O ÚLTIMO JOGO

Azar dos azares. O número sete quase aparecia. Mais um dente da catraca e eis que os milhões sorririam para Alfredo. Os planos que fizera, por isso mesmo, já iam morrendo. Uma bela casa já havia sido arquitetada na sua imaginação. Veneza seria a terra estrangeira que primeiro iria conhecer. Mas o maldito sete achou de não surgir.

Os últimos trinta e cinco reais compravam, agora, mais um bilhete. Aquele, sim – não era possível – haveria de trazer-lhe a sorte tão sonhada. Não iria ter um trabalhão para retirar o dinheiro alheio e dele nada angariar. Era, pois, necessário que o número sete desta vez aparecesse. Se não acontecesse isso, mais uma vez o cofre do velho José Bernardes voltaria a sofrer mais um desfalque.

Era uma sexta-feira, dia 13. Transcorria o mês de agosto. No colégio, um amigo de Alfredo havia dito que a sexta-feira do dia 13 era daqueles em que o diabo anda solto. Alfredo riu satisfeito ao ouvir essa declaração. O dia estava para ele. E logo encaminhou-se para a casa lotérica. Antes, teve o cuidado de passar em casa. Tomou ali de uma vela e, no refúgio do seu quarto, logo os seus pedidos ecoaram entre as quatro paredes. O lume da vela tremia como se estivesse tendo medo. Alfredo fazia um pacto com o demônio. Sabia que seria atendido. Tinha firme essa convicção. O diabo não andava solto como havia dito um seu colega?

A casa lotérica estava cheínha de apostadores. Todos os olhares convergiam para um único lugar: a roleta do canto, onde deveria aparecer o número da sorte. E uma volta foi passando, outra mais, até que a roda foi perdendo a sua velocidade. Os ouvidos dos presentes registravam com ansiedade o trec-trec da catraca. Os números iam passando, cada um mais distante do outro, no tempo: 8…9….0…..1….2……3…….4……..5………6. Neste último ponto, a roda pareceu parar. Ganhara, pois, quem comprara o bilhete cujo número estava ali registrado. Mas, um barulho se fez ouvir. Era a catraca que adiantava mais um passo. O seis ficara para trás e o sete aparecera definitivamente. Alfredo percebeu, com isso, o poder do demônio. E ficou deveras convencido de que aquele, sim, era quem tinha poder.

Ficara em paz o cofre do velho José Bernardes. Também lá dentro havia tanto dinheiro, que mais desafogado ele se sentia, quando alguém lhe diminuía a carga. José Bernardes era riquíssimo, mas avaro até não mais poder. Sofreria muito, de agora em diante, o cofre. Ninguém mais havia para desafogá-lo. Iria sentir o cheiro de mofo por muito tempo. José Bernardes parecia adorar as cédulas. Se ele descobrisse que o seu filho andava visitando o cofre, seria o fim do mundo. Era por isso, então, que o cofre amaldiçoava aquele sete que nunca deveria ter aparecido. Deveria mesmo ter ficado o seis.

E viagens e mais viagens passaram a ser realizadas. Veneza, é claro, foi a primeira cidade a constar do roteiro. Esta, como já se sabe, era a cidade dos sonhos de Alfredo. As andanças, todavia, não ficariam, como não ficaram, apenas nessa cidade. Roma, Paris, Londres, Nova York e tantas outras metrópoles tiveram a indiferente oportunidade de conhecer o mais novo ricaço da terra. Cabarés e cassinos os mais luxuosos passaram a ser freqüentados por Alfredo e mais outras pessoas aproveitadoras que formavam o seu círculo de amizades.

As coisas assim transcorreram dentro de uma vida com muitas mulheres, muita bebida, muito dinheiro, durante nada menos do que cinco anos; cinco anos de prazer e de muita devassidão.

 

” – É aqui que mora o senhor Alfredo?”

Era ali sim onde ele morava. Uma casa muito elegante no centro da cidade. Verdadeiro palacete. O estranho não se enganara com o endereço que lhe deram. Acertou sem dificuldades a mansão de Alfredo.

 

” – Ele mora aqui, sim. Que deseja o senhor?”

O homem que atendeu não imaginou jamais que se tratasse de coisa tão funesta. Apenas ele sentiu um certo cheiro diferente. Mas não ligou esse odor a nada de ruim que pudesse acontecer.

 

” – Diga àquele irresponsável que o prazo já expirou. Posso ir buscá-lo onde estiver. Mas o nosso trato foi o de que eu viria apanhá-lo em casa”.

” – Espere, meu senhor. Não está enganado? Tem certeza de que procura mesmo o senhor Alfredo?”

