COISAS DA VIDA

Ainda não passava das duas horas da madrugada. O clarão lunar pairava por sobre a estrada que, em alguns trechos, aparecia coberta pela sombra das árvores. Não havia um pé de gente. Fazia frio e o vento buliçoso remexia a folhagem das árvores. De quando em vez, uma folha tombava aqui, outra ali e repousava sobre a pedra fria do calçamento.

Frederico seguia o seu caminho. Um casacão preto o envolvia até o pescoço. Tinha as mãos mergulhadas no bolso do seu sobretudo. Ia pensando na sua Eulália. Deixara-a, não fazia vinte minutos. Foi uma noite muito divertida. Nunca festejara um Natal tão cheio de felicidades. Ao lado de Eulália, a sua satisfação era imensa. A cada instante, chegavam colegas seus e o cumprimentavam, dando-lhe parabéns.

Assim pensando, ele prosseguia na sua caminhada. Não tinha pressa de chegar. Também não havia trabalho no outro dia… Alegria, só alegria tomava-lhe a mente, fazendo-o esquecer de todo e qualquer outro assunto do seu interesse.

– Um momento – assim falou um estranho que vinha em direção contrária e estacionou bem perto de Frederico, sob uma árvore gigante – se não me engano, falo com Frederico, o filho de dona Lalá?

– Exatamente – respondeu Frederico, meio desconfiado, diante do desconhecido, na rua deserta, em face da madrugada já alta.

– Você me perdoe, mas…


– Mas o quê? Houve alguma coisa?


– Sim, houve. E espero que você já tenha percebido quem eu sou.


Frederico se aproximou bem, investigou e respondeu:


– Claro. Não é o senhor Jacinto, dono do bar que fica perto do cinema?


– Certo. E eu… – não conseguiu continuar.


Frederico nem percebeu as reticências do seu interlocutor e, invadido como estava pela sua alegria, esqueceu-se de que Jacinto tinha alguma coisa para lhe dizer, conforme manifestara.


– Seu Jacinto, não sabe o senhor como eu estou feliz…


– Mas deixe essa felicidade de lado. Você precisa me ouvir.


– Não, não. Deixe eu lhe contar. Veja, seu jacinto, como o dia de hoje foi belo. Celebramos o Natal: dia de paz, de amor. Amor sem fim. Amor, uma palavra doce. Amor, Eulália. Ó, seu Jacinto, Eulália, o senhor a conhece?


– Sim, eu conheço, mas, por favor, escute-me. É importante…


– Não há nada mais importante do que eu passarei a lhe narrar. Foi uma festa maravilhosa. A princípio, fiquei, confesso, meio encabulado. Procurava palavras para dizer e não as encontrava. Mas, busquei o lindo rosto de Eulália, lancei os meus olhos nos seus e o sorriso que ela esboçou para mim deu-me forças e, logo, as palavras saíram desembaraçadas. Pouco tempo depois, ouvi um sim. Um sim de que jamais me esquecerei. Estava selado o nosso noivado. Fiquei tonto de alegria. Caímos na festa. Festejamos não só o nosso noivado, mas também a magna festa da cristandade. Jamais esquecerei este dia.


– Basta, Frederico. Deixe eu falar, deixe.


– Espere, homem. Não vê que eu estou tomado de alegria e que preciso extravasá-la? Ou será que o senhor não está gostando da minha narrativa?

– Estou sim, Frederico. Mas é que eu preciso… preciso…

– Precisa de quê?

– Eu preciso informá-lo de um acontecimento muito… muito…


– Importante, não é? Pois fique sabendo que nada para mim é mais importante do que o acontecimento desta noite na casa de Eulália. Não pode haver uma alegria maior. Estou felicíssimo.


– Ora, Frederico, também não é de alegria que eu quero lhe falar. Eu sinto muito. Não queria ser o primeiro a lhe contar, mas coincidiu de eu me encontrar com você e… tenho que lhe dizer…


– Dizer o quê?


– Que a dor a consumiu.


– A dor?


– Sim, a dor.


– Mas… quem? Quem?


– Você sabe. Ela sempre tinha esse incômodo. Foi uma coisa de repente. Passei por lá não faz quinze minutos. Não pensei encontrar você aqui.


– Não, não é possível!


– Acredite, meu rapaz, é verdade, lamentavelmente.


E, com as mãos escondendo-lhe o rosto:


– Não, mamãe, não! Minha querida mãe. Logo hoje. Um Natal… o meu noivado… Alegria, alegria e agora, ó meu Deus, uma tristeza dessa! Que infortúnio! A minha mãezinha. Mamãe, mamãe, eu a quero muito. Quero… – e não continuou, porque começou a gritar e chorar como um louco.


Jacinto também não suportou. Logo retirou o lenço do bolso e começou a enxugar as lágrimas que lhe vertiam dos olhos já vermelhos do pranto que derramara, junto à defunta, na casa do desditoso rapaz. As lágrimas de agora eram provocadas pela desventura de um rapaz tão bom como era o Frederico.


Momentos depois, puseram-se a caminhar. Seguiam a trajetória que levava ao lugar onde, inerte, repousava o corpo da velha senhora que havia falecido em meio às alegrias de um Natal e, coincidentemente, no dia em que seu filho ajustara o seu noivado.


A rua continuava como antes. Só os dois personagens que, tomados de tristeza, tornavam mais triste ainda aquela noite fria com ventos que sopravam como o ruído triste de uma música fúnebre. No alto, a lua persistia com o seu brilho acentuado. E, sobre a estrada, seguiam Frederico e Jacinto. Caminhavam com passos lerdos. Pouco a pouco iam avançando. Penetraram numa alameda. A lua, por causa das árvores dispostas lateralmente e bem próximas umas das outras, ali perdera a sua clareação. E os dois se perderam nas sombras escuras.