Caminhar para o além, eis o pensamento que inundava a cabeça de Marcela, naquela tarde de um dia dois de novembro. Que lhe importavam as alegrias desta vida? Elas já haviam perdido o seu sentido. Que fosse, pois, arremessada pelos estranhos caminhos que a conduziriam, finalmente, até ao ignoto e enevoado além. Lá, somente lá é que encontraria o sedativo para a cura das suas infinitas amarguras. Queria, por isso, que o termo da jornada chegasse logo para, depois disso, conhecer o que para ela, enquanto ser mortal, era incognoscível.
O vozerio no cemitério era grande. Tratava-se do dia em que se comemoram os mortos. O lume das velas raramente adquiria a posição vertical, pois o vento sempre o jogava para todos os lados. Túmulos os mais ricos pintavam o cemitério de certo ar de magnificência, contrastando com os que nem sequer ostentavam uma cruz.
“- Pela última vez” – disse um dos que havia acompanhado o préstito fúnebre.
Era a hora do último adeus. O esquife baixaria, naquele momento, à sepultura. Quem quisesse ver o rosto daquele que fora o mais lindo e amado rapaz daquele lugarejo, se aproximasse. E assim todos fizeram, exceto uma pessoa. Justamente Marcela. Ela não podia jamais acreditar em um adeus para sempre. Leonardo ainda haveria de beijá-la, de tocá-la, de senti-la, de amá-la, enfim. Por isso, não se aproximou. No além – convencera-se – havia sido reservado um lugar, um lugar compatível com as pesadas cordas que uniam o seu coração ao do seu amado. Tal certeza já havia percorrido a sua mente, a ponto de não chorar. Ao contrário, ria. Ria às gargalhadas. Os observadores, é óbvio, deram-na logo por louca. Intervieram, então, os seus familiares. Conduziram-na até a casa. Precisava descansar. Ela não estava doente. A perda irreparável era, sim, quem a colocara naquele estado – assim pensavam. Bastava, pois, um breve repouso.
As trevas começaram a cobrir a necrópole. Os últimos visitantes retornavam as suas casas na certeza de que haviam cumprido com o dever. Os seus mortos, certamente, já estavam cansados daquelas presenças, acostumados que ficaram a só viverem no silêncio. Que se fossem. Deixassem somente a luz que os iluminaria por certas horas: a luz das velas. Já por essa altura não soprava nenhum vento perturbador, qual o que soprara durante a tarde, para apagar o lume dos círios que substituiriam, com seus grossos pingos, as lágrimas humanas.
E o lugar foi a pouco e pouco se esvaziando. Quando do cemitério saía a última pessoa – o coveiro – para fechar os portões, o relógio da Matriz soava sete horas. Era o frei Bernardino, convidando os fiéis para rezarem pelas almas.
“- Meus caríssimos irmãos, ai de nós se não nos fosse dada pelo Senhor a resignação. Resignar-se é aceitar, sem contestação, todas as catástrofes que mortificam o nosso espírito pelos espinhos insensíveis que não podem compreender a nossa dor. Ó, Marcela, quão constrangido sabemos estar o teu coração! E aonde foste tu, Marcela, que aqui não te vejo? Não era ele a pessoa por quem darias a tua vida? Não o amavas deveras? Sai, pois, de onde tu estiveres, vem e fica conosco para, juntos, pedirmos a Deus pela alma de um jovem que prematura e tão tristemente deixou este vale de lágrimas…”
Os fiéis, todos eles passaram a procurar Marcela com os olhos. Tal procura, porém, cessou logo. Marcela não se encontrava ali. Todos ficaram muito contristados. Pelo que havia acontecido no cemitério, logo deduziram que a coitada teria mesmo sofrido alterações nas suas faculdades mentais. Que pena! Tão moça e louca.
