DOIS PUNHAIS E UM MISTÉRIO

O sempre imiscuir-se onde não era chamada continuava a ser a coisa de que mais ela gostava, mesmo depois de haver sofrido o desastre que lhe tolheu o poder movimentar-se por si mesma de um lugar para outro: foram-se-lhe as pernas.

Em sua cadeira de rodas vivia ela agora. Esmeraldo, o garoto que a ajudava nas suas andanças, empurrando-lhe a cadeira, já se acostumara às suas manias. Havia mais de dois anos que para ela trabalhava.

Sozinha, sem família, vivia essa mulher numa casa que era uma verdadeira mansão. Avara por demais, não se incomodava com a poeira e as teias de aranha e os morcegos que tomavam conta dos muitos compartimentos e móveis de um estilo bem antigo, os quais, pelo seu aspecto imundo, causavam náuseas às raríssimas pessoas que para ali iam visitá-la, ou mesmo tratar de assuntos particulares.

Mordomo há quase quinze anos, Genaro era, verdadeiramente, a pessoa que ali tudo fazia. Ia ao mercado todas as quartas-feiras. Lá comprava os gêneros alimentícios de inferior qualidade com os minguados reais que lhe entregava a sua senhora.

Soubera dona Ismália que o seu vizinho, o doutor G., andava muito preocupado com certos acontecimentos misteriosos, registrados no interior da sua casa. Tratava-se de um fenômeno que deveras despertava a curiosidade de qualquer cristão. Doutor G. não queria que tal mistério chegasse ao conhecimento público. Apenas mantivera, sobre o assunto, uma ligeira conversa com Genaro.

– Você fala mesmo a verdade, Genaro?

– Perfeitamente, dona Ismália. Juro pela alma da minha finada Júlia. Juro.

– Está bem. Amanhã à noite você me levará até à casa do doutor. Como você disse, ele fará mais uma sessão amanhã, noite de Natal. Não conte nada a ninguém.

Não era preciso que dona Ismália fizesse tal pedido. Ela conhecia Genaro muito bem. Fiel mais do que ele não era possível encontrar.

Meia-noite, registrou o relógio bem antigo da espaçosa sala de espera. Nela encontravam-se dona Ismália e o seu mordomo. Tinham algo para fazer. Até então estavam de olhos no mostrador do relógio. Contavam os minutos.

A hora era chegada.

Os gonzos da enorme porta principal rangeram. Abriu-se apenas uma parte. Daria muito bem para dar passagem à cadeira de rodas. Por essa hora, o pequeno Esmeraldo dormia. Dona Ismália achava que aquilo não era trabalho para crianças. E não era mesmo.

– Genaro, você sabe o que deve fazer. Não faça o menor ruído. Quero pegar de surpresa. Não acredito que o doutor G. tenha falado a verdade.

Aproximaram-se. Ali na grande sala de espera estava o doutor G., roupão preto muito grande que chegava a lhe cobrir os pés. Velas, muitas velas acesas. Passaram, agora, dona Ismália e Genaro para a janela que, entreaberta certamente por descuido, permitia se ver o que acontecia no interior da sala. Viram, então, o doutor de joelhos e de mãos postas. Batia, sem cessar, a larga testa no assoalho. As pancadas eram fortes. Fortíssimas. Qualquer mortal ter-lhe-ia esmagada a cabeça, agindo como fazia o doutor. Gotas de suor escorriam por sobre a sua fronte. Esperavam os curiosos que o sangue espirrasse a qualquer momento. Isto, porém, não acontecia.

Uma voz estranha começou a ser ouvida. Era um alarido infernal. Gritos portadores de profunda amargura. Dona Ismália voltou-se, então, para trás. O que se passava ali estava em muito lhe interessando. Queria, por isso, que Genaro a colocasse lá, na sala. Desejava assistir àquelas cenas de perto. O mordomo, todavia, já tinha desaparecido. Assustara-se com a estranheza do que estava presenciando.

