baixo de mim parecia duas mãos acariciadoras, com a diferença de que estas se mostravam muito ásperas, a ponto de eu sentir que estava sendo arranhado.

Abri os olhos. Não estava sonhando.

Achava-me numa das dependências de uma casa antiga que pertencera ao meu avô. Estava como que perdido dentro daquele casarão. Tinha ele um modelo bem antigo. O tempo encarregara-se daquele aspecto de sujeira que se mostrava presente em todas as suas paredes.

Como não havia luz elétrica, estava me valendo de um pedaço de vela que tia Anastácia me fornecera. E diante daquela situação, assombrado, fiz passar uma das mãos pelo assoalho, cujo cimento era de uma frieza enorme, à cata da caixa de fósforos que eu pusera ao meu lado, de modo que eu pudesse alcançar. O rir de uma coruja cortou aquele silêncio de mosteiro. O medo atingiu até dentro da minha espinha.

Suspirei, meio aliviado, quando o pequeno lume do fósforo brotou no negrume da escuridão que me cercava. Encostei-o à vela e, logo, o meu quarto ficou tomado de uma claridade fraca e tremeluzente. Recobrei o ânimo. Quis logo esquecer que o medo me dominara há pouco. Mas o meu desejo foi em vão. Ao olhar para o pedaço de vela, vi que este já havia sido derretido pela fogueira que, àquele altura, somente ardia devido ao fato de o fio ainda se achar molhado pela parafina que perdera a sua consistência. Procurei pensar em coisas que me fizessem fugir do medo que me estava dominando. Debalde. Foi quando aconteceu o pior. À proporção que o fogo que me iluminara ia diminuindo a sua intensidade, uma outra luz se ia tornando viva, diferente, bem acima da parede do meu quarto. Gelei. Tentei envolver-me no corbertor. Procurei levantá-lo, para cobrir a minha cabeça. Não consegui. Algo já me dominara a essa altura. Já não era o dono do meu querer. E tive que ficar olhando aquela luz que, quanto mais eu a olhava, mais aumentava a sua clareação. Julguei a princípio que se tratasse da lua ou mesmo de uma estrela muito brilhante. Mantive esse pensamento por alguns minutos, mas depois eu verifiquei que não podia ser nem a luz, nem qualquer estrela. Fiquei a refletir. Que luz seria aquela? E por que estava ela bem acima da parede do meu quarto? Mal terminei de interrogar-me, duas mãos, cujas unhas de tão grandes chegavam a ficar encurvadas e todas elas paramentadas de cabelos pretos e luminosos, vinham para o meu lado. O pior de tudo era que eu só via as mãos. Nada mais. Nem braços, nem cabeça, nada. Eram só as duas mãos. Duas mãos que vinham para junto de mim. Que farei eu nessa situação? – indaguei-me. Não podia mais me dominar. Achava-me incapaz de movimentar um dedo, uma perna. Não sei como me veio à mente uma lembrança. Dissera-me mamãe que o cordão de São Francisco era muito poderoso. Livrava o cristão de qualquer situação dificultosa. Não sei mesmo como pude chegar a me lembrar desse conselho da minha mãe. E não sei também como os meus nervos permitiram-me os movimentos necessários para retirar o cordão que trazia no meu pescoço. O certo é que urgia mesmo que eu assim fizesse, pois as mãos estranhas estavam já roçando os meus cabelos que tinham saído do seu lugar, tão arrepiados estavam, tamanho era o meu medo. E então se deu o enlaçamento. Joguei o meu cordão de São Francisco, de modo que pudesse prender aquelas duas misteriosas mãos. Percebi que elas reagiram, quando se viram envoltas pelo cordão. Mas logo foram dominadas. Tinha mesmo força o presente que mamãe me dera.

A luz em cima da parede agora possuía mais intensidade no seu clarão. Todo o quarto onde eu me encontava estava claro. Dava perfeitamente para se achar uma agulha, por menor que ela fosse. Assim, uma vez que as trevas se foram por completo e me vi num recinto tão iluminado, foram-me voltando as energias da coragem. E depois de poucos minutos, recobrei toda a minha disposição. Passei, por isso, a encarar o problema com naturalidade.

