Para mim?
– Sim – informou o colega de trabalho.
Abriu a carta, quando chegou a casa. Aliás, assim sempre fazia. E leu. Leu vagarosamente como era o seu costume.
Homem de muitos afazeres, Conrado de muito pouco tempo dispunha para ler as correspondências que lhe chegavam constantemente. Como, porém, se tratava da pessoa a quem mais ele dedicava amor, não poderia era deixar de ler aquelas linhas que só falavam de ternura e, também, cheias de palavras de incentivo. Ora, de u’a mãe verdadeira só se pode esperar isso mesmo.
Papel retido nas mãos, Conrado enrubesceu. Aquela missiva agora era em muito diferente das muitas que já recebera. “Sou um verme que já abusou demais esse mundo. É preciso que ele ceda o seu lugar a outros”.
Conrado se esqueceu, inclusive, de que o expediente do banco onde trabalhava estava prestes a começar. Ele sempre foi uma pessoa cumpridora dos seus deveres. Por ali chegou sem experiência. Mas a sua boa vontade fê-lo alcançar um posto mais alto do que o de contínuo. Ele bem o merecia. A gerência do banco agora era sua. E com um desempenho fora do comum, notável, dava conta do recado de que ficara incumbido. Era um excelente profissional. Um empregado que fazia do trabalho o centro de todas as suas atenções, a coisa mais importante da sua vida, exceto, é óbvio, os seus sentimentos para com a sua mãe, que era tudo para ele. Nunca faltava ao trabalho. Aliás, tinha-o como um prazer. Mas aquele expediente da tarde de 23 de março não contaria com a presença de tão dedicado profissional. A missiva deixara-o em muito preocupado. Começou, então, a se julgar responsável pela vida sem afagos, sem carinhos que aquela carta dizia viver a sua genitora. Preocupara-se demais com o trabalho – concluiu consigo mesmo -, a ponto de se esquecer da sua mãe. É verdade que não era um abandono total. Não. Nisto ele estava tranqüilo. Conrado não se esquecera jamais de enviar todos os meses uma importância em dinheiro para ela. Sabia com isso que estava cumprindo o dever de um verdadeiro filho. Três mil reais julgava ele bastante para que a sua mãe levasse uma vida sem sacrifícios. E era mesmo.
Sempre desejou tê-la ao seu lado. Prova disso foram as muitas tentativas no sentido de que ela viesse morar com ele. No entanto, sabia que a insistência de sua mãe em não atendê-lo era devido ao frio que fazia na cidade onde ele morava. Realmente, um frio que não era brincadeira. Não tinha, pois, dúvida nenhuma a respeito de tal assunto.
Fazia três meses que não a via. A última vez que a visitara, morava ela na pequena cidade onde ele nasceu. Mudara-se dali há três meses. Morava ela agora numa cidade que ele sequer tomara conhecimento no mapa, como teve a curiosidade de pesquisar. Desse cidade estranha é que vinham as correspondências relativas a esses três últimos meses; correspondências que, em nada, mudaram em relação às anteriores. Somente a derradeira é que trazia algo estranho. Inexplicável. Sua mãe julgar-se um verme?! Um verme já cansado de viver?!
Procurava Conrado uma explicação para isso. E não encontrava. Melhor seria visitá-la. Ver de perto o que se passava com a sua querida mãe. Que lhe importava o trabalho? Sua mãe não era mais importante? E não fez mais outras reflexões. Viajaria, sim. E para a agência aérea embicou resoluto. Não levaria bagagem. Levaria apenas o desejo de rever a sua mãe; desejo, é claro, que não era de agora. A verdade é que ele se tornou por demais acentuado, devido ao estranho conteúdo daquela missiva que ele acabara de ler.
Tratava-se de uma pequena cidade. Uma cidade, além de pequena, muito pobre. Conrado, ao chegar, viu muitos casebres. Seria aquela maldita cidade constituída apenas de casebres? Claro que não! – concluiu. E ele ficou mesmo mais tranqüilo, quando começou a divisar casas de um aspecto bem melhor. Sua mãe – julgou – deveria morar numa daquelas.
O homenzinho a quem Conrado alugara o velho Jeep disse não conhecer aquela rua que constava do endereço de dona Mercês. Era a primeira vez que fazia viagem para aquelas bandas.
– Não se preocupe, senhor. Lá na cidade o senhor se informa.
Meio-dia, quando Conrado descia do velho carro. Estava no centro da cidadezinha. Uma cidade que nunca julgou existir. Até o nome era-lhe por demais esquisito.
– Rua das Rosas? Sim, senhor, eu sei onde fica. Sei.