Mesmo por ter ficado só, nada temeu a inválida e intrometida dona Ismália. Aquilo, como se sabe, em nada lhe dizia respeito. Não fora chamada para aquela cerimonia. E que cerimonia! Curiosa que era, no entanto, ali se encontrava. Queria tornar-se sabedora do que se passava com o vizinho.

Agora, sim, começava dona Ismália a encher-se de temor. A cadeira, sem que ela pedisse a ninguém, começou a movimentar-se. O rumo que tomava era a porta da casa, a casa muitíssimo amedrontadora pela negrura das suas paredes. Olhou a anciã para trás, para os lados. Não viu ninguém. Quis gritar. Não pôde. Perdeu o controle de si mesma. Onde estaria Genaro? Ele sempre lhe foi fiel. Não iria compreender nunca o fato de havê-la deixado só, abandonada, naquela situação que só agora ela sentia, na verdade, estar-lhe causando perigo.

E a cadeira prosseguia. As portas foram-se abrindo num mover-se pachorrento. Pobre da dona Ismália que caminhava para o que não lhe era ainda, àquela altura, possível discernir. Qual seria o desenlace de tudo aquilo? Sua mente fazia conjecturas mil, enquanto a cadeira adiantava a sua marcha, aproximando-se cada vez mais do local antes motivo de sua curiosidade, agora causa dos temores de que estava possuída. Tudo era silêncio. Tudo era esquisitice. Tudo era sobrenatural. Sim, sobrenatural. Duvidosa não mais se encontrava dona Ismália. Já sabia ela para o que estava se encaminhando. Ignorava, no entanto, aquilo que efetivamente haveria de acontecer a sua pessoa.

Não demorou muito para que ela viesse a saber. Soube e de muito pouco tempo dispôs para guardar na memória o conteúdo do fim trágico que o destino lhe reservara. O doutor enfiara-lhe dois grandes punhais no peito esquerdo.

Na manhã seguinte, Genaro voltaria cautelosamente ao local. Explicou a Esmeraldo que a sua senhora havia saído. Estava em casa de um parente dela. Com passos silenciosos, Genaro foi-se aproximando do local que, na noite passada, havia servido de cenário para um acontecimento que lhe causara imenso pavor. Arregalou os olhos diante do que estava agora percebendo. Um raio de sol pousava por sobre a testa da sua senhora. Todo o seu tórax estava banhado de sangue coagulado. As moscas faziam já a sua festa. O rosto da velha senhora era de uma palidez assombrosa. Estava morta a pessoa para quem ele trabalhou durante muitos anos. Que fazer? Chamar a polícia? E se ela desconfiasse de que tinha sido ele o autor do crime? Melhor seria fugir.

Esmeraldo ficara só na velha mansão. Começava já a não compreender o comportamento daqueles junto aos quais vivia. Dona Ismália que dificilmente demorava fora de casa, fazia já três dias que se achava ausente. E Genaro? Que era de Genaro?

Passaram-se três dias mais. A graveolência proveniente da decomposição carnal estava a essa altura bem desenvolvida. Chegara ao olfato do menino Esmeraldo. Aquilo incomodava-o. Intrigado com aquela fetidez, resolveu investigar. Depois de vasculhar a mansão onde morava, só lhe restava, agora, a vizinhança. Começou, então, pela casa do doutor G., a qual se encontrava trancada. Empurrou o velho e pesado portão. Estava apenas encostado. Não precisava anunciar-se, admitiu. Não eram vizinhos? E embicou em direção a casa.

– Você está brincando, menino.

– É verdade, meu senhor, é verdade, senhor delegado. Pura verdade. Eu levo o senhor lá.

A polícia fez todas as investigações. Foi, também, certificada do desaparecimento inexplicável de Genaro. Ele, então, o primeiro suspeito para a polícia.

