BELEZA HOMICIDA

Moço muito bonito, Gregório levava a vida a se mirar em um espelho. Era, além disso, dono de uma riqueza imensa. Tudo isso fazia-o disputado entre as mulheres. Era, não restava a menor dúvida, o melhor partido daquela progressista cidade de São Cristóvão. Terminara o curso de Ciências Jurídicas, fazia já uns dois anos. Era um profissional com uma clientela bem selecionada, luxo a que se dava em face de sua incomparável competência. Procuravam-no sempre, na certeza de que ele acharia a solução que o caso comportava. Tornou-se advogado famoso na sua cidade e circunvizinhança. Fez-se rico. Cada vez mais rico. Mas o que sempre fazia questão de mostrar não era a sua riqueza e sim a sua competência profissional.

Casara-se com moça fina, inteligente, cuidadosa. Filha de uma família de renome, ali mesmo de São Cristóvão. E viviam uma vida feliz, consistente no trabalho por parte dele e nos afazeres domésticos por parte de Olga.

A morte dos pais de Gregório fê-lo um eremita. Chegara até a esquecer a beleza que possuía e da qual tanto se orgulhava. Foi, talvez, essa solidão que o fez pensar em casamento. E, com a sua concretização, um passo muito feliz em sua vida. Olga era uma pessoa amantíssima, dedicada, delicada aos extremos. Era mulher de sua casa. Saía pouco. Com a chegada de Gregorinho, aí sim, é que nunca mais saiu para festas. De casa só saía para fazer compras.

Gregório, já por volta de cinco anos de casado, passara a ter um comportamento diferente. Não na sua vida profissional. Essa mudança ocorreu dentro do lar. Não mais via Olga com os mesmos olhos dos cinco primeiros anos de vida conjugal. Ela passara a ser insuportável para o marido. Não mais era a pessoa por quem ele guardava aquela forte paixão que o levou a se casar com ela. Antes, para ele, o lar era um céu. Agora, um tormento. Tanto assim que, todas as vezes em que se dirigia para casa, fazia-o amargurado. Achava melhor ficar em seu escritório, lendo, fazendo qualquer coisa. O lar não mais o atraía. Tal situação teve início quando de uma indagação que ele fez a sua mulher, depois da qual, justamente, voltou a assumir aquele comportamento que teve, decorrente da morte do seu querido pai. Foi aquela morte, como já se disse, que o fizera tristonho, solitário, e justamente em tal estado de espírito é que veio a contrair núpcias com Olga, sendo tal união, com certeza, o elemento responsável pelo seu retorno ao tipo de vida alegre que antes levava.

À pergunta, respondeu Olga um tanto confusa. Não, não sabia ela por que continuava jovem, enquanto ele envelhecia tanto…

Gregório, a sua vida agora era mirar-se no espelho por muito tempo. Chegava do escritório, entrava no banheiro, tomava o seu banho e ali ficava por horas e horas a mirar-se.

– O almoço está pronto.

Parecia que Olga não tinha falado. Ficava sem resposta. Das primeiras vezes, ela ficou calada, não procurou indagar a respeito do novo comportamento do marido. Devia ser qualquer preocupação que o fazia ficar por tanto tempo, trancado no banheiro. A repetição constante daquele comportamento, porém, veio despertar a sua curiosidade. Que estaria fazendo Gregório ali dentro do banheiro por tanto tempo?

Olga já estava impaciente. Por isso é que, certa vez, chegou a perguntar ao marido o porquê daquele seu comportamento. E ainda mais trancado a chave. Que estaria acontecendo? Queria saber. Tinha o direito. Aquilo não poderia continuar assim. Mas Gregório deu calado por resposta.

Dia seguinte, Olga resolveu descobrir o que se passava. Subiu pela escada que levava à caixa-d’água e dali pôde ver. Ficou o tempo todo a observar o marido, sem que este a visse. Nu, completamente nu ele estava. E se colocava diante do espelho do banheiro, mirando-se o tempo todo. Do seu ponto de observação, Olga pôde ver no semblante do seu marido uma angústia que o dominava completamente. Estaria ele enlouquecendo? Era preciso tomar umas providências. Afastá-lo daquela depressão. Aquilo o deixava muito triste. Seu marido não mais estava sendo aquele marido carinhoso que sempre fora. Nunca mais tinha copulado com ela. Muitas já tinham sido as tentativas que ela fazia nesse sentido. E nada. Gregório evitava. E ele também não lhe dizia de jeito nenhum a razão por que assumira aquele comportamento estranho.

Certo dia, valendo-se da ausência do marido, Olga quebrou não só o espelho do banheiro. Tudo quanto era de espelho dentro de casa ela deu fim. Queria ver a reação de Gregório. E, no lugar do espelho, colocou uma fotografia. Esta mostrava seu corpo com um biquine que a deixava quase nua, quando ainda jovem, em uma praia. Queria que aquele corpo despertasse o coitado do seu marido. Há muito que ela necessitava de um homem. Tinha-o ali dentro de casa, mas era mesmo que não ter. Gregório não lhe dava a mínima importância.

Na noite daquele dia, Gregório parecia ser outro. Inteirara-se, é verdade, da ausência do espelho no banheiro. Pensava Olga que ele não iria gostar do que ela havia feito. Foi o contrário. Gregório só passou no banheiro o tempo necessário para tomar banho. Almoçou, retornou ao trabalho e, à noite, era o homem que ela há muito estava querendo que ele fosse. Tomou-a em seus braços, beijou-a, acariciou-a… e os dois ficaram por mais de duas horas na cama a se amarem. Olga, enfim, se saciara. Matara os seus desejos. Eram muitos.

