HORÁCIO, O ESCULTOR

“Silêncio, ó ventos. Deixai que os presentes possam me ouvir as últimas palavras. Sei que o momento parece de profunda tristeza para todos vocês. Mas não é precisamente de tristeza que eu lhes quero falar”.

O vento que soprava forte naquela tarde sombria já prestes a terminar pareceu atender ao pedido que lhe havia sido formulado. O sol, este também amainara em muito o seu calor. Os filhos de Eolo agora quietos e o astro rei, cujo calor não incomodava, devido a sua tênue luz, proporcionaram à multidão presente um certo abrandamento no cansaço que a dominava, proveniente da distância que tivera de vencer a pé, acompanhando o corpo daquele que fora a pessoa cujos misteres exercidos em vida não foram outros senão o de fazer do cinzel o seu instrumento.

” – Não quero choros, não quero lamentações. Quero risos, quero semblantes alegres. É verdade que neste momento os vermes já estão consumindo as células constitutivas deste corpo que a mim pertenceu e que vocês o trouxeram até aqui. Só tenho, pois, que lhes deixar o meu reconhecimento pela atenção que a mim estão dedicando”.

O silêncio era quase total. O ouvido dos presentes estava atento, escutando cada palavra pronunciada numa languidez plangente. O coveiro ficou estarrecido diante do fato inédito que ele estava testemunhando.

” – Belarmina, minha sempre amada e fiel esposa. Eu te agradeço por teres cumprido o meu desejo. Não chores. Algum dia ainda nos encontraremos. Ao chegares em casa, esquece que eu existi, assume a administração de tudo quanto foi meu e que, doravante, será teu e de nossos filhos. A você, José, meu querido filho, desejo muita sorte e muito sucesso na vida profissional que está iniciando. Não se esqueça de zelar por sua mãe e pela sua irmã, tão jovem ainda e que, por isso mesmo, precisa de muitos conselhos para se livrar das emboscadas desta vida”.

O sol estava-se pondo. A noite estava chegando e, com a sua escuridão, tornava mais tétricas ainda aquelas exéquias, para as quais servia de cenário o cemitério de Santo Antão. Cada um dos circunstantes empunhava, agora, um círio, cujos lumes reunidos combatiam a escuridão que cada vez mais aumentava.

U’a marcha de tons alegres começou a ser tocada. Apesar de toda a beleza traduzida pelos sons maviosos que se escutava, não havia, entre os presentes, uma fisionomia que denotasse contentamento, quando este era o desejo daquele que ali jazia.

” – Meus amigos, meus familiares, parto. E como eu queria que nessa minha ida me fosse possível levar não somente a mim, como também as lembranças de minha pessoa, as quais hão de ficar entre vocês, inevitavelmente, eu bem sei. Não que seja eu contrário a que vocês se recordem de mim. Simplesmente eu queria, levando também as lembranças, que vocês fossem poupados da dor cruel da separação, da saudade, que não tem cura. Mesmo assim, eu lhes peço que se esqueçam de mim. Não devemos nunca nos voltar para o passado. Devemos sempre viver o presente. E eu que já sou o passado, o passado que vocês estão vendo estirado e frio e em decomposição dentro deste esquife, deve ser apagado da memória de vocês, como apagadas devem ser também todas as palavras que vocês ouvem de mim neste momento. Lembrem-se de que estas carnes frias, estes músculos tesos, esta cabeça que já não mais pensa, esta estrutura óssea, tudo isso é feito do pó e para o pó haverá de se tornar. Para que se guardar lembranças daquilo que é pó, puramente pó? É bem verdade que do outro lado de tudo isso que vocês vêem, algo há que ainda resta de mim. Algo que não está na dependência destas carnes, destes músculos, desta cabeça, desta estrutura óssea, tudo isso, enfim, que, durante mais de dois anos, estará mergulhado na graveolência que só mesmo o fogo pode evitar. Esse algo é o meu espírito. Ele que haverá, um dia, de ter o regozijo de contar com a companhia dos espíritos que lhe foram caros nesta terra onde rastejei durante anos. E porque eu tenho esta certeza, eu lhes peço, amigos e familiares meus, que se esqueçam de mim. Que se esqueçam de mim. Façam de conta que eu nunca existi. Apaguem das suas lembranças os meus gestos, as minhas atitudes, a minha arte, a minha bênção; o meu temperamento, o meu caráter; a minha tolice, a minha esperteza; a minha avareza, a minha prodigalidade. Queimem-se os meus pertences: os meus chapéus, as minhas vestimentas, as minhas medalhas, os meus retratos. Poupem-se, apenas, as obras que eu fiz com o cinzel. As estátuas que minhas mãos esculpiram, em parte nenhuma a elas pertencem. Nas minhas obras está o meu espírito. Portanto, devem elas ficar, porque ele também ficou, já que todo espírito é imperecível, quando se está no caminho para alcançar a mansão celestial. Cri no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na Comunhão dos Santos, na remissão dos pecados. E na ressurreição da carne também cri. Não na ressurreição desta carne que está apodrecendo diante dos olhos de vocês, mas naquela que significa a reconstituição deste corpo em todas as suas dimensões e em toda a sua plástica; uma ressurreição que permitirá ao novo corpo o poder de vencer obstáculos, quaisquer que sejam, como o fez o Cristo ressuscitado, ao atravessar as peredes da casa onde estavam refugiados os seus Apóstolos”.

