A MORTE DO COVEIRO

Agora sentia-se feliz aquele em cujos caminhos somente viu passar o triste semblante da morte. Foi com gritos de satisfação que ele recebeu a notícia portadora da sua “liberdade”. Dissera-lhe a informante que não duvidasse de nada, pois era verdade: tinha alcançado o que tanto desejava. Na realidade, ele não mais suportava aquele mister. Aquele clima de silêncio por baixo dos eucaliptos gigantes era-lhe já insuportável. Quantas e quantas vezes ele se deparou com o riso sem graça das cabeças descarnadas! Eram crânios de um número quase sem fim que ele retinha na sua memória.

Deixaria, pois, de ser coveiro, a partir do momento em que fosse falar com o administrador do campo-santo. Tinha essa certeza, porque quem lhe falara a respeito da sua aposentadoria fora a sua mãe, uma velhinha que junto a si tantas vezes se movimentara dentro daqueles quatro muros; ele a enterrar os mortos e ela a trabalhar para os vivos, na ornamentação dos jazigos.

O outro dia era finados.

A velhinha de espinhaço curvo fazia questão de ser a última a colocar flores por sobre o túmulo de um morto que acabava de ser enterrado. Depois de ornamentar o sepulcro de incontáveis mortos, dos mais ricos aos mais humildes, não iria permitir que outrem o fizesse, pois se tratava da pessoa que ela mais queria neste mundo. Fora-se o seu único filho. De maneira trágica. Deixara-a sozinha neste vale de lágrimas. E o pior de tudo é que a morte havia chegado no momento em que ele alcançara a vitória final pelos seus muitos anos de trabalhos prestados. Apenas soubera da notícia da aposentadoria, dela não pôde em nada desfrutar, pois uma tragédia o envolveu de forma irreversível. Não fossem as pessoas que estavam perto dele, o acontecimento não teria sido logo descoberto. Lamentavelmente, quem presenciara o traiçoeiro desabamento foram duas ou três crianças que, ao invés de terem agido no sentido de livrá-lo da tragédia, correram à procura de socorro, o qual, entretanto, somente chegou quando já era tarde demais.

Rapaz infeliz o José Avelino. Ele mesmo “engatilhou” a arma que lhe tirou a vida. A terra, pesada e frouxa, além de molhada – pois chovera bastante há pouco menos de meia hora – foi a grande e única culpada. O seu zelo profissional, certamente, foi quem selou a sua triste sorte. Não deveria ter deixado as ferramentas de lado? A verdade é que não tinha mais obrigação laboral nenhuma. O seu ofício tinha chegado ao fim. E por que cargas d’água ele achou que deveria terminar o expediente? Coisas mesmo que têm de acontecer.

Ah, maldita barreira! Qual teria sido a força que abalou a fixidez daquela terra recém-cavada? Pensou-se em mistério, mas logo este foi descartado. Não existiu mistério algum. Tudo foi fruto de pura falta de sorte. A sua mãe jamais imaginou que para tamanha infelicidade viesse concorrer. Ela trouxera as bananas como sempre fazia. Gostava de tratar bem o seu único filho. Era tudo para ela aquele rapaz.

Maldisse, então, a velhinha o momento em que entregara aquelas frutas, pois elas foram a causa do triste acontecimento. Culpado também fora ele, o Avelino. Por que não esperava o término do trabalho para poder comer? Pois ele comia era ali mesmo, mãos sujas, suor escorrendo pelo corpo, sentindo o cheiro da terra já tão acostumada a receber a decomposição dos corpos humanos.

Parece que daquele infortúnio ele não poderia mesmo se furtar. Pois, quem cava um buraco, sempre está a tirar terra. Não deveria, por isso, José Avelino jogar fora da cova as cascas das bananas que estava comendo? Mas assim não o fez. Aliás, nunca costumara agir assim. Deixou-as dentro do buraco, como sempre fazia. E, certamente, naquele movimento para lá e para cá, eis que pisou numa delas e… a queda violenta, como é fácil presumir, foi inevitável. Deve ter sido uma queda grande mesmo.

Está explicado, então, o fato de haverem caído as paredes daquela cova. Sim, não deve ter sido outra coisa, senão o peso do corpo do coveiro que provocou o deslocamento da terra que se encontrava à beira da cova que ele cavava. E José teve logo o seu corpo coberto por completo pela fria areia com a qual manejou durante muitos anos. Sempre a dominara através dos seus instrumentos de trabalho: pá e enxada sobretudo. Mas, agora, se viu traído por ela. Nem ao menos u’a menor parte do seu corpo ficou de fora. Ficou inteiramente coberto por uma considerável quantidade de terra. Parecia que ela, naquele momento, revoltava-se contra alguém que, durante tanto tempo, havia tirado o sossego de sua firmeza. Ah, infeliz mortal!

” – Corram, o seu José foi enterrado”. – eram as crianças que correram ao ver o acontecido.

Manoel, que há tanto tempo trabalhava no campo-santo juntamente com o infortunado José, não acreditou imediatamente no que as crianças lhe estavam dizendo. Foi preciso que elas o puxassem, insistindo em lhe dizer que era verdade, fazendo ver que não tinham necessidade nenhuma de mentir. Vendo, após um curto lapso de tempo, que, na fisionomia dos garotos, não havia mesmo qualquer tom de trincadeira, ele saiu correndo para o local que elas apontaram. Tarde demais. José já havia expirado.

O cemitério de São Marcos ficou completamente cheio de visitantes naquele Finados. Todos, na pequena cidade, conheciam o Avelino. Sentiram que deviam prestar-lhe a última homenagem. Coveiro há quase três décadas, ele morrera na véspera do dia em que se comemoram os mortos.

Ao lado do mais novo túmulo, duas ou três cascas de bananas. As assassinas, as traidoras. As responsáveis pela morte de um homem tão bom como fora o Avelino. Os visitantes iam até à sepultura e ali apreciavam aquele monte de terra em baixo do qual estava o corpo inerte do ex-coveiro; depois, em meio aos tantos comentários sobre o acontecido, apreciavam as malditas cascas de bananas, as únicas no mundo que, num dia de Finados, gozavam de atenção, por parte dos que iam derramar suas lágrimas pelos que já deixaram de sofrer neste mundo traiçoeiro.