A ÚLTIMA CORRIDA

No estilhaçar bastante rumoroso, a dor. Luzes em pisca-pisca balançam, assim como ainda se portam as ondas sonoras que vão ecoando o clamor de uma tragédia. Tudo ainda continua para a vítima como sendo eventos de um passar imorredouro. Parece-lhe que o tempo, eterno passageiro voraz, tornou estático o seu jamais desritmado continuar, tendo-lhe fechado os canais por cujo espaço se derrama a apocalíptica vocação da sua energia destruidora.

” – Depressa!… Desvie!… O poooste!…”

A rua que por duas horas estivera tomada por u’a multidão curiosa, encontrava-se, agora, no seu movimento normal. Havia apenas vestígios de uma tragédia. Miríade de partículas vítreas refulgiam à luz das lâmpadas de mercúrio ainda acesas, graças à resistência da consistente armação de ferro e cimento, um vetusto poste que havia anos fora fincado na rua principal da cidade. Nele havia sido cravado o estigma provocado pelo abalroamento, de cuja conseqüência passaria a se interessar a maioria dos botuenses.

Enquanto na cidadezinha o fato comentado pelos bares e cafés era a convalescença de Alexandre de Morais, num leito de hospital ele se encontrava. E, se apagadas já estavam da memória dos que acorreram ao local do acidente as imagens da cena, a qual pusera Alex no rol dos inválidos, lá no nosocômio ele repetidamente as lembrava. Isto fez com que ele se esquecesse, inclusive, dos seus queridos misteres sacerdotais, com os quais vinha lidando, fazia uns quinze anos. É que se fixara no seu pensamento imagens que se repetiam como uma fita cinematográfica repassada constantemente. Arraigaram-se a ele tais imagens, a ponto de toda a sua razão ficar adstrita à lacuna intertemporal, dentro da qual ele recebeu a profunda aflição logo propalada pelos que jamais poderiam compreender-lhe a fraqueza moral como castigo; castigo que lhe tolheu não só a possibilidade do prazer proibido a que tanto se acostumara, mas também que lhe subtraiu a destreza para a dialética um tanto bastante firme com a qual ele defendia os mandamentos divinos do Galileu.

Cruel situação: sentir e ter clausurada uma percepção que dói incessantemente. A dor, que é a mãe dos gritos de aflição, no caso de Alex era u’a muralha intransponível que o cercara dentro de um mundo que só ele mesmo podia conhecer.

” – Cuidado!… Segure firme!… O poooste!…

Já em outra circunstância e completamente restabelecida, a sacristã repassava o triste acontecimento. Ali, naquele ambiente em que o prazer muitas vezes lhe embotou os sentidos, colocava a cabeça entre as mãos em sinal de veemente lamúria. Ansiava pelo contato carnal que o seu corpo exigia e que, agora, se tornara impossível. Na sacristia, tudo estava fora do lugar, pois a desesperação de Geórgia fê-la agir como verdadeira alienada, não respeitando, sequer, os ícones ali guardados, destruindo-os quase todos. Fora obediente ao seguir a vontade da pessoa de quem tanto gostava, mas nunca lhe passou no pensamento que para ela estivesse reservado tamanho golpe.

“- Maldito poste.” – bradava Geórgia, desesperadamente. E as imagens, uma a uma, se iam tornando porciúnculas de gesso, à proporção que Geo se lembrava da atitude de obediência com a qual ela impulsionara o pé. Verdadeiramente, Alex havia formulado o desejo de que ela aumentasse a velocidade; desejo de cuja concretização resultou o trágico acontecimento. E a sacristã amaldiçoou aquele instante perverso que lhe usurpou a satisfação dos desejos que estava sentindo. Tamanha era a ânsia pelo calor humano a que se habituara que imaginou se lhes abrirem as pudendas partes para hospedar a hóstia do prazer. Mas era só imaginação mesmo e, por isso, uma sensação de vazio ela sentiu, ao perceber a frustração do desencadear dissolutivo da sua volúpia.