“- Que serão essas duas mãos?” – perguntei-me corajosamente.

Um alarido tomou conta da casa. Uma voz, a princípio rouca e fina, foi chegando aos meus ouvidos. Vinha do alto da parede, justamente do lugar de onde irradiava toda aquela luz que sufocava o ambiente onde eu estava. Parecia alguém como que ofegante. Assim era a voz que chegava aos meus ouvidos. Uma pontinha de medo já se fazia medrar novamente dentro de mim. E os meus ouvidos registraram palavras que eu entendi perfeitamente. Era a estranha voz que emitia o seu desejo. Um desejo que era ao mesmo tempo uma ordem: queria que eu subisse na parede, que eu fosse até onde estava a luz. Fazia-me mesmo uma exigência. Não devia eu recusar a sua ordem, pois do contrário sair-me-ia mal. As mãos agora já não estavam sobre a minha cabeça. Desciam pelos meus magros e longos braços, até alcançarem as minhas gélidas e suadas mãos. Aquelas estranhas mãos fizeram um impulso brusco e, quando menos esperei, estava bem em cima da parede do meu quarto. Foi por aqui então que essas misteriosas mãos, apesar de estarem enlaçadas, começaram a enfiar as suas longas e horripilantes unhas na parede. O barulho da caliça, bem como dos pedaços de tijolos que caíam, encheu o quarto. Não demorou muito e eu vi que já não mais havia parede: as duas mãos tinham-na demolido por completo. Mas uma coisa estranha me chamava a atenção. Eram dois objetos. Dois pequenos objetos. Já estavam eles bastante enferrujados. E este aspecto fazia-me logo chegar à conclusão de que se tratava de coisa muito antiga.

A esta altura, as mãos ficaram quietas. Mas a voz, cada vez mais rouca e fina, novamente voltou a chegar até a mim. Pedia-me que eu a libertasse. Queria agora ficar livre. Jurou que nunca mais viria aborrecer ninguém. Soltei-as, então. E, à proporção que eu as ia soltando, a luz que enchia o meu quarto se tornava cada vez mais opaca, até que desapareceu por completo, ficando eu na completa escuridão de ainda há pouco.

Não sei se por minhas pernas cheguei até a minha rede. O que eu sei muito bem é que ali cheguei e o sono me tomou de repente. E dormi. Dormi muito.

                   – Chico, Chico, abre. Abre, homem de Deus – era a voz da minha tia Anastácia.

Abri os olhos. Era dia claro. Olhei ao meu redor. E vi tudo desarrumado. Muito diferente de quando eu me deitara. A parede que dava para a cozinha, esta não mais existia. Que coisa estranha! E só a custa de um pequeno esforço pude me lembrar do que havia acontecido comigo durante a noite.

– São onze horas, Chico. Abre esta porta, menino.

– Já vou, tia.

Cheguei até junto da minha tia e esta ficou toda tomada de espanto. Tinha eu a fisionomia muito abatida. Pedi que ela entrasse. Que fosse até onde eu estive dormindo. E titia desmaiou, quando viu a demolição total da parede. No canto esquerdo do quarto estavam dois pequenos cofres. Tomei-os. Abri-os. E eis que umas trinta pequenas barras de ouro enchiam a minha vista. Acabara, pois, de receber um tesouro. A tal achado, não é este o nome que se lhe dá?

E todos nesse dia, na fazenda, me elogiaram a coragem. Tinham-me mandado para ali, já sabendo que naquela casa ninguém conseguia dormir e logo se retirava.

– Você foi corajoso, heim?

Só Deus sabe as dificuldades por que passei. Não foi nada fácil. Disse em seguida tudo o que me aconteceu. Falei da luz, das mãos, da voz. Falei do cordão de São Francisco. Ninguém me acreditou a princípio. Enfim, todos ficaram me dando crédito: a parede demolida e os dois cofrinhos eram, não podiam deixar de ser, as provas da situação crítica por que eu passara naquela noite no velho casarão que pertencera ao meu finado avô.