– Faça-me, então, o favor…
– É um prazer, ora! O senhor sobe essa ladeira aí. Lá em cima, a primeira rua à esquerda.
Conrado saiu na direção indicada. Estava ansioso para rever a sua bela e querida e adorada mãe. A ladeira que teria de vencer era tão longa quanto íngreme. Nem carro nela transitava. E debaixo de um sol ardente, foi vencendo a altura. Notou – fato que o deixou deveras preocupado – que, quanto mais avançava, mais simples, mais pobres se iam apresentando as casas dispostas de um lado e do outro da ladeira. Não era possível que a sua mãe morasse por ali. Mas a realidade nele se instalou definitivamente, quando atingiu a rua das Rosas. Agora só lhe restava encontrar a casa. O número 298 deveria estar lá para o fim.
Crianças barrigudas que brincavam na quente areia paravam para observar aquele homem, aquele estranho muito bem trajado. Quem seria?
– Ô de casa!
E uma voz fina, uma voz feminina, justamente a vizinha, alertou:
– Dona Carmem, tem freguês!
Mulher muito gorda, cara alegre e já um tanto enrugada, foi a figura que se apresentou a Conrado.
– Entre, doutor.
-???…
Na sala onde penetrou o gerente não havia ninguém. Apenas o burburinho proveniente da sala contígua.
– …Eu procuro dona Mercês. Não é aqui que ela mora, é?
E do meio da conversa que vinha da outra sala, uma voz zombeteira ecoou:
– Já se trp também com os mortos?…
Conrado empalideceu.
Preocupada, muito preocupada ficou a dona do cabaré. Qual teria sido o atrevidinho que dissera aquela pilhéria? Então, alguém chega a sua casa e é pilheriado pelos próprios fregueses! Por isso, procurou justificar-se perante o estranho; estranho que a sua mente dizia se tratar de um excelente freguês…
– Coitadinha, ela morreu!
– O quê? Fale a verdade! Não gosto de brincadeira. Está pensando o quê? – Ficou alterado o pobre homem. Também…
E para complicar mais, diante daquele homem completamente transtornado pelo que lhe acabava de chegar ao conhecimento, aparecia uma pessoa com o andar trôpego, fazendo-lhe exigências, pedindo-lhe explicações.
– Eu respeito, por que você também não respeita? Pensa que porque está com a merd’essa roupa pode fazer e acontecer? – e partiu para agarrar-se com o pobre infeliz Conrado.
– Prá seu lugar, seu Hilário. Não chamei o senhor.
E Conrado, já um tanto refeito da dor que lhe causara a surpresa:
– Quer dizer que ela morreu mesmo?
– E é no cabaré que se procura quem morreu, seu filho da p…?
– Seu Hilário, cale-se. Retire-se.
– Só a polícia, dona Carmem. Só ela.
Conrado, na verdade, não chegou a se importar com as palavras que aquele bêbado lhe dirigia. Preocupado, decepcionado como estava, não dava importância para aquilo. Ainda relutava em acreditar que sua mãe fosse capaz de se misturar com aquela gente. Religiosa como era sua mãe, era-lhe muito difícil compreender o fato de ela passar a fazer da sua carne objeto de comércio. A realidade, porém, foi penetrando no seu âmago. Aos poucos, mas foi.
– De que ela morreu?
– Enforcou-se, meu senhor. Enforcou-se.
– Trataram-na mal?
– Ao contrário. Todos gostávamos dela. Era uma excelente pessoa.
– Pobre da minha mãe – deixou escapar Conrado.
– O quê??!! – disseram ao mesmo tempo o bêbado e dona Carmem.
– Sim, minha mãe – e, passando um papel às mãos de dona Carmem – Leia.
Recebeu ela o papel. Tratava-se de uma carta. Uma carta endereçada a Conrado. Uma carta onde estavam estampadas as amarguras de dona Mercês. Uma carta onde ela dizia não mais suportar esta vida. Realmente, a missiva estava assinada por dona Mercês. A dona do cabaré não teve dúvidas. Conhecia muito bem aquela letra.
O bêbado, depois disso, cessara então de fazer as suas importunações. Pensava ele, a princípio, que aquele estranho fosse alguém que tinha vindo à procura de sua Mercês para… Aliás, fora ele o único freguês de dona Carmem que mantivera relações com a mãe de Conrado, ali no cabaré. No quarto nº 5 eles passavam todas as noites.
– Me desculpe – as palavras saíam com dificuldade. Me desculpe. Eu não sabia. Pensava outra coisa. Não sabia que você era o filho dela… e que… Deixe prá lá. Que Deus a tenha. Criatura formidável. Formidável.