É normal, diante da catástrofe que conduziu aos abismos da desventura a notória castidade e, ao mesmo tempo, a até então ignorada perversão do padre Alexandre, que grande número de curiosos tivesse acorrido à porta do majestoso nosocômio da vizinha cidade, no qual ele fora internado. Ali estavam não só os que lhe choravam a triste sina, mas também os que, com suas línguas ferinas, criticavam a sua conduta fora do altar, somente agora descoberta. E por muitos dias a cidadezinha não comentava outra coisa. A figura do ministro de Deus era objeto de discussões. Uns, porque nele viam um homem reto, traziam o coração ligado ao Todo-Poderoso, rogando a todo instante pelo seu restabelecimento; outros, porque não lhe perdoavam a conduta sacrílega, achavam que Deus jamais erraria nos seus desígnios…

Soube Geórgia a ingrata realidade. A mesma lhe chegou como uma substância mortífera. Ficara sabendo que jamais poderia nadar naquele mar de volúpia em que muitas vezes se banhara. Que fizeram aqueles braços aconchegantes, aquelas mãos sensualíssimas, aquele lábios de um calor tão gostoso e de onde brotava a seiva nutrícia da sua felicidade? E aquela voz suave? Por que foram esses tesouros mutilados? Castigo dos castigos. Os braços onde dormira, as mãos onde mergulhara o seu lindo rosto, os lábios de cujo primeiro contato jamais se esquecerá, tudo isso se foi. Vergara-se ante o cajado brutal da fatalidade. Nunca mais deles colheria o fruto tão essencial para o mundo dos seus apetites. E agora pensava. Se a avalanche do mal caíra sobre si, não mais se importava que a maior delas acontecesse. E tanto foi que a provocou, depois de um brado lancinante:

” – Alex!!!”

Esta foi a última palavra pronunciada. Sim, porque muitas outras ainda passaram na sua mente, antes que ela mergulhasse nas horríveis sombras de onde se não volta mais. Ao pé de u’a imagem que se salvara da sanha destrutiva da infortunada mulher que fora, um fio purpúreo deslizava mansamente, até que encontrou a porta, como que para denunciar a alguém o macabro gesto que aniquilou uma vida.

Botu receberia um inválido. A multidão tomava as calçadas. O carro já despontava. Conduzia no seu interior Alexandre de Morais, um homem mutilado. Uma cadeira de rodas esperava-o. Compraram-na as principais beatas da paróquia de Santa Gertrudes. Elas que também fizeram questão de comprar o ataúde.

Cadeira e ataúde, dois objetos que agora se cruzavam como as duas multidões, num abraço de dor. Ninguém havia pensado na possibilidade desse encontro. Geo e Alex, o destino os unira para que a desgraça os atingisse. E talvez por achar pouco, fez com que aqueles dois desventurados se cruzassem, como que achando que aquelas duas multidões não tivessem ainda compreendido a sua crueldade e não sentissem também na profundidade dos seus corações a dor do grande infortúnio que atingira aqueles dois infelizes mortais.

Alexandre de Morais e Geórgia Toledo, dois corpos que se cruzaram. O primeiro de olhos vendados, pois não queriam os que conduziam o infeliz que ele presenciasse o arrastar manso do préstito fúnebre. Achavam que ele sofreria muito mais. A segunda, também de olhos cerrados, mas eternamente.

” – Vá, aumente, mas cui… cuidado!… O poooste!!…”

Plaf! Trac! Ploc!

Alex é a vítima de uma tragédia que continua atual. Geo foi a infeliz sacristã que se deixou seduzir e que fez dos seus apetites sexuais incontroláveis a arma com a qual retirou a sua própria existência. Já não mais existe, portanto, para o mundo dos vivos conscientes. Apenas Alex ignora este fato. No seu pequeno, restrito mundo, Geo é a pessoa de quem ele espera algo que desde aquela fatídica noite não deixa de ser reclamado. Algo que não aconteceu, devido à presença de um poste, o qual não permitiu a Geórgia Toledo a realização do pedido do seu amado. E ela continuará sem atender. Impossível fazê-lo. Nem sequer o desditoso padre compreende por que Geo, a sua Geo não o atende. Que ele continuará pedindo, implorando, esta é a verdade, pois Alexandre de Morais é um homem que só conhece uma coisa: uma momento, momento trágico, momento infeliz