A VISAGEM

O carro – um automóvel Ford, cor preta, ano 1946 – apareceu no começo da rua mal iluminada, e veio, lentamente, se aproximando do centro da cidade, num ziguezague que chamou a atenção de todos. Parou, finalmente, na praça, ao lado da matriz, à hora da missa das sete, e todos os que, costumeiramente, optavam em permanecer na frente da igreja, conversando, durante o ofício divino, se sentiram atraídos por aquele fato fora do comum, logo passando a cercar o automóvel. Viram, então, que se tratava do carro de Abel de Toninho, em cuja direção ele se encontrava, mais branco do que uma vela, completamente desmaiado. Imediatamente, tiraram-no de dentro do carro e o puseram, estendido, na calçada, quando então alguém já providenciara um pano umedecido de álcool, que foi sendo aplicado em leves massagens em seu pulso e em sua fronte. Tal procedimento fez com que recobrasse os sentidos em poucos instantes.

– Você se sentiu mal. Deve ter sido alguma comida que ofendeu. – observou um dos circunstantes.

– Nada disso, nada disso… acho que é melhor eu não contar nada agora. Ninguém poderá me acreditar. Levem-me para casa, por favor.

Dia seguinte, Abel de Toninho já completamente refeito daquela situação dificultosa, fora, como sempre o fazia, à bodega de Manoel Tilane, local onde, à boca da noite, se reuniam os fregueses mais assíduos. No recinto, todos falavam sobre o acontecimento da noite anterior. Achavam-se dominados por uma curiosidade. Queriam saber, realmente, o que acontecera com o brincalhão Abel.

– Calma, amigos, eu conto, agora não sei se vocês vão acreditar…

– Já conhecemos a sua fama de mentiroso, rapaz – adiantou impaciente um dos presentes.

Abel, irritado, quis partir para esmurrá-lo. Contiveram-no.

                        – Posso ter fama de mentiroso, sim, mas, desta vez, eu passei por uma situação realmente difícil. Prá início de conversa, se duvidam de mim, vão até à garagem onde está o meu carro. Vejam o banco de trás. Vamos ver?

E foram todos à casa de Abel.

No semblante de cada um, o registro da estupefação. No banco traseiro, visivelmente, do lado direito, a presença de uma cor diferente. O lugar estava como que tivesse sofrido a compressão de um corpo estranho. O revestimento de veludo perdera a sua maciez e cedera lugar a uma superfície áspera.

– Rapaz, tem coisa estranha nisso…

– E você viu coisa estranha nenhuma!? – atalhou Abel – Queria que você estivesse na direção sozinho como eu.

– Como assim?

– Saí de Maracaípes era por volta das 18:3O horas. A noite de ontem estava bem escura mesmo, vocês devem lembrar. No trecho da descida de Nicota, bem na curva acentuada, já próximo ao mourão da porteira da fazenda do Dr. Birote, lá estava o negrão. Mais preto do que a noite. Bem trajado. Sorridente. Dentes que de tão brancos refletiam a luz do carro. Estendeu o braço. Solicitava-me uma carona. Eu, que não sou tolo, não ia era parar ali, um local praticamente deserto. Segui viagem, na certeza de que não estava cometendo nenhuma falta por ter deixado aquele cristão ali, sozinho. Ocorre que, três ou quatro quilômetros adiante, quando passava pelo denso canavial do Dr. Jovito, após novamente uma outra curva e justamente naquela subida onde a estrada se apresenta um pouco esburacada, quem eu vejo? Novamente aquele mesmo negro. Do mesmo jeitinho de poucos momentos antes e também pedindo carona. Pensei, então, comigo: estaria eu enganado? Duas pessoas iguais? Prossegui a viagem, quando, novamente, após uns cinco quilômetros, já bem próximo aqui de Itabaúba, novamente o mesmo negrão se posta na lateral da estrada, pedindo carona. Aí, amigos, arrepiaram-me os cabelos. Mesmo assim, mantive-me firme na direção do carro. A pior cena, porém, é que estava ainda por vir. Aconteceu que, quando eu passava por sobre a ponte do rio Tauá, deu-me na cabeça a vontade de olhar para a estrada que ficara para trás, para ver se via algum vestígio daquele intrigante personagem, e eis que dei de cara com o mesmo negro sentado no banco traseiro, sorridente como sempre. Gelei. Tremi. Senti-me tomado de pavor. Não sei como consegui chegar até a praça. O resto vocês já sabem.

– Desta vez você exagerou, heim Abel?

Ficaram os amigos se entreolhando com ares de interrogação. Terá sido mesmo verdadeira aquela estória? Abel que os perdoasse, mas que ele era o maior conversador e criador de estória, isto ele era. Ficaram, então, de amadurecer o assunto, conversar com mais pessoas. Passaram mesmo a acreditar naquela estória, no entanto, quando, conversando com dona Tiana, dela tiveram o mesmo relato que Abel lhes fizera. É que, como sabiam, Abel podia mentir para todo o mundo, menos para dona Tiana, sua mãe, por quem ele nutria o maior respeito e admiração e sempre se lhe revelou de uma sinceridade profunda, incapaz de lhe faltar o mínimo de verdade.