E Hilário caiu num pranto de causar dó. Perdera ele toda a agressividade de ainda há pouco. Encostou-se a um canto da parede. Cabeça baixa, as lágrimas corriam intensamente. Ali, pensava ele, ali estava o seu filho. Filho que nunca conheceu o pai. Como dizer-lhe que seu pai era aquele esfarrapado, aquele viciado? Que outro golpe não seria para ele conhecer o pai naquelas circunstâncias?
Conrado, por sua vez, ficou estarrecido diante da realidade que, por fim , conseguiu se instalar no seu espírito. Sentira a dureza de tudo quanto lhe dissera dona Carmem. Sua mãe, inexplicavelmente, vivera três meses num cabaré, cujos freqüentadores eram pessoas do mais baixo nível social. O que justificava, enfim, o gesto de sua mãe? O que a teria levado a terminar os seus dias num prostíbulo? Falta de dinheiro jamais poderia ser. Não lhe mandava todos os meses a importância de três mil reais?
Foi ele ao campo-santo. Queria visitar o túmulo da sua querida mãe. Levar-lhe-ia uma coroa de flores. Verificaria como estava o aspecto do lugar onde jazia a pessoa a quem ele mais amou nesta vida. E encontrou tudo na mais perfeita ordem. Quem estaria fazendo tudo aquilo? Flores e mais flores havia na sepultura. Seriam as prostitutas de dona Carmem quem… Sim, se não fossem elas, quem mais poderia ser? Sua mãe, tinha certeza, não conhecia mais ninguém naquela maldita cidade. Dissera-lhe dona Carmem que a defunta vivera os três últimos meses da sua vida confinada. Não saía do cabaré, lugar que em muito se transformara depois da sua chegada. O dinheiro que ela recebia, dava-o de mão beijada a dona Carmem. Seria para melhorar a casa. Para dar mais conforto aos fregueses. E para o tratamento das meninas da casa.
Uma carta encontrou Conrado ao retornar ao cabaré, o qual estava em polvorosa naquela momento. Alguém se suicidara. E escolhera para morrer o mesmo processo utilizado por dona Mercês. Enforcara-se. No mesmo quarto, com a mesma corda. E, na carta…
“Infeliz homem, cujo nome soube e nem pude decorar:
Sou um pai que não se sente com a devida coragem para dizer “meu filho”. Não sabia sequer da sua existência. Sua mãe, por sua vez, sempre me omitira o seu nome. Se eu a abandonei, ou melhor, se eu deixei vocês dois (pois Mercês estava grávida, quando parti), não foi por ser um irresponsável. Foi, sobretudo, a pátria quem me chamou. Na guerra lutei. Aquela guerra maldita, no fim da qual você deve ter nascido. À minha espera sua mãe ficou. E uma promessa absurda ela fez. Queria que tudo lhe acontecesse. Jamais morrer sem que visse a mim. Jurou a Deus que passaria a viver até num cabaré, caso eu voltasse. Soubesse eu dessa promessa, e nunca teria voltado, apesar de ser este o meu desejo; desejo que não pude logo realizar. Perdi-me nas hostes inimigas. Fiquei só. Pobre. Abandonado. Doente. A loucura da guerra deixou-me louco. E mais de vinte anos passei num hospital. Tão logo curado, pude me lembrar de Mercês. Não foi fácil conseguir meios para voltar. Pois bem. Sua mãe fez essa louca promessa. Ao chegar, tentei dissuadi-la desse compromisso absurdo. Expliquei-lhe que Deus a perdoaria. Nada consegui. E, certamente arrependida pela promessa que fez, mas impossibilitada de não cumpri-la, devido a sua religiosidade, achou que o único caminho era a morte. Por tudo que aconteceu não sou mais um homem capaz de suportar esta vida. Chega. Reze por nós dois. Desculpe-me por lhe ter sido grosseiro. Adeus e que Deus o abençoe.
Seu pai Hilário.
Conrado, no outro dia, acompanhava o préstito fúnebre do seu verdadeiro pai; pai que apenas conhecera no dia anterior; pai do qual nunca ouvira uma palavra de carinho; pai que não tinha culpa por tudo que aconteceu. E, já no cemitério, pela segunda vez, revia as flores tão vivas no túmulo da sua mãe. Foi então que compreendeu ter sido seu pai quem as colocara ali. Chorou.
Coração partido, deixava ele, no dia seguinte, aquela maldita cidade. A única coisa que ele tinha agora era o banco. Sim, ali ele encontraria o remédio para afastar do seu espírito as infelicidades que tanto o atormentavam.
E o desventurado jovem passou, desse dia em diante, a odiar os homens, inventores da guerra