Nos carneiros, a fogueira das velas nada mais teria que uns dez minutos de duração, pois todas elas estavam prestes a se extinguir. Tudo ali era calmo. Nada se mexia, menos um corpo. O da agora infeliz Marcela. Saíra escondida de casa. Os familiares procuraram-na por todos os lugares. Jamais imaginaram que ela estivesse junto à cova do seu amado. A terra, ainda quente da luz solar, servia de travesseiro, onde a infeliz derramava rios de lágrimas; lágrimas que eram tristezas que não mais cabiam no corpo daquele ser tão frágil e amoroso. Se antes ela ria, agora punha-se a chorar. Era um choro triste e muito mais plangente que o crocitar de uma coruja. Tudo isso porque Marcela havia refletido profundamente, sendo levada à realidade; realidade crudelíssima que lhe doía n’alma e a sufocava de angústia. Já não mais acreditava que voltasse a ver Leonardo. E essa convicção lhe aguçava o desejo de ser beijada, de ser tocada, de ter Leonardo nos seus braços…
” – Caminhos por onde andei, dizei-me por qual de vós devo seguir eu. Pois tão sem forças já estou que é preciso… é preciso…” – e assim dizendo, mergulhou nas sombras do inconsciente. Cabeça estendida por sobre a sepultura, todo o seu corpo estirado ali ficou durante seis horas. O lugar voltou a ficar mergulhado no silêncio que lhe é habitual. Na casa dos mortos, dormia a jovem que morria de saudade por um dos seus moradores.
Era uma hora da madrugada. O corpo de Marcela começou a sair da posição estática em que ficara. Por último, ela abriu os olhos. Tornou a si. Logo compreendeu estar no campo-santo. Não se desesperou. Ela estava vivíssima no meio dos mortos, em plena noite; noite calma, fria e assustadora. Isto, porém, não a amedrontou. Não estava perto de Leonardo? Só lhe faltava, então, uma coisa: ver quem agora ela sabia que jamais lhe viria ao encontro.
Qual verdadeira pedra batendo na sua cabeça, Marcela sentiu que um peso enorme tomava conta dos seus pensamentos. E como que ao longe, ela ouviu batidas que se repetiam insistentemente. No estado em que se encontrava, pensou tratar-se de homens que estavam abrindo o largo portão do cemitério. Procuravam-na – concluiu. E logo se decidiu: era preciso, o quanto antes, ver o seu mui querido Leonardo. Suas mãos lindas e delgadas foram, então, amorosamente penetrando a areia já fria por aquelas horas da madrugada. A princípio, ela revolvia a terra lentamente. Mas, de momento a momento, a ânsia crescia demasiadamente, e, num curto lapso de tempo, conseguiu descobrir a negrura do rico caixão. Foi então que o coração de Marcela começou a bater apressadamente. E batia, batia. As pancadas não vinham do portão, como imaginara. Marcela, enfim, compreendeu que o mundo ainda lhe traria muitas felicidades. Somente agora é que ela podia saber, como realmente estava sabendo, de onde eram provenientes aquelas pancadas.
A comunidade que tão lastimosa ficara, mais ainda tornou-se enlutada, quando, às seis horas da manhã, informaram a frei Bernardino, durante a Missa, que a pobre Marcela havia desaparecido. Foi um murmúrio geral de lamentação. Todos se penalizaram.
” – Deus – esperamos nós – haverá de socorrer aquela pobre criatura. Rezemos, então, meus filhinhos”.
E todos, genuflexos, passaram a responder às preces feitas por frei Bernardino.
Quando o ofício divino já estava quase terminando, encontrando-se o oficiante a benzer os fiéis, eis que dois vultos assomaram a porta maior e foram penetrando pela nave central, de mãos dadas, e sorridentes.
Marcela não fora até o além buscar o seu amado. A verdade é que ela impedira que ele fosse até lá. Pois quando saiu do engano que a fizera cavar mais rápido, o mundo renasceu para ela, ao ver saírem, de dentro do ataúde, dois braços, que tão bem conhecia, abrirem-se e puxarem-na; duas mãos sensualíssimas afagarem-lhe as melenas loiras; lábios onde muitas vezes ativara os seus desejos beijarem-na profundamente, até que todas as amarguras fossem vencidas pela felicidade.
Não é preciso dizer do susto por que passou a comunidade de São Sebastião. Apenas dizemos que ainda hoje se conta que muita gente correu e nunca mais apareceu no lugarejo…