O estranho não respondeu. Disse apenas que viria no dia seguinte. Nada mais disse. E foi-se. A rapidez com a qual saiu foi a mesma com que o cheiro estranho medrou no olfato do fiel mordomo. Aquele cheiro que ele antes sentira, mas só agora pôde atinar para a sua verdadeira proveniência. Era um cheiro de enxofre. Odor persistente e insuportável que cada vez mais aumentava a sua atividade. Seria alguém lá dentro da mansão mexendo com enxofre? E o mordomo entrou para averiguar.

” – O que? Esteve alguém aqui a minha procura? E era desconhecido? Tem certeza? Você não está enganado, Henrique? Não era algum conhecido meu?”

” – Não, meu senhor. Era absolutamente estranho”.

E depois de uma breve pausa, durante a qual Alfredo se manteve cabisbaixo, deixou escapar:

” – Estou perdido”.

E, para contrariá-lo mais:

 

” – Senhor Alfredo, o senhor comprou enxofre alguma vez? O senhor trouxe alguma vez enxofre para casa?…

Ouviu aquelas interrogações e logo entrou nas razões daquelas perguntas que lhe fazia o mordomo. E este prosseguiu:

– …é que desde o dia da visita do estranho que eu não deixo de ser perseguido pelo odor maldito de enxofre. Só sendo mesmo coisa do demônio. E é para ter certeza de que não é nada ligada a ele que eu lhe estou perguntando…”

” – Sim, siiim. Trooouxe. Trouxe, sim, Henrique. Não se preocupe” – e já perdido em suas reflexões, sob um clima de verdadeiro desespero – ” Não há de ser nada. Ele não é tão forte assim…” – deixou escapar.

 

” – Mas!…” – ficou o mordomo sem muito bem compreender a situação e muito desconfiado.

Houve a essa altura uma ligeira pausa no diálogo. Foi Henrique quem reiniciou aquela conversa que ele nunca podia adivinhar ser a mesma desagradável para o seu amo.

 

” – O senhor estará em casa amanhã?”

” – Ele vem amanhã??!! Ele disse que vem amanhã??!! “ – perguntou Alfredo, revelando preocupação.

” – Sim, foi o que ele me disse”.

Alfredo agora é que se mostrava mais preocupado ainda. Ficou pensando por certo tempo, até que:

” – Henrique, tenho um pedido para lhe fazer”.

Queria o milionário em apuros que o mordomo cortasse os cabelos. Henrique tinha a mesma estatura do seu patrão. Alfredo e Henrique eram pessoas de semblantes bastante parecidos. Parecia serem irmãos.

E prosseguiu:

” – Quero que você ponha uma das minhas roupas. Será você quem receberá o estranho outra vez”.

Subserviente, Henrique não fez objeção, apesar de ter um encontro marcado, no outro dia, em casa de um seu amigo. Faria, então, o que o seu amo lhe pedira.

Na tarde do dia seguinte, bem perto da casa de Alfredo, uma pelada era disputada com bastante animação. Dentre os jogadores havia um careca. Nunca em dia de sua vida ele havia jogado. Era a primeira vez que o fazia. Alfredo assim fizera, porque queria malograr o seu impiedoso credor. De cabelo cortado ele jamais o reconheceria – foi como pensou.

 

” – Boa tarde, como passa o senhor?”

Henrique cumpria o que prometera. Qualquer mortal o confundiria com Alfredo. Esteva muito parecido com o seu amo naqueles trajes.

 

” – Vim falar com o senhor Alfredo. Onde posso encontrá-lo?”

” – Ora, veja só, o senhor fala com o próprio!”

“Como tem passado o senhor?” – adiantou o desconhecido, sarcasticamente – ” Há muitos dias que eu desejava falar com o senhor. Procurava-o para dizer-lhe que não gosto de procrastinações nem tão pouco de quem usa de certos meios para me enganar…”

O mordomo se encheu de interrogações.

“- … e quando ele chegar por aqui, se é que chegará, diga-lhe que eu perturbei a alegria de uma movimentada pelada”

Apontou para um campo de futebol nas proximidades.

“- Diga-lhe também que vou levar comigo um careca que daqui estou vendo a pular alegremente”.

E daquele momento em diante, Alfredo deixou de ser o ricaço que ele ainda há pouco desejava nunca ter sido.

Henrique, instantes depois, tomava conhecimento da morte de um rapaz que se divertia ali bem próximo à casa do seu patrão.

Um careca, dali a pouco tempo, adentraria a porta majestosa da grande mansão. Tinha o corpo inerte. O seu pai, o velho José Bernardes, lamentava o que tinha acontecido ao seu filho. Miserável pelada. Por que achou Alfredo de ir jogar futebol?! Aí estava o resultado. Acidentara-se e desaparecera para sempre.

Coitado! Pensou Alfredo que a sua nova indumentária era suficiente para se ver livre daquele credor fatídico. Melhor seria que ele tivesse continuado a servir o cofre. Só corria mesmo o risco de ser descoberto pelo seu avaro pai. Se tal acontecesse, as conseqüências jamais seriam tão catastróficas, quanto as que ele terminou por suportar.