No Instituto de Polícia Técnica, ficaram os instrumentos do crime e o corpo da infeliz senhora. Fizeram-se todas as análises. Evidentemente, nos dois punhais estavam registradas impressões digitais. Restava, agora, fazer um estudo comparativo. Procuravam no arquivo a ficha de Genaro, quando se teve a notícia de que ele havia sido preso.

Finalizadas todas as investigações, concluiu-se que as impressões descobertas nos dois punhais eram de outra pessoa, e não de Genaro. Mas a polícia, porque viu na sua fuga a sua implicação no caso…

– Ela me pediu… eu levei.

– Há muito tempo que esse doutor mora nessa casa?

– Não. Havia coisa de uma semana que ali chegara.

– Que sabe mais?

– Que ele queria matar era a mim…

– ???

– …contara-me estórias. Coisas estranhas que aconteciam na sua casa. Pensava ele com isso que me atraía. A vítima iria ser eu, não dona Ismália. Coitada.

– E então você, para se livrar, levou a pobre mulher inválida…

– Não. Não. Foi ela quem me pediu.

– E levou-a sem preveni-la dessas coisas estranhas que lá aconteciam?

– Não, não senhor. Não é bem assim. Contei-lhe tudo quanto me segredara o doutor.

– E então?…

– Ela interessou-se pelo caso e me pediu que a levasse lá. Não adiantou a minha tentativa de dissuadi-la.

– Como se chama mesmo esse doutor?

– G., doutor G.

– Doutor em quê?

– Não sei. Nunca soubemos.

A polícia, no entanto, já havia identificado o doutor. Tratava-se de um advogado rico que não mais exercia a profissão e que vivia, por isso mesmo, esquecido, esquecimento esse mais em razão das suas esquisitices do que propriamente do fato de não exercer o seu mister. Não falava com ninguém. Não tinha amigos. Fazia da solidão o seu esporte preferido. Era, contudo, muito chegado a viagens. E, por falar nisso, a polícia tomou conhecimento de que ele, no momento, se encontrava ausente. Viajara. Estava na Europa, para onde fora em viagem de recreio.

Comprovada que ficou a ausência do doutor G., mesmo não havendo identidade das impressões digitais descobertas com as do mordomo Genaro, a polícia insistia em não ver outra pessoa, senão o próprio mordomo como tendo sido o verdadeiro autor do assassinato em questão. A verdade é que as circunstâncias diziam-no ser o responsável por aquele homicídio.

O advogado de Genaro exigiu u’a melhor investigação. Não importava que o doutor estivesse na Europa, como ficou esclarecido. Podia ser falso o que conseguiu obter a polícia junto à Empresa Aérea. Podia ser tudo isso um recurso para o tal doutor G. mais tarde comprovar o álibi. Fosse feita, também, a comparação das impressões com as do doutor. E o pedido do advogado de Genaro foi levado em consideração.

O enigma foi elucidado ( em parte, mas o foi ), quando, pelo estudo comparativo que encetaram os técnicos da polícia, chegou-se à conclusão de que aquelas impressões eram realmente do doutor G.. Estava assim descoberta a autoria do crime. O dizer-se viajando foi logo interpretado pela polícia como sendo mesmo um recurso para a posterior constatação do álibi, como argumentara o advogado do mordomo.

Procurou a polícia contactar os países mais importantes na busca do criminoso. Para ela, o doutor não se homiziara em outro lugar. Estava era por ali mesmo. Mas, como lhe cabia investigar…

De França, chegou a notícia de que realmente um tal doutor de nome G. desembarcara em Havre. Esta notícia veio, assim, contrariar todas as deduções que a polícia fizera, admitindo encontrar-se o criminoso na mesma cidade onde praticara o delito. E a fonte de informação estrangeira adiantava que iria ser feita u’a melhor investigação.

Dia seguinte, chegou o seguinte comunicado da polícia francesa: “Vítima desastre faleceu vg Havre vg dia Natal vg Dr. G. pt”

Essa notícia chegou, no dia em que se comemorava a Epifania…