Um enigma, no entanto, pairou no espírito de Olga. Seria, então, um espelho a causa daquele comportamento estranho do marido? Perguntar-lhe-ia. Aquilo não iria ficar sem ser devidamente explicado. Ela precisava ficar sabendo por que o seu marido se comportara daquela maneira por uns tantos dias, os dias justamente em que ele entrava no banheiro e ficava a se mirar no espelho que agora não mais existia e sobre cujo desaparecimento ele não disse uma palavra sequer.

– Gregorinho, tomar o leite.

E ficou Olga a cuidar dos seus afazeres domésticos, na certeza de que o seu filho logo se levantaria para tomar o leite, como fazia todos os dias. Olga, porém, estranhou o fato de Gregorinho não a ter atendido logo. E uma surpresa, surpresa maior e mais triste que u’a mãe pode ter, saiu ferindo por dentro o seu coração, como um golpe de espada.

– Por que, Gregório, por quê?

– Não fui eu, Olga.

– Como, se você está com essa faca na mão, toda ensangüentada?!

Gregório olhou para as suas mãos. Estavam tintas de sangue. O sangue do seu próprio filho. Pôs-se a chorar e a se lamentar desesperadamente.

O garotinho estava lá, estendido por sobre o piso do quarto. O seu rosto estava irreconhecível. Toda a carne da sua face havia sido totalmente extraída. Perdera muito sangue e estava morto.

A pequena felicidade que teve a inditosa senhora naquela noite anterior, desapareceu por completo. Perdeu o seu filho. Perdera, também, o seu marido. Por dois motivos. O primeiro, porque a Justiça o condenou, e não poderia ser diferente; o segundo, porque era impossível viver com ele depois de tudo o que aconteceu. Ela não suportava mais vê-lo. Daquele fatídico dia em diante, desaparecera completamente todo o afeto, todo o amor que ela dedicava a Gregório. Aquilo não era um ser humano. Era um monstro, sim. Matar o próprio filho! Por quê?

– Onde o senhor estava quando se deu o assassinato do seu filho?

– Em casa.

– Sozinho?

– Com a minha esposa.

– Quem descobriu o menino morto?

– Olga, e também eu…

– Como assim?

– É…e que eu estava perto do menino.

– De arma na mão?

– Sim… Não, não!!

– Quem matou o seu filho?

– Não sei.

– Confesse que foi o senhor.

– Não, não fui eu.

– Confesse, nós já sabemos de tudo.

– Ninguém me entende, ninguém me entende! Está certo. Eu estava… eu estava com a arma na mão. Agora, não fui eu quem matou Gregorinho, pelo amor de Deus. Não fui eu. E… fui eu… fui eu. Não!! – e levou as mãos à cabeça, desesperado, para continuar: – Eu não queria matar. Não foi por querer. Devo ter agido sem sentir…

Dez anos se passaram. Olga levando uma vida solitária. Não ia sequer fazer visitas a sua família. Quanto a Gregório, esquecera-o definitivamente. Não queria mais se aproximar daquele homem que tirou a vida de Gregorinho.

O carcereiro da prisão de são Cristóvão, ao chegar certo dia no presídio, se deparou com algo que lhe chamou a atenção. Alguém dera um alto grito, um gemido muito forte, depois do qual tudo voltou ao silêncio normal. Foi investigar o que se passara e, na cela onde se achava Gregório, viu-o pendurado, em uma tira de pano. O corpo estava completamente nu. Suicidara-se. Ao seu lado, um bilhete:

“Meu filho morreu e eu estou preso. Foram-se-me as alegrias. Tinha u’a mulher. Eu a amava muito e ainda continuo a amá-la. Aquela assassina levou-me a fazer o que nunca passou pela minha cabeça. Hoje eu sinto nojo dela. Foi ela a causa da minha infelicidade. Não me perguntem se eu me lembro como as coisas se passaram. Só me lembro que minha mulher me apanhou com a arma assassina na mão. Ninguém acreditou que eu era inocente. Sempre procurei dizer que ela era quem merecia a pena que hoje eu estou cumprindo. Não sei mesmo dar maiores e melhores explicações. A verdade é que eu me via dominado, inteiramente dominado por ela. Por fim, hoje eu vejo as rugas dominarem-me a face. Vejo-me, portanto, completamente livre dela. Ela sempre me escravizou. Hoje, ela não existe mais. Abandonou-me. Para sempre. Tive essa certeza, quando, ontem, tive o cuidado de pedir ao carcereiro um espelho. Nele eu me olhei detidamente. Foi uma angústia profunda a que eu senti. Pensava que ela não me deixaria nunca. Pensava que ela sempre estivesse ao meu lado. Para dizer a verdade, eu a amava. E eu cumpria, por isso mesmo, todos os seus caprichos. Foi a morte do meu inesquecível filho o mais horrendo de todos os seus caprichos, caprichos aos quais sempre me submeti sem nenhum constrangimento. Ah, maldita, infelizmente eu nada posso fazer contra ela, pois ela deixou de existir. O tempo a apagou. Ela já é coisa do passado”.

E, já no fim da missiva, Gregório confessava quem fora mesmo a responsável por tudo isso. Ela tornara a sua vida como que um pesadelo. Gregório não era escravo de outra pessoa. Escravizava-o, isso sim, a sua própria beleza. A beleza que não admitia ser devorada pelo tempo. A beleza que sentia inveja das belezas mais jovens e ricas de esplendores. A beleza criminosa, enfim, que o dominava a ponto de cegá-lo.