Houve um silêncio tumular, para, em seguida, todos ouvirem a continuação daquele discurso fúnebre inédito:

” – Está na hora de este corpo frio ser coberto por esta fria areia que o consumirá. Senhor coveiro, dê cumprimento a sua missão. Dispense os cuidados. Jogue-o ao fundo do buraco, como quiser. Não importa a queda. Ele agora é insensível. Faça, portanto, como bem lhe aprouver. Pudesse eu fazer com que eu mesmo sepultasse essas carnes e esses ossos, poupar-lhe-ia o dispêndio das energias que o senhor terá que envidar”.

Choros, lamentações seguiram-se às palavras finais do morto. O morto que falava, graças aos recursos e progressos da eletrônica. Na fita magnética ficara o registro do seu desejo. Foi, talvez, o sepultamento mais comovente de que já se teve notícia. Não porque se tratasse de uma grande personalidade no campo da liderança carismática. É verdade que Horácio dispunha de certo prestígio, mas isso era em razão dos seus talentos de artista. Tratava-se de um emérito escultor. A coisa de que mais ele gostava era pegar do cinzel e aplicá-lo ao mármore bruto, nele colocando as potencialidades do seu espírito. Deixasse, um dia, de poder manusear o seu cinzel e nada no mundo haveria que justificasse o continuar de sua existência. E isto ficou bem patente na resolução extrema que ele tomou: aniquilar a sua própria vida. Assim resolvera agir, por conta do desastre que sofrera; desastre em que, lamentavelmente, perdera os seus membros superiores. Não poderia haver perda maior para ele. Dali por diante, deixaria de ser o famoso escultor que sempre fora. Esculpir para ele a razão do seu viver. Que sentido encontraria nesse mundo para continuar vivendo? Um homem com o espírito carregado das formas e dos detalhes para esculpir e, agora, privado, em razão da falta das suas hábeis mãos.

É evidente que as pessoas que acompanharam o préstito fúnebre ficaram atônitas diante do cerimonial inesperado a que assistiram. Somente a viúva, dona Belarmina, o sabia, já que ficou encarregada de levar a cabo aquilo que fora a última vontade do seu ex-marido, consignada na carta a ela destinada, a qual se encontrava ao lado do ex-escultor, quando, morto, foi encontrado, em meio a várias estátuas, frutos do seu dedicado labor, e que, devido ao toque de beleza que só ele sabia dar, mostravam-se muito mais vivas do que o seu autor, o qual jazia aos seus pés.

Eram sete horas da noite, quando o cemitério de Santo Antão fechava os seus portões.